Manuel Matola
A são-tomense Lectícia Trindade experienciou, pela primeira vez, a vida de mãe a tempo inteiro após imigrar para Inglaterra, onde lançou no fim de semana o livro “Minha Mãe, Minha Super-Heroína”, uma obra infantil ficcionada, mas que resulta de relatos de várias mães que entrevistou ou porque tiveram problemas durante a gestação ou sofreram violência obstrética.
O enredo centra-se numa personagem que já começou a ter sucesso também pelo papel desempenhado logo aos seis anos: o Nuca, que possibilitou a autora fazer o merchandise da obra, estampado o rosto desta principal figura do livro em camisolas. Tudo reflexo da sua heroicidade na história.
“O livro é praticamente um olhar de uma criança inocente dos seus seis anos. A forma como essa criança fala da sua mãe, descrevendo tudo aquilo que a mãe faz, é um alerta a todas as mães para perceberem que realmente tudo aquilo que fazem é visto pelos seus filhos como coisas grandiosas”, diz Lectícia Trindade em entrevista telefónica ao jornal É@GORA a partir do Reino Unido, onde é imigrante há mais de três anos.
Quer descrever-me como foi esse percurso de São Tomé até Inglaterra, eventualmente, passando por Portugal?
Foi um percurso longo. Nasci em São Tomé, há 32 anos. Emigrei para Portugal com cinco anos.
Isso na companhia dos pais?
Não. Os meus pais foram primeiro para Portugal à procura de melhores condições de vida e eu fiquei em São Tomé com a minha avó até a altura em que fui ter com os meus pais. Entretanto, fiz toda a minha escolaridade e toda a minha vida em Portugal, mas nunca me esquecendo das minhas raízes. Estive sempre em contacto com as pessoas que deixei em São Tomé e com a cultura são-tomense também. Mas sim, estudei, fiz toda a escolaridade em Portugal onde tirei uma licenciatura em Comunicação Aplicada a Marketing, Relações Públicas e Publicidade. Entretanto, tive filhos e eu e o meu marido resolvemos vir para Inglaterra por questões profissionais da parte dele. Então estamos aqui na Inglaterra cerca de três anos e três meses.
E foi por aí que começa esta viagem pela escrita?
Não foi por aí que começou a viagem pela escrita. A minha viagem pela escrita começa há muitos anos ainda em Portugal. Eu com 10 anos de idade participei num concurso de literatura a nível escolar. Não queria, estava com vergonha, mas a minha professora na altura disse para participar, deu muita força, eu participei e incrivelmente fiquei em primeiro lugar.
O que escreveu nesse concurso na altura?
Eu escrevi um poema, não me recordo bem qual foi o conteúdo, mas até hoje tenho o diploma em casa da minha mã. Mas não me recordo bem qual foi o conteúdo desse poema. O que me deu o primeiro lugar foi não só pela (qualidade de) escrita, mas pela leitura e interpretação. Portanto, eu escrevi e depois li o poema para toda a escola, então isso fez com que tivesse ficado em primeiro lugar. Cerca de três anos depois, em 2001 quando aconteceu o 11 de setembro, eu tinha 14 anos, fiz um poema, sem qualquer concurso, a falar sobre este acontecimento. Mostrei à minha professora – outra professora -, ela gostou e passou o poema a todas as turmas daquele ano. A partir daí fui escrevendo como passatempo. Eu tinha um caderninho onde escrevia poemas sobre várias temáticas. Sempre gostei de escrever e também sempre gostei de ouvir estórias de outras pessoas, porque sempre gostei muito de comunicação. E mutas das vezes quando eu ouvia algumas estórias que inspiravam, eu escrevia sobre esse tema.
E o livro, quando é que começa a escrever?
Eu tive o meu primeiro filho e, dois anos e meio depois, tive gémeos, portanto, foi assim muito rapidamente que tive três filhos pequenos e foi na altura em que nós viemos para a Inglaterra. Então, num país diferente, eu estava com três crianças pequeninas. Aí eu deixei de sair para trabalhar e tive que cuidar das crianças. Eu e o meu marido decidimos que eu ficaria em casa a cuidar das crianças. Como o papel de mãe é cansativo, puxa muito por nós e nós passamos por muitos desafios, eu comecei a sentir alguma exaustão mental – isso começou a afetar-me mentalmente – porque eu sempre fui uma pessoa muita ativa. Sempre gostei muito de trabalhar, sair de casa. E nessa nova realidade de estar em casa com três crianças, porque o meu marido trabalhava muito, eu comecei a ver um lado diferente de mim. Então eu pensei: será que há outras pessoas que poderão estar na mesma situação que eu? E decidi: vou criar um projeto que é “Mãe para Mim, Mãe para ti” e tentar ouvir a história dessas pessoas. Comecei então o projeto entrevistando mães.
