“A diáspora claramente tem que ser uma voz permanentemente crítica” – Manuel L. Dias dos Santos

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Manuel L. Dias dos Santos, sociólogo angolano residente em Portugal

Manuel Matola

O sociólogo angolano Manuel L. Dias dos Santos, uma das mentes mais brilhantes da diáspora lusófona, completou este fim de semana meio século de vida. O jornal É@GORA entrevistou-o pedindo para, do exterior, lançar um olhar sobre o presente e futuro de Angola e do continente africano enquanto presidente da Plataforma de Reflexão Angola, uma associação independente de defesa da diáspora angolana em Portugal.

Qual é neste momento a palavra que melhor podia caraterizar Angola na sua visão enquanto presidente da Plataforma de Reflexão Angola?

Acho que a palavra certa para olhar para Angola e fazer assim resumidamente [uma caraterização] é: uma ´granda` confusão. Estamos perante um momento histórico único na medida em que o país está a atravessar transformações que não estão a ser lideradas, ao contrário do que se pensa, por forças políticas, mas por um movimento inorgânico que mistura desde associações a cidadãos individuais, a entidades religiosas, ou seja, há como que um estado de cansaço geral para aquilo que é um estado em que o país chegou. E isso tem sido, no meu ponto de vista, um elemento que cria pânico nas hostes do partido-Estado, em primeiro lugar, e de quem neste momento ocupa as funções de titular do poder executivo, na medida em que não sendo um partido que tenha o hábito democrático, nem do diálogo [até porque] se afirmou na exclusão pura e dura, bem como na eliminação física até dos seus próprios militantes que entram em estado de divergência com o mesmo – e é histórico, não é um dado novo que estou aqui a apontar -, fica muito confusa a situação, para além do facto de as opções políticas que o país tem ao nível da oposição que querem se afirmar como alternativa futura também não apresentarem do meu ponto de vista até agora os caminhos que os angolanos esperam para perceber se nós vamos ter alternância política conjugada com autoridade política, porque eu acho que a questão da alternância política não é exclusivamente a solução para o futuro de Angola.

Porquê?

Por uma razão muito simples: os angolanos não querem mudar simplesmente os atores políticos do passado para os que os vão substituir. Querem, claramente, controlar e participar de forma efetiva e ativa nessa mesma mudança. E agora nós nos perguntamos [se] o quadro legal e constitucional que o país apresenta (não) tem espaço para isso. E os desafios de quem fizer alternância política tem que ser no sentido de trabalhar para criar uma autoridade política em que a cidadania é o primeiro ato político. E este é um défice que todas as constituições em Angola, inclusive as políticas públicas [têm], porque elas só são emanações, grande parte delas pouco dialogantes, com histórico de democracia muito lenta. É verdade que uns com uma aceleração maior do que os outros, mas ainda muito lenta e há uma impreparação ainda muito grande, do meu ponto de vista, na medida em que o discurso político aponta sempre quem está na esfera partidária como os únicos que podem ajudar a arranjar caminhos para uma alteração do que temos agora. E esse diálogo para operação exige uma envolvência de todos. Para mim, das poucas pessoas que tocou nesse assunto de uma forma muito inteligente é o Filomeno Vieira Lopes que disse que “a democracia não corta cabeça, conta cabeças”. E a ideia de contar cabeças significa [incluir] todos. Há muita gente que diz: o MPLA tem que ser erradicado do poder. Eu continuo a dizer: essa gente do MPLA tem que ser contada na equação porque foram eles que construíram esses caminhos em que nos encontramos. E [hoje] melhor do que ninguém são eles que nos devem mostrar como vamos alterar esses caminhos com um nível de responsabilidade que não pode ser obliterado no meio de todo esse processo. Agora, ostraciza-los, no meu ponto de vista, é um grande erro, na medida em que o país foi partidarizado e há pessoas que não sendo naturalmente indivíduos do partido, no entanto, tomaram atitudes que o próprio partido decidiu. E essas pessoas – algumas – estão muitas delas interessadas em alterar o quadro que têm, mas precisam encontrar politicamente alguém que perceba a urgência de utilizar melhor a capacidade técnica deles, o patriotismo deles. A intenção de querer fazer diferente sem os limites que anteriormente eles tinham.

