Entrevista a Karina Carvalho sobre um novo projeto de advocacia para “abolir a pena de morte em definitivo na Guiné-Equatorial”

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Diretora Executiva da ONG Transparência e Integridade

Manuel Matola

A ONG Transparência e Integridade (TI), que é a representante portuguesa da Transparency International, montou uma clínica legal e um Observatório dos Direitos Humanos na Guiné-Equatorial, no âmbito de uma campanha de advocacia junto de ativistas que lutam pela abolição da pena de morte naquele país, o mais novo Estado-membro da CPLP.

O projeto, financiado em 200 mil euros pela União Europeia, é o primeiro do género que a TI realiza naquele país africano. A iniciativa passa por colocar de novo na agenda de Portugal, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da ONU a necessidade de pressionar o governo de Teodoro Obiang de modo a que aquele Estado cumpra com um dos requisitos fundamentais exigidos para admissão na Comunidade lusófona: abolir a pena capital. E “os ativistas que estão com outras diásporas e não só da Guiné-Equatorial são absolutamente relevantes, porque são pessoas que têm até do ponto de vista de proteção física mais facilidade em denunciar os ataques aos direitos humanos numa posição em que não lhes coloca em perigo de vida”, diz Karina Carvalho, Diretora Executiva da Transparência e Integridade, numa entrevista ao jornal É@GORA que pode acompanhar a seguir.

Que projeto é esse?

Nós candidatamo-nos a uma grant (subvenção) da Comissão Europeia para trabalhar na Guiné-Equatorial. No passado dia 01 de abril foi o dia D do projeto, foi o início formal deste projeto. O objetivo é apoiar, proteger e fortalecer a sociedade civil da Guiné-Equatorial. Portanto, o que vamos fazer nos próximos dois anos é trabalhar com ativistas dos direitos humanos e comunidades mais vulneráveis como mulheres e população LGBTi, e, como é óbvio, pretendemos reforçar o quadro dos direitos humanos na Guiné-Equatorial, um país que infelizmente ainda tem muitos desafios a esse nível. Acho que será um projeto muito relevante no quadro da CPLP. Nós, a Transparência e Integridade, fomos muito resistentes à entrada da Guiné-Equatorial na CPLP, em 2014, porque o país ainda demonstra níveis muito baixos de proteção dos direitos humanos. Claro que nos últimos anos a situação tem vindo a alterar-se a pouco e pouco, muito por força da pressão da comunidade internacional, nomeadamente da União Europeia, do FMI e também por parte da CPLP, mas a Guiné-Equatorial é um país que ainda tem a pena de morte. O objetivo maior do projeto, na verdade, é abolir a pena de morte em definitivo. Esperamos que em abril de 2022 essa seja uma realidade.

Essa ação dentro do país numa altura em que a situação dos próprios ativistas não está garantida não poderá impulsionar ainda mais a repressão?

Nós achamos que não. Muitas vezes o que acontece em muitos territórios é que a pressão internacional muito embora seja relevante ela não consegue fazer tudo e, portanto, é fundamental que as pessoas, os cidadãos de cada país sejam capacitados para essa luta e esse combate. O nosso objetivo – porque esse é um projeto para cooperação para o desenvolvimento, nós somos uma organização não governamental para o desenvolvimento, estamos acreditados pelo Estado português, designadamente, pelo Instituto Camões – e a nossa estratégia é de colaboração. Vamos colaborar também com as entidades públicas que têm este mandato na Guiné-Equatorial. E a nossa expetativa é começar a desenvolver esse diálogo entre os ativistas e as instituições governamentais que na Guiné-Equatorial têm como função contribuir para o avanço dos direitos humanos.

Qual é o tempo de vida deste projeto?

O projeto tem a duração de 24 meses, mas é importante dizer-se que esse projeto também dá continuidade àquilo que já está a ser feito por outras organizações da sociedade civil na Guiné-Equatorial. Já existe uma ONG que trabalha essas matérias, portanto, nós não seremos os primeiros a trabalhar esse território, pelo contrário. E o nosso propósito é muito concretamente montar uma clínica legal na Guiné-Equatorial, ou seja, vamos ter uma estrutura de apoio a ativistas. Temos gente a trabalhar em Malabo para apoiar as atividades do projeto. Vamos montar também um observatório dos direitos humanos. O nosso objetivo fundamentalmente é esse: registar aquilo que acontece na realidade, apresentar recomendações e sugestões de melhoria e conseguir que a voz dos ativistas da Guiné-Equatorial ultrapasse as barreiras geográficas e chegue, sobretudo, a Portugal e à CPLP.