Em que ano começa esse projeto?
Há um ano atrás, em abril de 2019. Graças a Deus, as pessoas são magníficas. Mesmo não te conhecendo de lado nenhum aceitam-te, abraçam-te. E então, as pessoas com quem eu falava aceitavam partilhar suas histórias. Eu tinha muita curiosidade de perceber como é que mulheres que estavam habituadas a trabalhar lidavam com essa realidade de estar em casa a tomar conta dos filhos. Muitas delas passaram a estar em casa por exigência dos filhos, (algumas) acabaram por perder os seus empregos por causa da gravidez, então eu quis perceber como é que elas estavam a vivenciar isso.
Mas essas mães são britânicas ou de várias nacionalidades?
São de vários sítios, de diferentes nacionalidades.
E em várias partes do mundo?
Sim.
Quantas entrevistou?
Não sei. Não foram assim muitas. Eu fazia essas entrevistas quinzenalmente. Comecei em abril. Eram “live”. Como eu estava em casa e a ideia era abranger as pessoas em vários sítios, então nada melhor do que fazer online. Portanto, eu falei com algumas mães.
E chegam a uma dezena?
Claro que sim. Repare: foi em abril que comecei essas entrevistas, eu fazia quinzenalmente, portanto, eram duas por mês. Depois parei quando fui de férias em julho, depois retomei em outubro. Depois tive uma proposta para passar este programa para um canal são-tomense – a RSTP – que viu um dos meus programas e gostou e propôs-me fazer parte da programação deles. Eu quero agradecer muito ao Guedes Medeiros e ao Josimar Afonso por me terem dado oportunidade. E passei a fazer parte da programação deles apresentando conteúdos com essa temática no programa cujo nome é “Mãe para ti, mãe para mim”.
O que notou nelas?
O que eu reparei é que essas mães passaram por muitas coisas: há mães que assistem morte de um filho pequeno; há mães que são solo, que é o que as pessoas chamam de solteiras; há mães que entram em depressão por estarem em casa a tomar conta das crianças; tive mães que me disseram que estavam num certo grau de perturbação mental que pensaram em matar os seus filhos; tive mães que emagreceram imenso, pois tiveram dificuldades em comer quando tiveram seus filhos; tive mães com problemática a nível de amamentação. Tive muitos relatos.
E o que teve de comum nos relatos dessas mulheres?
O de comum é que sobreviveram com distinção à maternidade, ou seja, passaram por todos esses desafios e mantiveram-se íntegras para poder relatar essas experiências e poder ajudar outras mães porque nós ao partilharmos isso damos ferramentas para outras mães poderem lidar com isso se passarem pelo mesmo.
Falha de comunicação
Neste caso, esse livro resulta destas entrevistas, ou é a súmula das entrevistas?
Este livro resulta do facto de me ter apercebido que as mães passam por muito e não são valorizadas. O ser mãe é uma coisa tão difícil, mas subvalorizada. As pessoas dizem: ´ah, ela faz isso ou aquilo, mas é normal. É mãe, não faz mais do que a sua obrigação`. Não. Nós mães devemos ser valorizadas. Não é qualquer pessoa que passa por essas mudanças todas que essas mulheres passam. É uma volta de 180 graus. Quando tu tens um filho, muita coisa na vida muda e nós mães não estamos preparadas. Não há nenhum livro de instruções que diga que é assim que deve ser feito. Realmente estas mães passam constantemente por tantas situações e, no entanto, conseguem continuar para frente e arranjar tempo. Quer dizer, muitas delas não conseguem arranjar tempo para cuidar de si, mas (com o livro) nós estamos a trabalhar nisso e dar ferramentas para elas aprenderem a gerir também o tempo. Mas o importante é que essas mães devem ser valorizadas. Realmente, as mulheres devem ser valorizadas. Por isso que eu criei esse livro para valorizar as mães.
O que o livro tem que ajude a dar respostas a algumas mulheres e outras que, eventualmente, estejam a passar pela mesma situação de depressão e de alguma rejeição aos filhos como foi o caso que citou?