Mas neste caso qual é o papel da diáspora?

A diáspora claramente, no meu ponto de vista, tem que ser uma voz permanentemente crítica porque eu continuo a dizer – e já disse a alguns políticos que eu conheço – que não é a saída do MPLA que vai deixar definitivamente com que a diáspora que tem tido sempre um papel crítico de olhar criticamente para quem vai segurar os destinos do Estado. É como se fosse um elemento de prova política permanente de quem dirige os destinos do Estado na medida em que não é de forma alguma um corpus inorgânico que decide ou pretende obter poder, mas que quer um diálogo em que ele possa apontar esses erros para que que quem gere o Estado e os poderes do Estado o faça de uma forma que nem os que estão fora nem dentro do país sintam que não estão representados por esse exercício de poder. É [necessário] as pessoas sentirem que aquilo os representa. As pessoas não podem ser apresentadas como um elemento de garantia de poder quando do meu ponto do vista deviam ser garantia de serviço, porque há aqui um elemento que é o de servir, um elemento que foi completamente colocado de parte e toda a ação política, no fundo, visa única e exclusivamente – e como eu insisto em dizer – tem como objetivo primeiro, último e único a manutenção do poder, ou o controlo pelo poder. E isso tem que ser alterado. É fundamental e a diáspora tem um papel muito fundamental na medida em que ela é a primeira voz não condicionada, tem um quadro social, político e económico no espaço onde ela está presente completamente diferenciado de quem está no interior do país [onde] recebe todas as formas de pressão, de ostracização, perseguição e fragilização da própria sociedade civil por vias diversas, desde a corrupção que se faz às pessoas, a marginalização pela incapacidade de encontrar enquadramento profissional, social, a pressão das famílias que também é exercida pelo próprio poder do Estado por via de órgãos como os do serviços de inteligência, forças policiais e toda a sorte de relações. Nós não nos esqueçamos que as nossas sociedades estão profundamente marcadas por relações familiares. O nepotismo ou as relações de interferência dele na ação social são mais a incomensurável distância enorme. As pessoas não têm essa noção muitas vezes quando se fala dos nossos países não se consegue olhar para isso, porque só quem os conhece é que consegue [perceber] como é que estes elementos têm um impacto muito decisivo naquilo que é são as relações que existem no seu interior e na diáspora.

E essa diáspora que apesar de há pouco ter dito que não está coartada, mas está, se olharmos para aquilo que são os seus poderes de participação política…

Sim, a nível de participação política, a diáspora foi sistematicamente sabotada na medida em que o país nasceu de um digladiação militar, mais do que político, nós fizemos de porteiros do inferno da guerra dos outros e nunca conseguimos construir a ideia de que quem está fora do país também ama o país, quer o melhor para o país e que a análise crítica destas pessoas em relação ao que acontece ao país não visa o derrube ou à destruição do Estado ou de colocar o poder na rua: visa fundamentalmente que quem tem administração do Estado se lembre de que ele é transitório, passageiro e que enquanto lá está lhe é atribuído uma responsabilidade de serviço e não uma responsabilidade de se outorgar poderes de dono, de autoridade que dá ordens e que não precisa de obedecer absolutamente ninguém ou sentir que só faz o que quer e não aquilo que é necessário para o próprio país e o bem-estar dos cidadãos.

E neste caso, qual é a reflexão que a Plataforma de Reflexão de Angola tem estado fazer?

