Deves conhecer a minha mãe. Vive ao pé da estátua da Eduardo Mondlane, trabalhou na UFA e tu me disseste que vives ao pé dessa antiga fábrica. Minha mãe chama-se dona Gui. Guilhermina na verdade as irmãs, minhas tias, é que com muito gosto amputavam o nome dela. E ela nunca gostou. “Gui deve ser nome de cão na Rússia”. Fez em Agosto 89 anos e vive da renda do seu rés-do-chão. Vive com a minha irmã, Ivone. Mas a minha irmã é uma viciada em vida fácil; bebidas, noites, homens, cigarros e jogos nocturnos. Se a minha mãe tem 89 anos, hoje, é porque está quase cega e não vê as malandrices que a minha irmã faz. Todos no prédio a conhecem. Chamam-na servidora do prédio. Deixemos disso, olha, como te chamas? Sérgio? É isso? Vou chamar-te Serjoca. Tive um tio chamado Serjoca. Um mulherengo sem limites que no dia do seu enterro a montanha que escondia seus filhos explodiu. O cemitério transbordou de seus filhos.
Dizes-me quando fores a Moçambique, Serjoca. Tenho lembranças que quero que leves à minha mãe; chegas na Eduardo Mondlane, bem em frente à estátua, do lado esquerdo, verás uma velha pendurada na varanda com uma peruca tecida por fios brancos. É a minha mãe. É verdade que a minha irmã não serve para nada, mas serve para, pelo menos, pendurar a minha mãe no estendal da varanda, pendurar as suas pensões, pendurar as rendas em bares. Ela serve pelo menos para isso. Tenho lembranças que quero que leves à minha mãe; tenho uma fatia do meu cheiro numa caixinha selada com uma fita de saudade, tenho este cálice de sorriso neste frasquinho, tenho este estojo com o brilho do meu olhar, tenho estes óculos que comprei na Alemanha que podem muito ajudar a minha mãe. O último tipo que tentou levar isso à minha mãe teve problemas no aeroporto; a fatia do cheiro pesava demais, o cálice de sorriso foi farejando por um cão e declarou-se tráfico de líquido proibido. Vais tu entenderes estas leis internacionais.
Tu queres um café? Uma imperial, Serjoca? Peça algo, eu quando falo não paro; acreditas que era a pessoa mais silenciosa do mundo? Tinha na minha boca um enorme poço de silêncio. Desde 1999 que não vejo a minha mãe. Até agora vá que não vá que existem chamadas de vídeo. Vá que não vá que estás aqui para levantares estas pequenas lembranças. Não chamemos isso lembranças, mas sim pequenos restos de tempo. O tempo mastiga-nos e entre os seus dentes sobram-se-lhe restos. E eu fui coleccionando esses restos.
Dizes-me quando fores a Moçambique, Serjoca. Tenho um cinzeiro para a minha irmã, um cinzeiro onde poderá deitar as beatas da sua irresponsabilidade. Tenho um relógio que desde 1999 não se cansa de dizer-me que devo voltar a Moçambique, tenho fios de cabelos das minhas filhas para a minha mãe acaricia-los, tenho uma mala cheinha de pequenas peças de saudades, restos de tempos: o tempo mastiga-nos; só preciso de tempo para organizar tudo. Há tudo nessa mala; restos de lágrimas, parafusos de ausências, esferográficas de dor com tinta seca, tenho um calendário empurrando os dias que me envelhecem. Tenho tudo, Serjoca. (Por favor, mais duas imperiais aqui nesta mesa). Dizes-me quando fores a Moçambique; tenho abraços fortes para os meus amigos do Mercado Fajardo e espero que não te enganes na distribuição; fazemos assim, coloco um selo com nome e morada em cada abraço. É mais prático.
Posso telefonar à minha mãe agora; informá-la que vais levar tudo isso a Moçambique. Ela ficará alegre, gosto da minha mãe. É verdade que ela tem duas cataratas impedindo-a de ver o mundo. A velhice é uma chatice, uma senhora tão boa sendo anulada no mundo por duas nuvens nos olhos. Dizes-me quando fores a Moçambique, deves conhecer a minha mãe. Vive ao pé da estátua da Eduardo Mondlane. Levas tudo para a minha mãe. O meu pai que morra no inferno. Sobre ele falo-te noutro dia, Serjoca.(X)
Adorei. Profundo, porém leve com um toque de humor. Que venham mais!