O livro é praticamente um olhar de uma criança inocente dos seus seis anos. A forma como essa criança fala da sua mãe, descrevendo tudo aquilo que a mãe faz, é um alerta a todas as mães para perceberem que realmente tudo aquilo que fazem é visto pelos seus filhos como coisas grandiosas. Apesar de toda a sociedade não falar sobre isso e as mães não valorizarem, têm que pensar que aquele ser a quem fazem tudo isso valoriza. Muitas vezes, se calhar, essas crianças não conseguem expressar essa valorização, mas nesse livro nós mostramos uma criança que ao invés de pedir ao seu pai um brinquedo como prenda de Natal ela pede um livro de um super-herói. E o pai de uma forma um pouco machista de responder pergunta logo: qual é que queres – o super-homem, o Batman, ou homem-aranha? Portanto, na cabeça do pai super-herói é só isso. Mas para a cabeça de uma criança pequena, super-herói pode ser muito mais: pode ser uma mãe. E é uma coisa tão simples como uma mãe. Então, é bom que essas mães que lerem o livro, quando se sentirem tristes, olhem para o livro e digam: se calhar o meu filho também pensa isso de mim. Então, vou ter mais força para continuar para frente e fazer mais e melhor.
Então estamos a falar de um livro que é ficcionado na base de uma realidade que a Lectícia Trindade identificou a partir das entrevistas com várias mães?
Sim, porque a sociedade não nos valoriza, mas as nossas crianças fazem-no. Muitas vezes, um olhar, um abraço é uma forma de valorização e muitas vezes nós enquanto mães não reparamos que essas são as formas dessas crianças nos valorizar. Então, é importante que nós prestemos mais atenção a isso, que nós consigamos perceber que essas crianças que não conseguem falar, não conseguem expressar verbalmente aquilo que sentem, pelo que é importante que as mães percebam que as crianças valorizam-nos com esses pequenos gestos. E o facto de nós fazermos pequenas coisas no dia a dia como dar colinho quando elas precisam e cuidar delas quando elas estão doentes são coisas que marcam as crianças. Nós pensamos que não, mas marcam as crianças. O engraçado é que durante esse processo de produção do livro, as pessoas quando ouviam a sinopse do livro partilhavam logo comigo recordações das suas mães. Pessoalmente, eu nunca tinha pensado nisso, mas por tudo aquilo que a minha mãe me fez ela é uma super-heroína.
Há aqui alguma falta de comunicação entre as mães e os filhos na idade menor?
Não há uma falta de comunicação, mas há uma falha de comunicação. Pode haver uma falha de comunição.
Em que sentido?
Muitas pessoas esquecem-se que a comunicação vai muito para além do que é verbal. Existe uma comunicação que é muito mais grandiosa que é a comunicação não verbal e as pessoas têm que perceber que nem toda a gente consegue se comunicar de forma verbal. Então, não é pelo facto de não conseguirem comunicar de forma verbal que não demonstram em pequenas coisas aquilo que querem dizer. E é importante que as mães se apercebam disso. E outra questão: no livro nós temos uma conversa entre um pai e um filho, isso porque eu quero fazer um apelo aos pais para que tenham mais comunicação verbal principalmente com os seus filhos, porque muitas vezes essa comunicação está a ser feita de forma insuficiente. É importante resgatar, é importante que os pais se apercebam que devem ter momentos de cumplicidade e de conversa com os seus filhos. É importante que eles participem na educação dos filhos.
Como está estruturado o livro?
Basicamente é um diálogo entre o pai e filho. É muito curto. Lê-se muito rápido. É um livro infantil bilingue (com 44 páginas, metade das quais texto, sendo outra metade ilustracões). Tem muitas ilustrações, porque as crianças ao verem os desenhos conseguem perceber muito mais facilmente a história do que a lerem. Então, o meu ilustrador Mbona Paulo fez um excelente trabalho. As páginas são coloridas de forma a chamar mais atenção a essa faixa etária. São uma faixa etária muito visual. Elas vão muito por aquilo que veem. A cor das próprias roupas é tudo pensado para chamar atenção às crianças. Depois de toda a história contada – que é uma história muito curta mas que transmite uma mensagem poderosa – nós temos uma parte didática que é um teste para ver se as crianças conseguiram entender a história. Então vamos fazendo perguntas básicas, de formas e métricas de determinado objeto, perguntas de interpretação de texto para as crianças puxarem um bocadinho pela cabeça, para nós promovermos o desenvolvimento cognitivo.
Falou da falha de comunicação entre mães e filhos. Esse confinamento que estamos a viver hoje devido à Covid-19 é uma oportunidade para os pais iniciarem aqui uma conversa mais fluída e sem essas falhas?
