Manuel Matola
Aos 19 anos, a imigrante brasileira Natália vai votar pela primeira vez a partir de Lisboa, mas a sua participação na eleição presidencial que poderá (re)definir o rumo dos “ideais de ódio” no Brasil está dependente da transferência do seu título de eleitor para Portugal.
“Estou a ter um probleminha com isso”, diz ao jornal É@GORA a estudante do primeiro ano de licenciatura em Biologia na Universidade de Lisboa que, apesar da estreia nesse tipo de processos, tem clareza sobre qual será seu sentido de voto.
E é omitindo deliberadamente o nome de um dos candidatos que Natália partilha a visão atual e prospetiva do Brasil com que sonha.
“Meu Deus, como é que alguém votaria numa pessoa que tem ideais tão baixos?”, questiona Natália ao lembrar-se da pergunta que fez a si mesma há quatro anos quando ainda tinha 15 anos e acabava de ingressar no colégio no Brasil.
Foi aí que a futura bióloga começou a percecionar as crispações que havia na sociedade brasileira no ato de escolha de candidatos às presidenciais, tal como hoje.
“Na altura eu ainda não tinha uma clara noção sobre isso. Estava entrando no colégio. E aí ficava observando os dois lados [dos eleitores] e questionava-me dizendo: meu Deus, como é que alguém votaria numa pessoa que tem ideais tão baixos? Tentava entender um lado e outro. Hoje já percebo mais. Na época também tinha um pouco mais de esperança, pelo que pensava: se [o tal candidato] ganhar pelo menos que [o votante] faça algo. Que essa visão pessimista não ocorra realmente. Pelos vistos não funcionou muito”, diz ao falar sobre o Brasil, país que, para o economista José Aníbal, “está numa situação económica gravíssima”, dado que o Presidente “é uma tristeza”, segundo qualificou o filósofo Kleber Mazziero.
Ambos académicos foram convidados este mês, em conversas separadas, do programa radiofónico “Além Fronteiras!”, apresentado pelo ator e filósofo brasileiro Fábio Alexandrelli com quem o jornal É@GORA estabeleceu parceria para produção conjunta de conteúdos sobre a eleição presidencial brasileira de 02 de outubro próximo.
Semanalmente, o programa emitido na Rádio Movimento Portugal Online entrevista personalidades portuguesas e brasileiras de várias áreas culturais que lançam um olhar para a realidade mundial em tempos de Covid-19, com base também na “visão profunda sobre a existência humana” de Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Nesse espaço aberto de divulgação de figuras de Portugal e do Brasil para o mundo, o economista e político brasileiro José Aníbal resumiu o estado do sítio do seu país: “O Brasil está muito empobrecido”, lamentou o académico partindo da visão cosmopolita adquirida nas suas experiências migratórias.
Um dos parlamentares mais influentes do Brasil, José Aníbal, que viveu em França, admite que “o Brasil está um pouco à deriva”, e considera que a atual política económica “é muito deletéria”, pois “ela vai de um lado para o outro, ao saber de circunstâncias”.
E justifica a leitura: “No governo, você não tem confiabilidade em qualquer área. As agências reguladoras sofrem intervenções sistemáticas. Isso prejudica muito a intenção de investir, sobretudo, investimento produtivo”, diz, atribuindo responsabilidade ao governo que “tem a permanente atitude de que os culpados são os outros”.
E exemplifica: O executivo usa o discurso de que “o Presidente não faz mais porque o Supremo Tribunal não deixa. O Parlamento [sempre] administra em acordo político baseado em moeda. Hoje boa parte dos recursos de investimento no Brasil são operados por deputados federais e senadores através de um orçamento secreto que tem lá, que é pouco transparente, mas através das empresas que são ocupadas politicamente em troca de manter o Presidente e não dar espaço aos vários pedidos que já existem para o impeachment dele. É uma situação muito ruim”, refere.
Um cenário tão adverso que, segundo José Aníbal, estende-se a “todas as áreas. Não há uma só área que tenha a ver com o governo diretamente que não esteja a sofrer um processo regressivo [de] desorganização, falta de foco e de política bem centrada. Infelizmente é o que temos hoje”, afirma.
No Brasil que “vive uma regressão”, há um setor mais virado para jovens como os da geração da imigrante Natália que toca negativamente o maestro Kleber Mazziero, que se notabilizou pela sua carreira de escritor de livros e peças teatrais, assim como pelo papel de dramaturgo, cineasta, filósofo e docente universitário.
“Hoje em dia estou numa fase em que só re-ouço. Eu não ouço mais. E explico porquê: como eu dou aula numa faculdade de música, os meus meninos [alunos], durante as aulas, reiteradas vezes insistem para que eu ouça as músicas de hoje em dia, como eles dizem. E põem as músicas de hoje em dia para eu ouvir. Ouço. Mas de cada vez que eu chegou a casa eu coloco as músicas dos meus dias para limpar aquela referência que eu ouvi. A música de hoje em dia, especialmente, a mainstream – da chamada indústria cultural – é muito pobre discursivamente. Uma pobreza inacreditável”, diz.
