Manuel Matola
O SEF lançou no último domingo uma “chuva de vagas” para concluir até finais de novembro os 31.300 agendamentos dos imigrantes com manifestações de interesse relativos a 2019, mas a decisão está em contraciclo com a futura (ir)relevância de um grupo profissional que tem sido fundamental no processo de imigração: os advogados.
Desde domingo, vários têm sido os testemunhos deixados pelos imigrantes que confirmam os agendamentos de manifestações de interesse (MI) para autorizações de residência relativos a outubro, novembro e dezembro de 2019. Muitos elogiam o SEF por acelerar o processo considerando que deste modo ajuda a pôr fim ao que deixava os cidadãos estrangeiros “amarrados a um sistema” de agendamento sem fim: os “esquemas de corrupção” que alegadamente envolvem advogados.
Questionado pelo jornal É@GORA sobre qual o impacto da decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) sobre a classe jurídica que trabalha em questões migratórias em Portugal, a advogada brasileira Natália Mousinho considerou que “ainda é cedo para concluir que este novo mecanismo [do SEF] está a surtir efeitos positivos, tendo em vista que o procedimento é recente e existem diversos imigrantes ilegais no país a aguardar mais de 15 meses para conseguir um agendamento”.
As mudanças no sistema de agendamento foram primeiramente anunciadas em agosto quando o SEF assegurou que estava a contactar via email os imigrantes com manifestação de interesse feitos em 2017/2018 – processo já concluído -, sendo que, em setembro, iniciou a convocação também por ordem cronológica de todos os que deram entrada à manifestação de interesse em 2019.
“Penso que esta nova dinâmica em nada prejudica o advogado, pelo contrário, se der certo, pode ajudar nossos clientes a obter êxito em seus processos de legalização”, disse Natália Mouzinho, lembrando que “a função do advogado é a prestação de serviços jurídicos”.
O advogado guineense Arlindo Ferreira, que considera também que para já “nada está implementado a nível das alterações que eles [os serviços migratórios] preconizam”, tem, no entanto, uma leitura contrária sobre as implicações que esta nova dinâmica do SEF pode ter no futuro dos advogados que trabalham com as questões migratórias em Portugal.
“Em qualquer alteração, as pessoas estão sempre reticentes para saber qual é o impacto social que esta situação irá gerar. Daí que estamos assim por um lado: expectantes para ver até que ponto a nossa posição de advogados em si fica, porque, neste momento, estamos cada vez mais limitados”, diz Arlindo Ferreira que exerce advocacia em Portugal há mais uma década trabalhando muitas vezes pro-bono dado que muitos dos clientes são maioritariamente imigrantes sem posses.
O advogado lembra que, apesar de as alterações no SEF estarem a ser feitas desde a primeira vaga da Covid-19, houve um períodos em que muitos dos serviços que foram anunciados pelo governo não foram preconizados.
“Portanto, desde abril até outubro praticamente não se podia efetuar agendamentos nem reagendamentos, só em casos excecionais em que o imigrante mandava um email para o SEF e eles viam se era um caso de força maior ou humanitário, ou de força maior e, a seguir, notificavam-no para se dirigir a um posto do SEF. Mas desde que reabriram os agendamentos, confesso que há duas semanas eu não consegui fazer agendamento sequer. A linha está sempre impedida. No outro dia fiz 299 chamadas e não consegui” ser atendido, contou Arlindo Ferreira em declarações ao jornal É@GORA.
Mas desde que o SEF lançou a “chuva de vagas” no domingo aos vários imigrantes que garante estar a receber mensagens com confirmação de agendamentos, tudo parece ter mudado. Contudo, o advogado lembra que essa nova dinâmica refere-se sobretudo a um artigo: o 88. Não é para todos.
Quando questionado se assim essa abertura do SEF tornaria (ir)relevante o papel dos advogados no futuro processo de legalização dos imigrantes, dado que muitos beneficiários do artigo 88 são os que vão ao SEF pela primeira vez e a as marcações passaram a ser automáticas, Arlindo Ferreira disse: “Os advogados nunca tiveram um papel relevante nisso. Nunca, porque os advogados sempre desempenharam função secundária, acessória que tinha a ver com acompanhamento das pessoas [migrantes]”.
E explicou: “Um advogado para ter um papel relevante tinha que ter (por exemplo a prerrogativa) de ligar ao SEF e dizer: eu sou advogado, quero fazer agendamento para um cliente daqui a uma semana. Mas ao nível do SEF um advogado é igual a um outro cliente normal que liga para lá e faz o agendamento e dão-lhe uma vaga. Um advogado faz o mesmo”.