Qual vai ser a intervenção dos ativistas que estão na diáspora?

Os ativistas que estão com outras diásporas e não só da Guiné-Equatorial são absolutamente relevantes porque são pessoas que têm até do ponto de vista de proteção física mais facilidade em denunciar os ataques aos direitos humanos numa posição em que não lhes coloca em perigo de vida. Mas isso não acontece só na Guiné-Equatorial, acontece noutros países onde a expressão dos direitos e liberdades e garantias se encontra de alguma forma mitigada. Nós também trabalharemos com a diáspora da Guiné-Equatorial, assim como no passado trabalhamos com a diáspora de todos os países da CPLP, por exemplo, o caso de Angola com quem temos trabalhado bastante. Mas, como disse, o projeto de cooperação para o desenvolvimento é agir no terreno, portanto, capacitar quem lá está, porque há muitas organizações que fazem trabalhos extraordinário em circunstâncias muito adversas algumas delas, mas sobretudo fazer a ponte entre essas organizações e as instituições públicas da Guiné-Equatorial que hoje em dia estão a trabalhar para o avanço dos direitos humanos e fazer com que haja aqui uma espécie de “match” de vontades entre os ativistas e essas organizações para que se possa progredir.

Nós quando trabalhamos na cooperação para o desenvolvimento, o nosso mandato é o do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16. Portanto, o que nós queremos são instituições mais fortes e sociedades mais inclusivas. Para isso, temos que trabalhar todos em conjunto: as entidades públicas, da sociedade civil, a comunidade internacional e nós aqui somos uma espécie de pivot que coloca todos esses stakeholders a trabalharem em conjunto.
Não te vou mentir: não é um projeto fácil, sobretudo, para nós porque, também, é a primeira vez que desenvolvemos projeto de cooperação para o desenvolvimento, portanto, há sempre aqueles desafios próprios do facto de estarmos a trabalhar num território que não é aqui ao lado – estamos a falar de Malabo, na Guiné-Equatorial. Dificultou bastante o arranque do projeto e a circunstância de não podermos ter ido a Mabalo, mas estamos a conseguir congregrar um conjunto de pessoas muito interessadas em apoiar o projeto. Na próxima semana teremos o kick off meeting interno (reunião inicial). Falaremos com organizações da Guiné-Equatorial. Explicaremos o projeto e vamos pedir a colaboração delas e no dia 25/06 teremos uma mesa virtual com painelistas a falarem sobre os principais desafios do país e também da CPLP. Este é, sobretudo, o nosso maior objetivo de advocacia: é que a CPLP de uma vez por todas consiga sair de uma lógica mais ou menos burocrática e que passe também a ter um mandato muito assente na ação. Portanto, o nosso objetivo aqui nesse projeto é garantir que a CPLP faça valer as suas obrigações em termos de direitos humanos e de combate à corrupção e consiga apoiar a Guiné-Equatorial na mudança.

Esta ação que está a ser levada a cabo com a pretensão de ter a CPLP no meio depois de terem tido uma posição contrária à adesão da Guiné-Equatorial é de alguma forma o reconhecimento da importância que a CPLP tem relativamente à Guiné-Equatorial? Há alguma mudança do posicionamento da parte da Transparência e Integridade?