O que nós procuramos ao longo destes anos com a promoção dos nossos debates, encontros e conferência como a que foi feita justamente em 2017 aquando do ato eleitoral que “elegeu” os órgãos “democráticos” que temos no país foi pensar o país nestas diversas dimensões colocando as pessoas a pensarem por elas próprias sobre o que esperamos destas mudanças, o que queremos em relação a todos esses aspetos que fazem parte do funcionamento de uma sociedade. Nós em Angola temos duas dimensões que para mim são assustadoras: uma, o nível de ingenuidade, apesar do sofrimento de ostracismo e todas as formas horripilantes de pertencer a um país de têm sido vítimas ao longo destes anos terem sempre a crença renovada de que quem detém o poder vai protagonizar uma verdadeira mudança. Há aí como que uma relação masoquista ou sadomasoquista, misturada com o complexo de Estocolmo e esperança quase que ad eternum nas pessoas de que quem levou as coisas ao estado em que o país chegou é o ideal para protagonizar essa mudança esquecendo – como dizia a minha avó Isabel – que quem quer milagre tem que participar dele. E essas nossas reflexões que fomos fazendo ao longo destes anos eram no sentido de as pessoas perceberem que elas são a participantes da mudança e desse milagre que todos nós aspiramos: uma Angola completamente diferente da que temos – mais humana, mais digna, mais solidária – que eram elementos que, num quadro de guerra civil, se viam muito mais do que numa situação de boom económico. E agora com este estado de carência geral que o país vive é como que uma erosão destes comportamentos, dessas atitudes e dessa necessidade de se reafirmar. E o que nós queremos é exatamente isso: obrigar as pessoas a refletir, porque há muita reação e pouca reflexão o que leva também a posicionamentos precipitados, que leva as pessoas a caírem sistematicamente na mesma armadilha engendrada por aqueles que passam o tempo a olhar para essa mesma sociedade e saber como introduzir o devido ruído na comunicação no momento certo para desviar a atenção das pessoas para aquilo que é fundamental. Eu aqui cito algo que para mim é estrutural. Eu tenho tido muitos debates com pessoas que também estão sempre a pensar nestes casos como a Luzia Moniz: o nosso maior drama é que a nossa sociedade, de facto, atingiu um nível de fraude total: as instituições são uma fraude, a qualidade dos serviços é uma fraude, aquilo que é responsabilidade do Estado por quem exerce os poderes é uma verdadeira fraude, ou seja, há ai um conjunto de fraudes que criam um espaço ideal para quando os processos ocorram a possibilidade de não nascer torto ou nunca se endireitar está sempre presente. Eu acho que as pessoas precisam refletir claramente nisso. Deixarem aquela ideia de que pensar o interesse do país significa estar contra alguém em concreto. E essa é uma das grandes doenças que nós temos que é transformar questões que são de estrutura em questões pessoais. A tendência é [dizer que se] está a atacar o Presidente da República. Não. O titular do poder executivo para não é a figura que ocupa o cargo [ainda que] o cargo seja fundamental. Ou seja, aquilo para mim não é um espaço unipessoal. É um espaço de representação de uma Nação em que o indivíduo ou o sujeito que lá estiver ou se revê na Nação ou então claramente é um inimigo daquilo que aquele título, aquela responsabilidade exige. E eu insisto em dizer que o futuro em Angola passa pela inexistência da necessidade de homens fortes e passarmos a ter instituições fortes. A mim não me interessa homens fortes. Quantos homens fortes morre? As instituições caem porque falta homem forte?!!! Então, são estes questionamentos que para mim são, de facto, fundamentais que as pessoas precisam carregar em si. E perceberem que nós somos passageiros em trânsito do próprio país e quem governa é ainda mais passageiro em trânsito do que qualquer um de nós. Pelo menos o cidadão é um título de que ninguém te rouba e não é transitório. É desde o teu nascimento até ao teu fim, enquanto o de governante, ministro, diretor isso é estar, não é ser. Mas nós transformamos o estar em ser, daí as pessoas acharem e acreditarem que a única forma de fazer a transformação social, política e económica num país é estar dentro da estrutura do Estado quando isso pode ser exercido todos os dias aos mais diversos níveis em lugares diferentes. É claro, há um quadro de responsabilidades com níveis completamente diferentes, mas todos nós – mesmo cidadãos comuns – temos responsabilidades de que não pode fugir. Quando as pessoas dizem “eu não quero saber de política, eu não me meto em política” estão claramente a dar o seu agrima para quem está lá a fazer e desfazer. Esse sujeito, quando tivermos que avaliar o quadro das responsabilidades ele tem legitimidade para dizer “eu fiz tudo isso porque ninguém me impediu [pois] toda a gente sabia que eu fazia”. Ou seja, a evocação disso não quer dizer que ele tem que ser desresponsabilizado mas temos também que nos questionar sobre o nosso nível de responsabilidade. Eu acho que isso é fundamental.

