A revolta dos lusodescendentes renegados

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Manuel Matola

Durante 25 anos de vida, Claudiana Klein de Melo e o pai biológico não faziam ideia da existência um do outro, porque este segredo foi-lhes sempre ocultado. Quando desvendado, ambos passaram a ter uma incontestável relação de pai-filha.

A brasileira decidiu assim obter a nacionalidade do progenitor português, mas até hoje trava, desesperadamente e sem sucesso, um desafio igual a de centenas de jovens da sua geração. Como Claudiana, estão também o Giovani, James, Luana, Herman…, todos lusodescendentes a quem sistematicamente lhes é vedado um direito com base no Artigo 14 da lei da nacionalidade portuguesa que impõe um limite para submeter o pedido de cidadania: 18 anos.

Claudiana e os companheiros de luta estão na idade adulta, pelo que decidiram, em uníssono, ecoar a voz de protesto com único propósito: revogar o artigo 14 da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, da Nacionalidade Portuguesa.

“É uma luta pela justiça”, diz a brasileira Luana Cunha, um dos principais rostos do movimento de jovens cuja “grande maior, senão a quase a totalidade, quer somente recuperar uma história de vínculo cortado com a família e de cessar uma discriminação que ainda persiste na lei portuguesa”.

Claudiana Klein de Melo e o pai biológico
Quando em 2015, Claudiana, nascida fora do casamento, conheceu o pai biológico, aproximou-se de imediato do progenitor português de tal forma que as suas vidas ganharam uma dinâmica semelhante a de duas pessoas que convivem juntas a vida inteira.

“Encontrei-lhe rapidamente pesquisando. Desde o dia em que descobri a minha verdadeira paternidade até encontrar o meu pai foram sete dias. Foi muito rápido. Instantaneamente tivemos um contacto. Aproximamo-nos muito e foi como se tivéssemos convivido a vida inteira juntos. Somos muito parecidos não só fisicamente mas nas questões de personalidade. Fizemos o exame de ADN” e o resultado foi positivo, conta a brasileira ao jornal É@GORA.

Giovanni Peixoto foi reconhecido judicialmente como filho de um português quando tinha 27 anos. Hoje, o brasileiro residente em Espanha está casado com um cidadão português, mas nega-se a tirar proveito dos direitos conferidos pela relação conjugal oficial para ter vínculo formal com o Estado português.

Giovanni Peixoto
“Não quero adquirir a nacionalidade por via do casamento com o meu parceiro”, diz o brasileiro exigindo que se dê sentido ao espírito da lei que confere este direito a quem esteja na linha de sucessão sanguínea. Pretende, por isso, que o resultado do exame de ADN que veio a confirmar a descendência portuguesa lhe seja juridicamente útil.

Giovanni tem uma irmã menor que também nasceu no Brasil, mas que é portuguesa desde sempre. São ambos filhos do mesmo pai, entretanto, de mães diferentes. Giovani rebela-se.

“Não é justo que a minha irmã possa ser portuguesa e eu não”, diz ao jornal É@GORA numa conversa a partir da Galiza, comunidade autónoma espanhola, onde atualmente reside com o marido.

A recusa das autoridades portuguesas em conceder nacionalidade aos filhos e netos de portugueses que só tiveram conhecimento desta possibilidade na maioridade é extensiva ao jurista James Frade Araújo cujo histórico familiar “é muito parecido com o da grande parte dos descendentes que estão a ser hoje prejudicados pelo Artigo 14”, pelo que o brasileiro juntou-se à luta para modificar a redação da atual lei da nacionalidade que, há 40 anos, tem sido sistematicamente alterada.

O jurista brasileiro James Frade Araújo
“Nas conservatórias, por mais que o requerente consiga juntar um série de documentações, sempre acaba esbarrando no artigo 14. E o principal argumento [jurídico] que vimos consolidando é com base nos artigos 34 e 36 da Constituição da República Portuguesa que diz o seguinte: ´os filhos nascidos fora do casamento não podem por esse motivo ser objeto de qualquer discriminação`. E as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação”, mas usam-na, denuncia o jurista brasileiro em entrevista ao jornal É@GORA.

Há dias, o advogado Julian Dias Rodrigues, que defende a inconstitucionalidade do atual diploma e apoia o grupo de jovens renegados a nacionalidade portuguesa, lançou uma petição visando revogar “o artigo 14.º1 da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, Lei da Nacionalidade, [que] é discriminatório para os filhos nascidos fora do casamento”.

Nessa luta, os subscritores do documento, muito dos quais a residir fora de Portugal – uns no Brasil, outros na Venezuela, Cabo Verde, Angola, África do Sul, Espanha… – apenas “pretendem que esta norma deixe de vigorar”, lê-se na petição a que o jornal É@GORA teve aceso.

Luana Cunha que passou a enfrentar o desafio de aquisição da nacionalidade portuguesa por via sanguínea como uma das prioridades de sua vida descobriu que, com base na atual redação do Artigo 14 do diploma, jamais terá esse direito.

