Manuel Matola
O cineasta moçambicano Júlio Silva vai estrear brevemente um novo filme intitulado “Lágrimas nas Ondas Di Mar”, que relata “a vida dura e insegura” de pescadores artesanais da Ilha de São Vicente, que recorrentemente são apanhados por tempestades na atividade piscatória, que em Cabo Verde emprega diretamente cinco mil pessoas.
“O filme é sobre as tragédias que acontecem com os pescadores artesanais nos mares de Cabo Verde, onde tem morrido muitos pescadores”, resume Júlio Silva, em declarações ao jornal É@GORA em Lisboa, onde também reside.
Quando “há uns anos” Júlio Silva visitou o arquipélago cabo-verdiano, uma das notícias que mais o inquietou à chegada foi a do desaparecimento de quatro pescadores que, após a ocorrência de uma tempestade, foram arrastados por correntes de água do mar de Cabo Verde até ao Brasil, onde “depois foram acolhidos pela Marinha brasileira”, ao quarto dia.
“Aquilo ficou-me na cabeça em como devia fazer algo para que a população comece a dar mais valor ao pescador artesanal”, diz o realizador moçambicano sobre o naufrágio do barco daqueles pescadores cabo-verdianos.
Uma das “epopeias” dos mares de Cabo Verde que Júlio Silva acompanhou e que serviu de inspiração para a sua nova curta-metragem foi a de Juvenal Mendes que “no dia 2 de outubro de 2015 saiu da Ilha da Boa Vista, em Cabo Verde para pescar. Em vez de peixe, o homem apanhou uma tempestade e acabou por ficar à deriva, sozinho, com a vela rasgada e sem combustível, em alto-mar”, tal como noticiou, na altura, a agência Lusa.
Mas o incidente de Juvenal Mendes, então com 52 anos, teve um final feliz, até porque “depois de 47 dias à deriva foi resgatado no Brasil”, segundo escreveu a agência portuguesa num texto publicado, há quatro anos, sobre o caso que ganhou repercussão na imprensa internacional.
O mesmo final terá parte dos quatro pescadores retratados no docudrama “Lágrimas nas Ondas Di Mar”, em papéis que, segundo Júlio Silva, são interpretados “por quatro atores de teatro da Ilha de São Vicente, que deram uma vida incrível ao filme”.
“Os atores envolvidos foram todos cabo-verdianos, são atores de teatro que atualmente e regularmente atuam em peças teatrais realizados na ilha”, refere Júlio Silva sobre o elenco do novo filme que, na verdade, é “um conto escrito na base das quatro histórias” em que “toda a trajetória relata um episódio forte que aconteceu precisamente numa aldeia piscatória, onde tem acontecido várias tragédias”.
E foi para demonstrar o “suspense constante” a que as famílias de pescadores artesanais cabo-verdianos são sujeitas recorrentemente, por nunca saberem se a “cada viagem” ao mar pode ser a última que vêm os pescadores locais que Júlio Silva decidiu rumar, no mês de outubro, para a Ilha de São Vicente para desenvolver esse projeto cinematográfico.
Em entrevista ao jornal É@GORA, o cineasta moçambicano garante que o objetivo foi ouvir testemunhos “baseados nos relatos reais” dos que sobreviveram a naufrágios e arrastamentos de barcos que também vão dar ao Brasil. De resto, são episódios idênticos as de Juvenal Mendes.
E, em três semanas de intenso trabalho, cujo “resultado é positivo”, Júlio Silva conseguiu produzir “um docudrama sobre a vida dura e insegura dos pescadores artesanais”, no qual “cada um conta uma história” sobre colegas que “são apanhados pelas tempestades, em que uns conseguem nadar até a costa e outros são salvos pelos companheiros”.
“Cada um conta uma estória. Eu resolvi apanhar bocadinho de cada uma das estórias e fazer uma ficção. É uma curta metragem. É um filme mesmo feito para participar em festivais. São pescadores artesanais já com muitos anos e muitas estórias do mar”, explica o realizador moçambicano.
E é a pensar em participar em festivais que o cineasta moçambicano e o produtor e guionista cabo-verdiano Emanuel Ribeira estão já a fazer a montagem da película para cumprir o calendário definido por um corpo de jurados de um primeiro concurso em que o “Lágrimas nas Ondas Di Mar” vai participar. O prazo limite de candidatura é o último dia do mês de novembro.