“Antigamente, os advogados chegavam lá e podiam entregar os processos. Depois alteraram isso. Tinham que receber só 10 advogados por dia e destes nem todos processos se podiam entregar. Ou seja, antigamente, o advogado podia fazer tudo [para o cliente]. Depois começaram a dizer que não: tem que estar presente o próprio utente. Depois, a marcação tem que ser feita em nome do utente. Isso cada dia foi sendo alterado. Ultimamente, os advogados só podiam fazer agendamento pelo telefone, coisa que qualquer um pode fazer, e depois acompanhar clientes e mais nada”.
Mas, neste ato de marcação da vaga o advogado passou a ter a possibilidade de ganhar para agendar para os clientes, dado que há quem tenha desembolsado 300 euros apenas para fazer uma marcação online de vagas que muitas vezes esgotavam em menos de cinco minutos, como foi o caso da imigrante brasileira Juliet Cristino que denunciou ao jornal É@GORA os alegados casos de alegada corrupção, protagonizou uma manifestação de imigrantes e teve reuniões com a presidência da República e o governo, a quem mandou várias cartas e até hoje mantém uma comunicação direta com o SEF sobre o atual processo em prol dos imigrantes.
Questionado se perante esta nova situação de resposta que o SEF está a dar pode ter o impacto na vida financeira dos advogados, o jurista Arlindo Ferreira respondeu: “Na minha situação é-me indiferente porque, nesta área de advocacia, os clientes que eu tenho são os que nem sequer têm posse”.
Mas reconheceu que, “às vezes, há uma família toda de advogados de questões migratórias que estão no gabinete como se estivessem num serviço de call center e passam a vida aí a fazer agendamento, marcação…”
A propósito, a advogada brasileira Natália Mousinho defendeu a classe: “A função do advogado jamais foi vender vaga em fila, pelo contrário, vendemos expertise, soluções jurídica. Nosso trabalho continua, tanto em Portugal, quanto junto aos consulados espalhados pelo mundo, em que preparamos o estrangeiro para entrar no país de forma legal e com suas documentações atualizadas”.
O jornal É@GORA quis saber se, havendo a parceria entre a Ordem dos Advogados de Portugal e o SEF, os advogados que trabalham em questões migratórias deviam ser enquadrados num projeto específico na Ordem, face a eventualidade destes enfrentarem dificuldades no seu trabalho, Natália Mouzinho respondeu: “Sem dúvida, os advogados precisam ter canal direito com o SEF, tendo em vista que, somos primordiais a administração da justiça e necessitamos proteger os direitos dos nossos clientes”.
No entanto, o advogado guineense Arlindo Ferreira tem um entendimento contrário.
“Esta área da imigração é totalmente ignorada pela Ordem dos Advogados”, disse Arlindo Ferreira recordando que o acordo que ditou a parceria entre as duas entidades resultou do “alarmismo social” que após a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, morto em 12 de março de 2020, nas instalações do SEF no Aeroporto de Lisboa, na sequência de violentas agressões por inspetores do SEF, num caso que levou a que o Estado português pagasse uma indemnização de 800 mil euros à viúva e aos dois filhos menores da vítima.
Foi isso que levou à intervenção da Ordem, considerou o advogado guineense.
“Muita vezes fazemos a participação das injustiças que sofremos mas não há respostas satisfatórias”, disse Arlindo Ferreira, alertando por isso para a possibilidade de os advogados que trabalham em questões migratórias em Portugal estarem “preparados para a escassez do mercado e aventurar-nos noutras áreas”.
“Por exemplo, na área de imigração, se o fluxo de trabalho diminuir temos que partir para outras áreas (como as) de Direito Comercial, Administrativo ou área criminal, mas há aí advogados que fazem só uma coisa. Se as condições não permitirem têm que se aventurar para tudo e mais alguma coisa e fazerem tudo. Há colegas meus que abandonaram a advocacia na área de imigração e agora estão a trabalhar na área de imobiliária. Foi o problema de Covid-19. Além do mais não havia agendamento e o trabalho escasseou. Os tribunais também estavam fechados”, disse o advogado assinalando que “na profissão de advocacia não é só imigração”, pelo que insistiu.
“Temos uma versatilidade para trabalhar em toda a área desde imigração, asilo e processos de outras naturezas. Temos que aventurar-nos nisso também”.
O momento anterior e posterior de todo o processo atual ligado ao SEF ficará para sempre associado a um nome que “agitou as águas” de toda a estrutura migratória em Portugal: a brasileira Juliet Cristino, líder do CIP – Comité de Imigrantes de Portugal. (MM)