Bonga contra o silêncio de governantes africanos ante a desumanização de imigrantes

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Bonga, o embaixador da música angolana

Portugal vai a votos nas legislativas de 6 de outubro e o facto de surgir um certo número de afrodescendentes nas listas de alguns partidos políticos portugueses não significa uma mudança relevante e abertura suficiente para a integração plena dos imigrantes na sociedade portuguesa. Quem o diz é o cantor angolano, Bonga, em entrevista ao Jornal É@GORA, à margem da Festa do Avante.

O surgimento de nomes de alguns cidadãos nascidos em África nas listas partidárias concorrentes às próximas eleições legislativas em Portugal não signIfica, por si só, sinal de “grande abertura” quando se questiona sobre as políticas de integração dos imigrantes. Para Bonga, o mais relevante é “as pessoas respeitarem África e haver reciprocidade”, no plano económico, financeiro e cultural, que fortaleça as relações entre os povos e países.

O músico angolano considera que não chega ter voz no Parlamento, no Governo ou no seio dos partidos políticos portugueses. “O mais importante é a atitude, o comportamento das pessoas”, reforça o embaixador da música angolana, reclamando um tratamento igual entre os cidadãos, que não se limite à questão da representatividade.

O músico critica, por outro lado, o silêncio dos dirigentes de África face ao tratamento desumano que é dado aos africanos em vários países recetores de imigração e lamenta existirem casos de cidadãos a viverem na Europa ainda confrontados com situações de ilegalidade.

“É um silêncio de culpa”, desabafa em conversa com o Jornal É@GORA, quando abordado sobre a situação dos imigrantes que em Portugal ainda continuam, depois vários anos de espera, sujeitos à situação de indocumentados por razões burocráticas.

“Os nossos filhos não podem ser tratados do jeito que estão a ser tratados e encarados, nos outros lugares do mundo, por Estados que até fazem grandes ações de cooperação com os nossos países e da qual beneficiam”, diz.

O cantor angolano recua no tempo e defende que, logo após as independências, “devia haver definições concretas”, a partir da vivência dos povos africanos, por uma maior colaboração e maior humanismo na relação entre os países. “Não tem sido isso o que acontece”, reafirma, enquanto repousava no camarim, cerca de duas horas antes do concerto na primeira noite da Festa do Avante, na Quinta da Atalaia, situada na margem sul do Tejo.

“É preciso não sermos hipócritas nem cínicos”, avisa, porque “estamos a viver uma época desumana, muito complicada”. Na opinião do músico, “o rico continua a ser rico e o pobre continua a ser miserável, sobretudo quando têm que fugir da sua terra de origem e embarcarem para sítios onde pensam ter uma vida salutar, suave e humana”.

Bonga diz que, pessoalmente, tem alguma dificuldade em entender como é que os chefes de Estado africanos não reagem com veemência a situações em que se põe em causa o destino do ser humano.

“Continuamos a ser dependentes de estruturas [que praticam] uma espécie de neocolonialismo, que a mim me ultrapassa», assume.

“Então, estes homens que viveram na África não têm a capacidade de dar a volta por cima e [desenvolverem] uma cooperação humana, onde haja respeito pelas pessoas?”, questiona inquieto numa clara alusão aos países colonizadores da Europa que criam entraves ou rejeitam a imigração oriunda de África.

“Isso a mim faz-me confusão. É triste saber que indivíduos saem da sua terra natal e vão morrer no mar”, lamenta, aludindo aos episódios que ocorrem no mar do Mediterrâneo.


Noite de fusão e de muita animação

Bonga pela primeira vez no palco da Festa do Avante

Já com 35 anos de carreira, esta é a primeira vez que Bonga atuou na Festa do Avante, por ele considerado “um dos maiores eventos” de verão de Portugal, que tem lugar até este domingo.

Pouco antes do seu concerto esta sexta-feira, que aconteceu dia depois de ter celebrado os seus 77 anos de idade, o cantor angolano disse sentir-se “agradavelmente surpreendido nesta altura do campeonato” com os convites que continua a receber para cantar.

Brindou o público com os temas habituais do seu vasto e genuíno reportório, já conhecidos do grande público. A ele seguiu-se o projeto de fusão “Semba, Gumbé e Coladeira”, com a participação da angolana Liliana Almeida, do guineense Kimi Djabaté e do cabo-verdiano Rolando Semedo, igualmente diretor artístico do espetáculo dominado por ritmos tradicionais africanos.

Cantora angolana Liliana Almeida

Semedo disse ao Jornal É @GORA que a essência desta noite dedicada a África era trazer toda a expressão musical dos países africanos de língua portuguesa, juntando os respetivos artistas.

Com origem respetivamente em Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde, o semba, o gumbé e a coladeira, acrescenta, “são ritmos mais ou menos parecidos e dançáveis”. Concorda que isso reflete em parte a mistura que hoje carateriza a sociedade portuguesa, a qual coabita serenamente com a cultura africana graças ao contributo da “grande diáspora” que escolheu Portugal para viver.

Filha de um percussionista profissional do semba, a luso-angolana Liliana Almeida apostou em ritmos tradicionais, fruto da recolha que fez de temas do folclore angolano.

Apresentou ao público parte do seu trabalho original, somado a demais canções que compõem o seu percurso de quase 20 anos. “Fazem-me lembrar muitas coisas boas da minha infância, das festas, dos convívios e das memórias de Angola contadas pelos meus pais”, explicou à nossa reportagem.

Foi uma noite de fusão e de muita animação, que aproveitou para transmitir uma mensagem de positividade e de amizade, de partilha entre o público e os músicos. É nesta perspetiva que aplaude o surgimento de afrodescendentes, sobretudo de mulheres negras, integrados na vida política portuguesa e a concorrerem para o lugar de deputado nas próximas eleições legislativas.

Entretanto, exorta a uma maior participação dos africanos e afrodescendentes para que as vozes das chamadas “minorias étnicas” sejam ouvidas. Quer ver mais mulheres no poder, fruto de muito trabalho em busca de visibilidade, em defesa da igualdade de direitos e por uma integração plena a todos os níveis.

Liliana Almeida louva, neste sentido, o trabalho que têm feito pessoas ligadas aos movimentos associativos, empenhadas em fazer a diferença. “Acho que já foi muito pior”, recorda, dando o exemplo dos bairros sociais habitados por elementos das comunidades imigrantes, construídos de forma integrada na arquitetura urbana das cidades e freguesias.(X)

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