E acrescenta: “São músicas compostas por cadências que nós usávamos no século XII/XIII da História da Música. Melodicamente, eu não consigo ouvir um cromatismo nas músicas de hoje em dia. Não tem um um cromatismo. Portanto, melodicamente, são músicas para antes do século XII/XIII. E, ritmicamente, em alguma medida, parece que nós rompemos total e completamente os nossos vínculos com as matrizes africanas, da música da América que é o que nós temos ou tínhamos de bom. Parece que rompemos esse elo, deixando-o totalmente para trás. Então, rítmica, harmónica e melodicamente as músicas de hoje são de uma pobreza inaudita que achei que não fosse ver acontecer. Mas alguém dirá: como são canções, e o âmbito da letra? Aí então está pior: a pobreza discursiva da letra e da canção popular estadunidense e brasileira têm problemas graves de prosódia, problemas gravíssimos de métricas. São canções muito mal estruturadas. Então eles [os alunos] mostram isso lá [na turma] e fico pé da vida. Quando volto a casa, coloco a sinfonia número 3 de Brahms e limpo a minha alma. É assim que eu ajo hoje em dia”, ironiza o filósofo.
“Não tenho dúvidas. Eu tenho uma amostra anual muito clara. Todos os meus meninos vão entrando ano a ano na faculdade. E a gente percebe claramente que há um problema cumulativo. O problema de hoje decorre do de ontem. Falando esquematicamente, por exemplo dentro da História da Canção brasileira que dominamos tão bem: a gente não pode imaginar que um compositor da envergadura de Dorival Caymmi tenha vindo do nada. A gente encontra muitos traços do Noel Rosa no Dorival Caymmi e no Ary Barroso. Essa geração gerará a geração do Tom Jobim. [Então aí entendemos a sequência de influência]: o Tom Jobim ouviu Dorival Caymmi que [por sua vez] ouviu o Noel Rosa. Tudo bem. A geração de Tom Jobim vai gerar uma geração subsequente, a de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, do Milton Nascimento”.
Kleber Mazziero prossegue: “Aí pergunto: se esta escadinha a gente vai fazendo de hoje para trás em algum momento temos que entender a escadinha do que se houve hoje em dia. Quer dizer, o compositor de hoje faz essa música tão empobrecida discursivamente porque ouviu alguém pobre discursivamente. E isso vai chegar em algum ponto”.
Como solução, o académico propõe duas saídas visando ajudar a encontrar o ponto de viragem: do sofisticado anteriormente usado para o discurso empobrecido atual.
“Precisamos mapear urgentemente que ponto é esse: onde e em que momento da História do discurso musical da canção popular brasileira a gente perdeu o vínculo com o discurso sofisticado anterior e criou o discurso empobrecido posterior que nos chegou até hoje e possivelmente esteja aí até amanhã. Este é o primeiro passo. Precisamos identificar que ponto é esse para que a gente não volte a esse ponto. E a partir deste ponto não encontre se ai não havia nada que estivesse a ser feito de outra maneira. Segundo passo: se aí havia outra coisa feita de outra maneira, por que em alguma medida se optou pelo discurso empobrecido? E aí a gente leria a situação atual desde um ponto de vista macro, veria de fora o que aconteceu. Penso que isso redundou dos meados dos anos 80”, diz.
No ano em que Natália vai poder depositar o primeiro voto da vida numa urna, a imigrante brasileira residente em Portugal elege o meio ambiente como o tema que quer ver refletido nos programas políticos, mesmo ciente de que, no Brasil, “na grande maioria das vezes, ninguém lê os programas políticos”, pois “normalmente, o eleitor brasileiro só vê: ou é o A ou o B, vice-versa. Não faz análise crítica” para ver qual a situação do país.
“Não vejo tanto as pessoas preocupadas com o meio ambiente. É uma área que eu tenho mais interesse quer pela formação e consciência ecológica”, afirma. E preocupa-a mais um debate: “Outra coisa que vejo nas pessoas que votam no Bolsonaro, para além de ser contra o PT, é carregarem os próprios ideais de ódio”, conclui.
E foi “falando do ponto de vista internacional” que José Aníbal alertou para a marginalização do tema eleito por Natália: “Hoje, o Brasil é um pária nessa matéria”, a questão ambiental. “Para os portugueses terem uma ideia: neste último mês [maio], eles desmataram 1500 quilómetros quadrados de floresta”.
A próxima eleição presidencial no Brasil será oficialmente disputada, para já, entre Jair Bolsonaro e Lula da Silva, atual e anterior presidentes, dois dos mais conhecidos candidatos ao Palácio do Planalto cujos eleitores, quer no país quer na diáspora elevaram o Brasil a um nível singular de crispação em quatro anos.(MM)