Presidente cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, e Teodoro-Obiang da Guiné-Equatorial
Não, nós mantemos as mesmas reservas como é óbvio. Agora, nós temos responsabilidades também: somos uma organização da sociedade civil, nós apontamos o dedo, mas temos também a responsabilidade de contribuir para essa mudança. Esse projeto surge muito fruto daquilo que também tem vindo a ser a nossa estratégia nos últimos anos, que é desenvolvermos projetos que sejam sustentáveis e que causem impacto, além das campanhas de denúncia e de disseminação que são as nossas ideias. Nós não ignoramos os problemas que a Guiné-Equatorial tem, muito pelo contrário, o que achamos é que é tempo de não olhar para o lado, portanto, de apoiar os nossos amigos e amigas da Guiné-Equatorial a mudarem de vida e isso tem que ser feito com contributo de todos. Porquê o contributo da CPLP? Porque a Guiné-Equatorial pertence à CPLP. É um Estado-membro, portanto, enquanto Estado-membro também tem que cumprir os objetivos da Comunidade. Por seu lado, os outros Estados-membros também têm que vincular os países, nesse caso, à Guiné-Equatorial aquilo que são os princípios fundadores e ambição da comunidade. Isso não pode acontecer nunca enquanto a Guiné-Equatorial mantiver a pena de morte. Agora há uma moratória. É evidente que, muito por força do acordo que foi estabelecido com o FMI, as coisas mudaram um bocadinho, mas na circunstância esse espetro da pena de morte ainda existe. Portanto, tem que desaparecer e existir um compromisso claro e inequívoco do governo da Guiné-Equatorial e do Presidente Obiang, em particular, de de uma vez por todas aderir aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, mas sobretudo, aderir inequivocamente à defesa dos direitos humanos e permitir que os cidadãos do seu país vivam em liberdade, segurança e com direitos, liberdades e garantias que nós aqui em Portugal, por exemplo, temos. Isso é absolutamente fundamental. Na CPLP não podem existir países onde existam mais direitos do que outros. Isso não pode acontecer. Nós temos dito que mesmo relativamente ao combate à corrupção, por exemplo. Falamos nisso a propósito do caso “Luanda Leaks”: a responsabilidade que Portugal tem também relativamente aos seus países irmãos não é pelo facto de Portugal ter sido colonizador no passado, é porque Portugal é um Estado-membro da CPLP e, portanto, é suposto os Estados-membros da CPLP colaborem ativamente para a melhoria das condições de vida de todos países que pertencem à Comunidade. Isso é fundamental.

Está a ser feito o suficiente, na vossa opinião?

Eu acho que não está a ser feito o suficiente no combate à corrupção. Isso é inequívoco. E ao nível dos direitos humanos também acho que não está a ser feito o suficiente. Ao nível do combate à corrupção, por exemplo, nós ainda temos um enquadramento jurídico e, no quadro internacional, muito assente no Estado-Nação. Portanto, o Estado enquanto figura jurídica tem ainda o poder absoluto e o que nós achamos é que há situações em que nos dizem que nós não podemos estar à espera que os Estados atuem. É preciso que a sociedade civil se mobilize e demanda dos decisores públicos e hajam em determinadas situações. E a defesa dos direitos humanos é uma dessas circunstâncias.

O que está a falhar da parte dos países lusófonos?

Eu acho que os países que integram a CPLP devem funcionar em bloco. A Comunidade foi constituída para reforçar a comunidade de língua portuguesa a todos os níveis e não só a disseminação do português no mundo. É também a disseminação dos valores que nos une e os direitos humanos são valores inequívocos dessa união, pelo que essa questão tem que estar na agenda da CPLP de uma forma mais premente e, sobretudo, tem que estar na agenda também de todas as organizações da sociedade civil como nós, a Transparência e Integridade: fazer com que a CPLP e esta Comunidade seja mais ativa na promoção destes direitos, sobretudo, aquilo que nos traz aqui: garantir que o Objetivo de Desenvolvimento 16 – Paz, Justiça e Desenvolvimento eficazes – seja de facto alcançado o mais rapidamente possível, até porque este é um objetivo transversal a todos os outros objetivos.

Esta prorrogação da presidência de Cabo Verde na CPLP que devia, já a partir do mês de julho, se a situação da Covid-19 não existisse, passar para Angola não poderá comprometer a luta e até certo ponto relaxar as autoridades da Guiné-Equatorial nas exigências de adesão que não foram cumpridas, nomeadamente, no que diz respeito à pena de morte?

O que posso dizer é o seguinte: nós em tempo útil, quanto à adesão, fomos locais relativamente àquelas que eram nossas reservas. O entendimento que existiu à época foi que não. A Guiné-Equatorial deveria ser um Estado-membro da CPLP e um dos argumentos era justamente esse o de que temos também aqui a responsabilidade de apoiar a Guiné-Equatorial. O que eu acho é que nos últimos anos temos visto mais declarações de intenções do que ação até por parte dos responsáveis da comunidade. Portanto, na nossa perspetiva, agora é tempo de cumprir todos os critérios de adesão, e a abolição da pena de morte é o primeiro deles.

Perguntava com relação a essa prorrogação da presidência de Cabo Verde na CPLP: não irá ser comprometedor o cumprimento desse requisito?

Eu espero que não seja. Mas nós somos só uma organização da sociedade civil. A nossa função é alertar para os problemas e apresentar as soluções que nós temos e esperar que tudo corra pelo melhor. É só isso que podemos fazer.

Disse há pouco que já existe várias organizações da sociedade civil na Guiné-Equatorial a trabalhar em várias temáticas que vão coincidir com aquilo que é o vosso projeto. Qual é a informação que têm estado a receber sobre a situação real no terreno?