Júlio Silva afirma ao jornal É@GORA que esta “é a primeira fase de um futuro filme de longa duração que dá continuidade ao mesmo tema” inserido no projeto cinematográfico ligado à Antropologia Visual, que está a desenvolver em Cabo Verde, mais propriamente na Ilha de São Vicente.
Futuramente, o realizador e autor do “Lágrimas nas Ondas Di Mar”, e o seu companheiro de equipa Emanuel Ribeira, um dos conceituados atores e roteiristas da Ilha de São Vicente, pretendem continuar a falar dos dramas de naufrágio.
A ideia é sempre abordar a saga dos pescadores que “conseguem nadar mais de três a quatro horas, dos que conseguem chegar à costa”, quando “uns morrem a meio do caminho, porque já não mais conseguem nadar”
E há uma razão para Júlio Silva e Emanuel Ribeira continuarem fixados na ideia de relatar “as várias tragédias” que tem acontecido nos mares de Cabo Verde com os trabalhadores da pesca, um setor que funciona como amortecedor do impacto económico e que contribui em cerca de 8% no PIB cabo-verdiano.
“Eles pescam a vida toda. Muitas vezes têm que ir ao mar mesmo quando o tempo está mau, porque têm que pôr o pão na mesa”, justifica Júlio Silva.
“No fundo, sou um contador de história ao nível do cinema”

Etnomusicólogo e Antropólogo Cultural, Júlio Silva é um dos poucos cineastas rurais em Moçambique, onde também desenvolve trabalhos como escritor, produtor musical. Júlio Silva é músico multifacetado com mais de 300 Cd/disco Vinil produzidos a nível dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.
Após largos anos se ter dedicado ao cinema rural, autor moçambicano decidiu criar uma linha cinematográfica muito africana, que aborda a Cultura, História, realidade, o quotidiano e a língua, o que lhe tem valido prémios e “convites de outros países da CPLP para ir lá fazer alguns filmes”.
Em entrevista ao jornal É@GORA, o cineasta enumera ao que chama de alguns “convites concretos” que tem em cima da mesa.
“No próximo ano, vou fazer mais um filme em Cabo Verde. Existe um convite para a Guiné Bissau e existe para também fazer um filme aqui em Portugal. Agora é uma questão de dar tempo ao tempo”, avança Júlio Silva, justificando as propostas.
“Já existem convites concretos de outros países da CPLP para eu ir lá fazer alguns filmes, porque sem me aperceber criei uma linha cinematográfica muito africana em que o próprio africano se identifica muito com a forma como eu faço os meus filmes, que abordam a Cultura, História, realidade, o quotidiano e a língua”, diz.
Questionado sobre os galardões que recebeu só este ano, Júlio Silva escusa-se a falar de forma detalhada sobre os prémios, preferindo fixar o olhar neste que é o 12º filme, depois de sucessos das películas “Chikuembo-1”; “Lágrimas”; “A terra a quem pertence”; “Montanha Misteriosa: Fofoqueira”; “Correntes na Zambézia”; “Regresso do Espírito”; “Traços de Uma vida” e um docudrama sobre os cabo-verdianos residentes em Moçambique.
“Não penso nisso”, garante. No entanto, enumera alguns prémios.
“Em 2019, fui reconhecido como realizador do Ano pelo círculo de leitores dos Escritores Moçambicanos na Diáspora, ganhei também o Prémio de Melhor Documentário Júri Popular no Festival de FESTIN (Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa), e com os filmes “Escravatura” e “Chikuembo-1”, prossegue, “ganhei dois prémios no Brasil”.
A longa história sanguínea faz de Júlio Silva um verdadeiro imigrante, pois o cineasta é bisneto de alemães, holandeses, brasileiros e cabo-verdianos, uma fusão que o ajuda a saber contar as pequenas histórias de ir e vir pelo mundo também graças à sua veia de Antropólogo cultural.
“Portanto, eu sou o filho do mundo que nasceu em Moçambique, mas que gosto de conhecer o mundo onde tem parte de alguns antepassados e quero contar histórias. No fundo, sou um contador de história ao nível do cinema”, diz. (MM)