Este Agosto anda com os copos nos cornos! Alguém consegue me dizer onde é que se desenrasca uma manhã de céu nublado e um balde de nevoeiro no pico do Verão? Agosto lembra-me o sol ardente a secar, sem permissão, as lágrimas que caíam dos meus olhos na minha primeira vez em Lisboa; Agosto lembra-me ventos fortes a sacudirem as árvores de Lourenço Marques; Agosto lembra-me eu ainda cachopo e a voz do meu pai a berrar num tom premonitório e entupido de nostalgia e nervosismo
esta terra deixou de ser segura para nós!
Enquanto volto a esforçar-me para descongestionar as narinas que foram tomadas pelo resfriado que me assaltou o corpo, não consigo deixar de me ver sentado no autocarro que vai na direcção do outro lado da cidade. Muitos sonhadores no autocarro que lá vai; muitos imigrantes neste lado da cidade e todos eles sabem que devem levantar cedo para ter com o que enganar o estômago para a cabeça continuar a sonhar com uma vida melhor.
Nos anos seguintes à minha chegada à Lisboa fiz o mesmo trajecto várias vezes. O meu pai não aguentou o desgosto de voltar para esta margem de mãos a abanar e ver a pobreza e a humilhação a roerem-nos impiedosamente, como fazem os ratos com os sacos nos armazéns; o meu pai não aguentou por muito tempo e um dia minha mãezinha, que Deus a tenha, encontrou no chão do quarto o corpo dele socado pelo frio eterno. Ou era homem e ia atrás da segurança social que o Estado nunca foi capaz de prover com suficiência a quem tinha sido escorraçado do Ultramar e saíra de lá de mãos a abanar ou sentava e morria à fome. Passaram muitos anos e não paro de dizer para mim mesmo,
eu nunca saí de Lourenço Marques.
Continuo o mesmo cachopo que chorou quando com o pai abandonou Lourenço Marques, como se chora quando se toma um “não” da mulher amada; continuo o mesmo cachopo que se sentiu desiludido com o que o meu pai dizia cheio de convicção no dia da chegada,
esta é a nossa terra!
Alguém que desligue o meu corpo que a continuar assim a febre me queima os fusíveis; alguém que me desentupa as narinas para que eu possa sentir o cheiro de humanismo; alguém que me limpe a garganta para dizer àqueles fulanos que não podemos cometer os mesmos erros do passado, somos todos sonhadores e não devemos perpetuar o ódio entre cidadãos de países diferentes.
Nada voltou a ser o mesmo depois de Moçambique ser Moçambique e Portugal ser Portugal! Nada voltou a ser o mesmo depois de ouvir a voz do meu pai a dizer
esta terra deixou de ser segura para nós! (X)