“As pessoas já trabalham automatizadas em relação ao senhor ´ordens superiores`”

Olhando ainda para a forma como a diáspora está a olhar e intervir no país, acha que a criação de uma plataforma política era uma solução?

Acho que mais do que plataformas políticas, a diáspora tem que ter um sentido de cidadania e participação política muito alta, onde os egos têm que ser reavaliados e colocados ao serviço de um único objetivo, porque quando se constrói algo todos os intervenientes naquela construção têm importância. Não é arquiteto porque fez a planta da construção que é mais importante, ou o construtor civil e o engenheiro que coordenam a ação, ou o pedreiro, serralheiro, ferreiro, canalizador… Ou seja, uma obra depende de todos os seus intervenientes e também temos na diáspora, que é um prolongamento da representação micro do espaço nacional, estes mesmos problemas: tal como no país há pessoas que consideram que o que acontece lá é um problema delas porque têm as suas vidas resolvidas, na própria diáspora também temos estas posições, estas posturas de pessoas que vão ter outro tipo de envolvimento mas provavelmente não vão a uma manifestação. E é importante que todos os que estão envolvidos percebam que há pessoas que o nível de intervenção delas é ai, outras cujo nível de intervenção é aqui. É por isso que eu falava da questão de uma obra de construção. As pessoas intervêm aos mais diversos níveis. Isso não pode servir para usar as velhas doenças do passado de que “eu como estou na linha do protesto visível e público sou mais sacrificado, ou lutei mais ou sou mais importante no meio deste processo todo, porque esta doença existe. É um bocado como aquilo que eu chamo de Complexo do Salvador que nós temos nos nossos países. Quantas pessoas por terem participado na luta pela independência não tinham o discurso de que “eu lutei para vos libertar”. É um bocado do [género] “eu protestei, tenho uma ação política e cívica aqui e isso é que está a permitir vocês chegarem a isso”. Não, acho que esta parte tem que ser retirada. As pessoas precisam de despir disso e perceberem que o que está a ser feito agora visa um único objetivo: garantir ao futuro às gerações que não serão as nossas que eles não têm que voltar a lutar pelas mesmas razões que nos levam hoje a querer de facto uma alteração no que temos no país. E isso para mim é fundamental. A diáspora tem que ter a capacidade – justamente porque os cidadãos vivem em sociedades democráticas, abertas, de debate político público, desde que não se chegue a ofensa pessoal gratuita e denegrir o bom nome das pessoas, é possível e é aceitável – de poder fazer. Agora, temos é que decidir assumir cada um ao nosso nível e naquilo que podermos contribuir à nossa responsabilidade.

E isso passa por uma melhor educação, ou há outras formas de resolver?

Eu acho que a educação é fundamental. Eu como sociólogo estou sempre a dizer que, infelizmente, apesar de a educação ser uma arma libertadora, se não tiver qualidade, principalmente qualidade cidadã e qualidade crítica, ela pode se transformar numa forma de reprodução das próprias desigualdades, isso porque quem tirar o curso superior vai se sentir um pouco superior a quem tenha uma formação secundária, por achar que sou doutor, tenho uma licenciatura, um mestrado. Neste processo eu tenho que ambicionar no quadro geral uma posição ao meu nível, quer dizer, tudo isso, porque depois se criam elementos classistas do qual temos todos nós algo em termos passados já interiorizado em nós que também com esses processos de continuidade colonial não conseguimos nos libertar. Então, essa responsabilidade é uma responsabilidade [que], por vivermos num tipo de sociedade em que vivemos, temos que nos autoeducar. A minha avó Isabel tinha uma expressão muito interessante que dizia: há uns que você tem que trabalhar para os educar porque ainda são educáveis. Há outros que como não se educaram, ou não foram educados têm que trabalhar no sentido de se autoeducarem. Têm ferramentas e possibilidades para fazer isso. Agora, interessa saber se a pessoa tem vontade e interesse.

Qual é o futuro da Plataforma da Reflexão de Angola?

