Manuel Matola
O Estado angolano arrebatou hoje 36 peças num leilão em Lisboa de um coleccionador privado português com um longo histórico de imigração naquele país lusófono. É a primeira vez desde a independência que Angola compra peças de arte do próprio país nestas condições.
Foi um compromisso de desembolso de “quase 80 mil euros” que a embaixada angolana assumiu em representação do Estado que devidamente o delegou a uma licitação, segundo disse ao jornal É@GORA uma fonte presente no leilão.
Em nota hoje divulgada, a Embaixada de Angola em Portugal anunciou que a aquisição de “36 das 38 peças” de artesanato nacional foram leiloadas em Lisboa pelos herdeiros do Engenheiro Elísio Romariz dos Santos Silva, um coleccionador de arte português que foi comprando os artefatos durante vários anos em que viveu em Angola.
Mas representação diplomática de Angola não conseguiu recuperar duas das peças que foram adquiridas no leilão por um privado.
Há uma razão: só uma das peças custava 110 mil euros, pelo que foi “devido ao elevado preço de licitação” que Angola não pôde recuperar a obra, justifica a embaixada.
Uma das duas peças não arrebatadas “é uma máscara ‘Mwana Pó’, que figura nos apontamentos impressos destruídos aos licitadores como ‘A Escultura Tribal dos Povos Bantu’, versão actualizada de 1995, do trabalho com o título ‘A Escultura Negro-Africana Vista à Luz da Filosofia Bantu’, que o autor apresentou em 1971 por ocasião dos XXII Jogos Florais da Câmara Municipal de Nova Lisboa [hoje Huambo]”, lê-se na nota enviada ao jornal É@GORA pela embaixada angolana em Lisboa que entretanto destaca a recuperação da quase totalidade das obras como um feito com significado histórico.
“A recuperação destas 36 peças, em leilão de um coleccionador privado, o que sucede pela primeira vez desde a independência nacional, vai enriquecer o acervo cultural de Angola, naquilo que sublinha a importância da recuperação e
preservação da cultura nacional, das artes e do seu significado para cada povo”, diz.
E mais: Trata-se, “também, de um modo de afirmação da defesa da identidade e da salvaguarda do nosso património”, sublinha a nota da representação diplomática angolana.
Para a Embaixada de Angola em Portugal, o seu empenhamento “na recuperação do maior número de peças desta colecção insere-se no esforço nacional para que as futuras gerações tenham contacto directo com o artesanato nacional elaborado nas décadas de 50, 60 e 70 e assim reforcem as suas raízes culturais”.
O Engenheiro Elísio Romariz dos Santos Silva, um dos que participou na criação do Museu de Etnografia do Lobito, estabeleceu os primeiros contactos com arte no Museu do Dundo, uma instituição que lhe permitiu aprofundar o interesse pela cultura angolana.
Uma luta global pela devolução da arte roubada ou “levada”
A devolução de peças de arte espalhadas nos países ocidentais, alguns dos quais ex-potências coloniais, tem sido uma das maiores discussões da atualidade quer dos próprios Estados africanos, quer no seio academia e com contornos políticos a nível global.
No ano passado, a Alemanha devolveu 21 artefatos saqueados do antigo reino de Benin no século XIX.
Em 2020, a ex-deputada Joacine Katar Moreira, historiadora de formação, levantou um debate no Parlamento português sobre a devolução de toda arte africana que Portugal retirou dos países africanos lusófonos durante a época colonial, uma sugestão entretanto chumbada pela Assembleia da República portuguesa.
Na altura, o deputado André Ventura, líder do Chega, partido da extrema-direita e anti-imigração, propôs que a deputada luso-guineense Joacine Katar Moreira, ainda em representação do partido LIVRE, fosse “devolvida ao seu país de origem” .
A proposta que Joacine Katar Moreira inscreveu no manifesto eleitoral quando ainda estava vinculada ao partido LIVRE, constava também do programa eleitoral do PAN (Pessoas–Animais–Natureza) às legislativas de 2019, e era semelhante à iniciativa que o Presidente francês, Emmanuel Macron, que na altura pretendia levar a cabo uma ação similar no sentido de restituir todos os artefactos às antigas colónias africanas.
No seu manifesto eleitoral às legislativas de 2022, o LIVRE voltou a defender a necessidade de “Descolonizar a cultura, contextualizando a história de Portugal nos museus, exposições, performances e materiais didáticos para que seja estimulada a visão crítica sobre o seu passado esclavagista, colonial e de violências perpetradas sobre outros povos e culturas e reconhecido o seu legado e influência na sociedade atual; promovendo uma listagem nacional de todas as obras, objetos e património trazidos das ex-colónias e que estão na posse de museus e arquivos portugueses de forma a que possam ser restituídos ou reclamados pelos Estados e comunidades de origem”.
Para o partido liderado pelo historiador Rui Tavares, atualmente deputado único daquela força política de Esquerda, é fundamental promover “a articulação internacional entre especialistas e historiadores para contextualizar e aprofundar a história dos vários locais e regiões, de forma a desconstruir estereótipos e generalizações abusivas e discriminatórias”. (MM)
Fotos cedidas pela embaixada de Angola em Portugal