É uma oportunidade, de facto, mas só aproveita bem quem lida com isso de forma inteligente, porque essa situação da Covid-19 veio mexer muito connosco, com o nosso intelecto, com a nossa dinâmica. E isso de estar em casa 24 horas por dia e com essas incertezas e os outros sempre a aumentar faz com que nós fiquemos perturbados, e estando assim ficamos mais estressados. Nós devíamos aproveitar o tempo que estamos em casa para conversarmos melhor e perceber mais os nossos filhos, porque se com tudo isso que está a acontecer nós não conseguirmos lidar de forma inteligente começamos aos gritos uns com os outros – aliás, houve muitas situações de separações de casais, houve muito mais situações de violência doméstica -, porque há muita gente que não está a aproveitar essa situação de forma inteligente. Mas sim, é uma excelente oportunidade para melhorar esse contacto, esse diálogo entre pais e filhos.
Nesse trabalho na RSTP que relatos tem estado a ouvir de mulheres que falam sobre essa temática?
São variadíssimos relatos. Eu lido com mães que tiveram problemas durante a gestação, lido com mães que sofreram violência obstrética. São questões que muitas vezes são tabus, as pessoas não gostam de falar, pois sentem algum receio, mas o facto de falar permite que os outros possam abrir os olhos e estejam mais atentos para essas situações. Lido com mães cujos filhos sofrem de alguma perturbação, ou têm autismo, por exemplo. Lido com mães que, quando os filhos nasceram, tiverem que deixa-los com as avós para poderem terminar os estudos e isso não é uma situação muito fácil para as mães. São variadíssimos relatos que demonstram que são muitos os desafios que nós as mães temos que ultrapassar.
E nesse momento da Covid-19 essas situações são muito mais complicadas para as mulheres a solo?
Associada a essa questão de Covid-19 nós temos vários grupos de pessoas e várias formas de pensar. Temos mães que se preocupam de forma excessiva, que são quase que paranóicas – realmente eu já falei com esse tipo de mães -, que não querem levar os filhos para a escola, nem para nenhum lado porque têm medo que os filhos sejam contaminados e são mães que se esquecem que existem também o bem-estar mental. E o facto de limitarem os filhos só a casa podem piorar esse lado mental e emocional. Também tem mães que têm consciência da situação. (Exemplo): quando as escolas reabriram aqui em Inglaterra era facultativo levar os filhos para a escola. E já tive uma mãe que veio explicar o porquê de escolher levar os filhos para a escola.
E qual foi a justificação?
Foi a de que as consequências mentais de uma criança estar fora de contexto escolar durante tanto tempo podem ser mais graves do que as consequências da Covid-19 para uma criança de três anos, por exemplo. Portanto, há pessoas que preferem passar por essa situação de Covid-19. Até agora dizem que as crianças, desde que sejam saudáveis, não são grupo de risco, mas podem ser infetadas mas nem sequer ter sintomas. Mas sabemos que uma criança que fique durante muito tempo em casa sem lidar com outras crianças pode desenvolver sequelas que poderão ficar mais tempo e poderão ser mais graves.
Este livro foi lançado online no sábado. Qual é a sua estratégia para divulgação e promoção?
Foi um desafio fazer um lançamento online de um livro. Não foi de todo uma forma tradicional, não digo que foi melhor ou pior, simplesmente foi diferente e especial. Ao nível de estratégia de divulgação, nós utilizamos muito as redes sociais porque hoje em dia faz-se muita coisa com as plataformas digitais, principalmente, nesse período de confinamento. Portanto, as pessoas passam muito tempo nas redes sociais. Então usamos muito os meios digitais. No entanto, tivemos também entrevistas em rádio e televisão para outras pessoas que não estão online.
Como é que se pode obter o livro em Portugal?
Neste momento estou a fazer a venda direta. Já estou em conversações com algumas plataformas como a FNAC, Wook e mesmo Amazon e vamos colocar o livro nessas plataformas, mas numa primeira fase estou a fazer a venda direta. Quando estiver disponível nessas plataformas eu irei dar informação as pessoas. Eu estou em Inglaterra, sim, mas já tenho um stock em Portugal. Então, quem estiver interessado pode contactar-me e eu peço quem está a tratar em Portugal para fazer o envio direto à pessoa.
O livro está em formato digital?
Vai estar em formato digital em e-book, mas neste momento as pessoas poderão contactar-me.
E está a ser feito a partir das redes sociais, ou tem uma página própria?
Neste momento, está a ser feito a partir das redes sociais, mas também estou a tratar de um plataforma própria para tratar disso. (MM)