O futuro da Plataforma tem se estruturado de uma forma muito lenta, aparentemente classista para o discurso de muita gente por uma razão: eu tenho um percurso histórico que aprendi muito porque, como se diz, estive dentro da “barriga da besta”. Uma das coisas que se pode tornar perigosa para qualquer associação que tenha uma perspetiva iminentemente diferenciada daquilo que é as relações políticas do próprio país é se tornar permeável a pessoas que podem agir no sentido de a sua imobilidade ou extinção, porque infelizmente os serviços de inteligência do país se tornaram instituições para combater os cidadãos e as instituições que não fazem o discurso da continuidade e do poder como o fim de quem está hoje lá à frente. E para evitar esta permeabilidade o ideal é ter claramente associados que se sabem quem são de facto. E esse crescimento para futuro tem que ser sempre alicerçado no princípio de quem é quem realmente entra para a associação. Não é uma questão de elitismo, mas de assegurar a existência dela.

E nisso encontra-se jovens que tenham esse compromisso?

É interessante na medida em que alguns até têm esse perfil mas também têm prioridades, e podemos dizer que têm limitações também reais de recursos e algumas vezes estão em posições de trânsito aqui na diáspora, com as famílias em Angola que lhes recomendam a fazer apenas aquilo que foi a razão que lhes fez vir a Portugal. E isso cria uma demanda da parte deles em priorizar também aquilo que objetivamente são as razões da sua permanência cá. Algumas pessoas até dizem: “eu até participaria nisso, mas não gostaria que o meu nome aparecesse”. Eu percebo claramente que as pessoas de uma de outra forma queiram se proteger. Como eu dizia: as famílias têm um poder de intervenção muito grande na vida das pessoas, porque muitas das vezes é às famílias que se vai atacar, dizer determinadas coisas em relação àquilo que os seus membros na diáspora fazem [do género]: “olha é avisar ao vosso filho, ao teu irmão ou ao teu primo. Ele que tenha cuidado. Olha que as coisas…”. [Até hoje] isso continua claramente presente [cá], mas as pessoas acham que não. Mas aquela famosa ideia das “ordens superiores” infelizmente é aquilo que eu costumo insistir em dizer: ele ganhou automatismo. Já nem é preciso que o senhor “ordens superiores” dê de facto ordens. As pessoas já trabalham automatizadas em relação a isso porque elas tomam as dores dos seus superiores hierárquicos e agem muitas das vezes com autonomia que a máquina tem interesse que ocorra porque depois sempre se pode desresponsabilizar dela e queimar estes elementos mais vulneráveis nessa corrente que eles criam para mostrar até mais tarde que estão comprometidos com as dinâmicas democráticas, com os direitos civis, políticos das pessoas e os direitos humanos.

O sociólogo Manuel dos Santos faz agora 50 anos e uma das coisas que tem estado a defender é a necessidade de renovação dos atores políticos em Angola. Entrado para essa nova faixa etária, é o caso de pensar nisso?

Eu quando falo da urgência da renovação eu não tenho claramente ambições políticas. Costumo dizer que, felizmente, sou um homem sem agenda. Envolvo-me nos processos por acreditar que a minha pequena contribuição pode trazer alguma alteração também tendo em conta um provérbio africano que diz que “quem se julgar insuficientemente insignificante para protagonizar algum tipo de mudança que passe uma noite com um mosquito”. Eu acho que todos nós podemos ser um bocado mosquitos em relação a quem está naquele compartimento connosco. É claro que muitas vezes quando os mosquitos incomodam, alguns deles ficam aí no terreno. Faz parte do processo. Mas em boa verdade fica claro que ninguém é insuficientemente insignificante para não levar a uma atitude de mudança ou pelo menos colocar redes na janela para que não entre os mosquitos. Ou seja, protagonizar mudanças ou alterações no espaço onde ele está para que as coisas funcionem melhor. Eu acho que a ideia de renovação é fundamental nesse sentido porque há quadros e pessoas com muito menos idades do que eu mas que são altamente perigosas se comparadas até com a geração das independências. Os seus comportamentos chegam a ser assustadores. E quando eu falo da renovação é mesmo no sentido de comportamentos: uma alteração de facto em que a gente perceba que os comportamentos sofreram uma viragem.

“Para eu ir fazer qualquer coisa para Angola eu preciso de muito pouco”

Olha para aquilo que a realidade nos PALOP e em Angola, em particular, como é que se materializa isso?