A brasileira assegura, no entanto, que não vê a nacionalidade portuguesa “como um passaporte de facilidade” numa eventual vida na Europa, onde nem sequer tenciona residir “para já”; apenas pretende que haja reposição de um direito como os que estão consagrados na Constituição para quem tem laços de sangue com Portugal, tal com possuem hoje os descendente de judeus sefarditas portugueses.

Luana Cunha
“Eu quero o meu direito, o direito da minha família, um direito de sangue para conseguir transmitir essa descendência, cultura, nacionalidade para os meus filhos e toda a trajetória da minha avó que veio lá de Portugal muito jovem”, afirma.

Através das redes sociais, Luana Cunha começou por juntar um, dois, três conhecidos. Com o tempo, apareceram o quatro, quinto, sexto e… centésimo filho ou neto de portugueses cujas estórias de vida coincidem com a sua neste ponto em que a lei os esbarra, apesar de diferentes fundamentações que se lhes é apresentada na hora de rejeição de aquisição de nacionalidade portuguesa.

Hoje são “umas 150” as pessoas com quem Luana e outros principais promotores desta batalha conversam diariamente para delinear estratégias de luta jurídica visando obter um resultado: “A revogação do Artigo 14”, nome atribuído nas redes sociais ao grupo de lusodescendentes que na maioridade pretendem obter a cidadania, um problema que, de resto, “afeta igualmente familiares de deputados” portugueses.

“É que as pessoas também têm muita vergonha de falar sobre essa causa porque tem situações de abandono, de ser filho de fora de casamento, tem filhos fruto de abuso sexual, situações de guerra civil”, enumera Luana.

O angolano Herman Jaime, imigrante no Brasil
O conflito armado que eclodiu após a independência de Angola “tramou” a mãe do angolano Herman Jaime e uma família inteira que até hoje não consegue ter contacto regular com as suas “raízes por questões burocráticas”. Em 1975, o avó português do jovem angolano retornou a Portugal antes de registar a sua filha à nascença. No ano em que a mãe do Herman nasceu, Angola acabava de se tornar independente e as crianças de então já não eram automaticamente portuguesas, mas angolanas. Com o fim da guerra civil, altura em que Herman já era nascido, a mãe estava na maioridade, pelo que Portugal muda também a lei de nacionalidade em 1981, impedindo-a de ser portuguesa. E, por arrasto, o filho angolano hoje também não pode reivindicar automaticamente esse direito. Herman é neto de um português mas como a mãe, por terem mais de 18 anos, não têm direito a obter a nacionalidade por via do avô português.

“A minha mãe é terceira filha e nasceu no período pós independência. Quando iniciou a guerra civil, os outros irmãos já se tinham registado e foi altura em que o meu avô acabou por deixar o país. Então a minha mãe não foi registada e só teve o registo na maioridade anos depois quando ele regressou a Angola. Quando demos entrada ao processo, de pedido de nacionalidade, vimos esse direito ser rejeitado. Tenho parentes que pese embora tenham sido registados na minoridade, acabaram por perder documentos [e hoje] se depara também com o Artigo 14. Este é uma situação que acaba por criar uma separação entre os filhos”, conta Herman hoje imigrante no Brasil, onde começou o seu pedido de nacionalidade há sensivelmente três anos, período que conheceu a brasileira Luana Cunha via internet.

Depois de sucessivas tentativas de aproximação aos partidos políticos com assento parlamentar, o grupo de jovens que exige a revogação do artigo 14 registou avanços e recuos nessa luta que é patrocinada por quase todas as forças políticas representadas na Assembleia da República. Hoje o processo até pode prosseguir – acreditam -, mas “aparentemente emperrou” depois da recente queda do governo minoritário do PS, suportado pelo Bloco de Esquerda e PCP, a convocação de novas eleições e constituição do novo executivo e parlamento.

FOTO: Martins&Oliveira
Em abril último, o PSD voltou a apresentar uma iniciativa legislativa visando remover os “obstáculos burocráticos” que, no plano legislativo, afastam Portugal “de todo este universo de lusodescendentes”.

Na sua fundamentação, o PSD assinala que o atual artigo 14.º da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, dispõe que “só a filiação estabelecida durante a menoridade produz efeitos relativamente à nacionalidade”, mas hoje essa redação é uma situação que, “obviamente, vem criar casos de enorme injustiça para muitas pessoas cujos progenitores, pelas mais variadas razões, só reconheceram a respetiva paternidade na sua idade adulta”.

No documento a que o jornal É@GORA teve acesso, a bancada parlamentar dos sociais democratas considera estar “muito claro” que o futuro de Portugal “passa cada vez mais pela mobilização dos milhões de pessoas que existem no Mundo com origem portuguesa, ampliando assim as oportunidades, os mercados e o capital de influência do nosso País”.

Entre “milhões de pessoas” nessa condição estão jovens na maioridade como Giovani, James, Luana, Herman, Claudiana…, todos filhos e netos de portugueses que são agora rejeitados o direito à cidadania por conta do Artigo 14 da lei da nacionalidade portuguesa. (MM)

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