Acho que há muita gente que quer fazer as coisas mas que não têm encontrado espaço e também não têm ambição de ocupar cargos políticos. Aquilo que eu dizia: o que querem é colocar o seu conhecimento técnico, a sua capacidade para protagonizar estas alterações com projetos, às vezes, pequenos em lugares muito concretos para as coisas se transformarem porque nós estamos sempre a fazer uma avaliação de mudança e “desenvolvimento” esquecendo o que realmente as pessoas precisam nestes lugares. Será que as pessoas querem fábricas como nós estamos a pensar [quando falamos nessa] ideia de desenvolvimento, com fábricas, indústria e tudo isso? Ou seja, temos que ser realistas com a realidade que existe lá onde a vida das pessoas acontece todos os dias. Nós transformamos os nossos países em espaços urbanos. Quando a gente fala em Maputo está a pensar Moçambique, quando fala em Luanda está a pensar em Angola, ou quando fala em Bissau está a pensar na Guiné inteira. Há mais Angola para além das cidades do litoral, há mais Angola para além das capitais de província, há mais Angola do que os municípios que toda a gente conhece, ou seja, há tudo por fazer em toda a parte e há muita gente que pode estar nestes lugares a colocar o seu conhecimento e a aprender com as pessoas que lá estão porque ao longo destes anos ninguém se questiona como é que essa gente foi completamente abandonada, não lhes colocaram recursos técnicos para fazer o que é necessário para garantir a vida e [ainda assim] sobreviveram no meio destes anos todos. Isso não pode ser ignorado. Quem dirige o país, quem está nestes lugares está lá numa visão patrimonialista porque foi essa cultura que se criou. Se tu vais para um cargo público e tem uma responsabilidade técnica tens que primeiro equacionar a tua condição material financeira invés de teorizar claramente aquilo que são as valências e recursos que existem nos locais que são feitos pelas pessoas.

Este exercício todo passa por dar condições de a diáspora participar ativamente?

ONG que integra a diáspora angolana
Sem dúvida. Eu te confesso: particularmente se me convidarem para ir dar formação ou fazer coisas em Angola eu não me interesse se for no Kubango, Calai em Cuando-Cubango ou se Chicala-Choloanga, no Huambo, ou se vou Nóqui, em Uíge. Eu vou. Só preciso de um lugar para me proteger, porque eu não vivo na rua, e comer. Para eu ir fazer qualquer coisa para Angola eu preciso de muito pouco. E tal como eu conheço N pessoas que querem ir fazer isso. Só precisam destas condições elementares. Nós de uma ou de outra forma com toda a sorte de dificuldades que possamos ter na diáspora porque representamos sempre um corpo diferente na sociedade em que nós estamos enquadrados e queremos pertencer também – porque eu não acredito no discurso da integração. Aliás eu não quero ser integrado, eu quero é pertencer o espaço onde eu pago imposto, os meus filhos crescem e vão para a escola. Sentir que apesar de eu vir de um lugar diferente eu ali pertenço. Não sou um corpo estranho e que há um favor que me está a ser feito. E essas pessoas todas querem ir fazer isso – seja na área da Medicina, Engenharias, trabalhem na construção civil, que têm de facto expertise por causa dos anos que estão cá – aos diversos níveis, as pessoas fruto desta vida na diáspora têm contribuições que podem dar cada um ao seu nível, organizadas as coisas, vistas objetivamente o que se quer, eu duvido que um irmão que é mestre de obras aqui ou é estucador, ou seja o que for na área da construção civil não queira ir dar uma formação prática a um conjunto de pessoas. Durante muitos anos nós todos nos esquecemos que as nossas casas eram construídas por nós. Ou seja, sempre houve uma expertise e aquelas casas não caiam por cima das pessoas, não matavam as pessoas, porque havia um elemento lógico para manter as casas de pé. É claro que queremos casas um bocado diferentes, com esgotos, com energia elétrica. Podemos fazer tudo mas pensando de forma colateral em que as valias se cruzam e complementam umas as outras. Isso pode ser feito. Eu me pergunto porque é que o próprio país prefere, quando há contratação de empresas [estrangeiras], sabendo que tem seus cidadãos na diáspora, não exigir que o pessoal que 50 ou 70% do pessoal seja gente da nossa diáspora, porque eles sabem para quem estão a vir trabalhar e que vão fazer bem as coisas porque estão a pensar nos irmãos deles. Onde é que está isso? Isso é ação política, governativa e gestão do Estado. Não é pensada porque quem está no meio deste processos tem receio e parece que lhes é assustador, porque tem a ideia do retorno dos seus irmãos ao país significa um assalto às posições que eles ocupam na estrutura técnica, política e tecnológica do país, quando, na verdade, o país precisa de toda a gente e muito mais que os angolanos e a sua diáspora não conseguirão ser suficientes para dar respostas às necessidades que o país tem no futuro para assegurar a todos os cidadãos a dignidade que ele pode de facto dar as pessoas. Vamos precisar, para além da diáspora, de cidadãos com outras valências e saberes vindos de outras partes do mundo. É essa mensagem que não existe na cabeça de muitos angolanos. Quer-se muito uma mudança mas esquecesse dessa importância de todos aqueles que vão ser necessários para protagonizar essa mudança.

Olhando para a situação socioeconómica angolana e para a situação sanitária mundial e o futuro de Angola. Qual é a palavra que podia ser usada para que Angola desse um boost?

Eu acho que Angola, como a maioria dos grandes países africanos, tem uma vantagem competitiva comparado com o resto dos continentes: nós somos o continente que tem a força do mundo pela sua juventude. Não há nenhum continente que tenha mais gente jovem no mundo, na atualidade, do que África, de facto.

Mas mal formada

Não estou a desdenhar isso. Eu ainda ia entrar com o segundo aspeto que era de facto um investimento a todos os níveis. Quando se fala de formação, a mim assusta-me sempre essa ideia de que todos têm que ser licenciados, e regra geral maus licenciados, por causa da qualidade do ensino. A mim interessa mais as pessoas terem formações sólidas que lhes permitam cruzar com o saber da própria terra [e saber questionar]: esta planta para que server? É comestível? Pode ser usada na medicina? E todas esses saberes que são permanentemente ignorados e que vai sempre buscar aquela ideia do feitiço e da superstição infelizmente, que podem ser capitalizados no sentido positivo se existir a capacidade de estabelecer um diálogo com estes detentores de um saber que foram sempre ignorados porque quem geriu os nossos países continuava com o discurso colonial de que nós não produzimos ciência, conhecimento nem absolutamente nada, quando isso está lá e as pessoas foram simplesmente ignoradas, consideradas como indivíduos que quiseram manter superstição com o discurso da tradição. E essas pessoas podem ser claramente educadas ao nível daquilo que são as próprias sociedades como ao nível de uma formação profissional e técnica sólidas, e depois quem quiser ser licenciado, mestre ou doutor também. Mas tem que se apostar claramente na qualidade do que se quer transmitir, porque se não houver uma aposta na qualidade – não é transmitir às pessoas, mas fazer uma aposta na qualidade do que deve se transmitir às pessoas -, porque quando se aposta na qualidade introduz-se um elemento crítico que é aquele que obriga a pessoa a ter que pensar permanentemente [pois percebe que] para além da possibilidade que estou aqui a observar ainda há mais cinco mil ou 15 mil possibilidades no meio de tudo isso. Este é o caminho para um país como Angola ou qualquer outro país africano que tem de facto uma pujança. Já nem digo quando falam da riqueza mineral do país para mim tem que se apostar fortemente nas pessoas para serem a riqueza de um país. É por aí onde passa tudo. Agora, pensar no preço de petróleo que agora vai subir ou descer… Não. Pensa as pessoas imediatamente, invistam nas pessoas, na qualidade de vida das pessoas, na qualidade da água que elas precisam, na qualidade do saneamento básico, na qualidade da escola onde essa geração mais nova vai entrar, acabar com facilitismo, colocar os miúdos a pensar que para se chegar a alguma coisa tem que se trabalhar. As pessoas têm que se responsabilizadas. Na vida ninguém recebe nada de graça – como dizia a minha avó Isabel – a não ser a graça de Deus, para quem acredita. Ou seja, temos todos esses aspetos que claramente tem que ser a primeira prioridade para garantir futuro mas futuro estruturado, porque se pode garantir um mau futuro. Também chamam-lhe futuro. (MM)

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