Nós começamos agora, como disse. Temos algumas informações mas ainda não estão consolidadas. No imediato, o que é preciso garantir é que existe um sistema de apoio na Guiné-Equatorial para que ativistas em direitos humanos não se sintam desprotegidos. O que vamos fazer é criar essa clínica legal para estar “ON” a partir da próxima semana. Temos uma advogada (é nacional) que vive em Malabo que vai apoiar as atividades do projeto e faremos tudo para apoiar os ativistas e comunidades vulneráveis na defesa dos direitos humanos. Isso é um dos principais focos do projeto. Temos também o Observatório dos Direitos Humanos e o objetivo que temos aqui é começar a caraterizar a situação, mas, sobretudo, e isso é que acho que é muito relevante dizer-se: o nosso foco não é denunciar simplesmente o que acontece na Guiné-Equatorial, mas contribuir para a mudança. Portanto, a informação que obtivermos da realidade é uma informação que faremos questão de partilhar com as organizações governamentais e públicas da Guiné-Equatorial e faremos questão de partilha-las também com a CPLP. Aliás, nós já demos nota da existência do projeto à Embaixada de Portugal na Guiné-Equatorial, ao Embaixador (guinéu equatoriano) aqui e também à CPLP. O que esperamos é que essas organizações queiram colaborar connosco também porque é o nosso desejo. Este projeto é sobretudo de construção e o que esperamos é que no final, daqui há dois anos, na Guiné-Equatorial exista uma sociedade mais pacífica, inclusiva e mais livre.

Qual é a avaliação que fazem do papel das Nações Unidas nessa questão da Guiné-Equatorial?

A Organização das Nações Unidas construiu uma agenda que é absolutamente inovadora. Nós já tínhamos os Objetivos do Desenvolvimento do Milénio e agora temos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e, portanto, o que as Nações Unidas fazem é devolver uma agenda que a concretizar-se tem o potencial de mudar a face do mundo. Agora cabe aos Estados e cidadãos e às organizações todas (agirem). Não falo só das ONG, mas as empresas, por exemplo, pois às vezes esquecemos do potencial que as empresas têm para permitir a mudança social. Hoje em dia fala-se muito da cooperação delegada. Há muitas empresas que investem em territórios onde os direitos humanos estão mitigados. E eu acho que é preciso que nós olhemos também para o setor empresarial para que este trabalhe conjuntamente com organizações como a nossa para que esse avanço aconteça. Portanto, aqui as Nações Unidas têm esse mandato que diz que é isso que precisamos fazer. Mas nós não podemos ficar à espera que as Nações Unidas resolvam problemas nos países. Temos que ser nós os cidadãos do mundo a resolvê-los.

E a situação da Covid-19 influenciou ou projeto?

O projeto começou no pico da pandemia. Fez com que nós tivéssemos que nos dedicarmos nos primeiros dias, sobretudo, a preparar a infraestrutura do projeto e, por isso, agora é que vamos começar as atividades de interação mais específicas. Vamos ter ainda que tê-las online, mas esperamos em setembro a equipa do projeto poder viajar para Malabo para nos encontrarmos com os colegas que estão no terreno a trabalhar.

Falou de alguns grupos que poderão participar nesta iniciativa, por exemplo, a comunidade LGBTi. Qual vai ser o nível de intervenção das mulheres, que provavelmente sejam também vítimas?

Uma das coisas que é relevante dizer-se é que temos uma comunidade de pessoas jovens na Guiné-Equatorial com vontade de trabalhar, na verdade, são muito esclarecidas relativamente àquilo que são os seus direitos e deveres cívicos. Portanto, uma das componentes do projeto é apoiar esses grupos – alguns deles não são ONG constituídas, são grupos informais, que trabalham sobretudo na área da cultura – daí que o projeto está a ponderar pequenas grants para desenvolver atividades muito específicas na área cultural. Eu espero daqui a mais algum tempo ter novidades sobre isso, mas ainda estamos a agilizar o formato. Mas o objetivo é envolver, engajar projeto o maior número possível de organizações e ativistas de todas as áreas. O foco é sobretudo os mais vulneráveis, por isso que trabalharemos especificamente com mulheres e raparigas e comunidade LGBTi. Esperamos começar os contactos muito em breve com outras organizações especializadas no trabalho com esses grupos mais vulneráveis, porque nós somos uma ONG anti-corrupção, pelo que o nosso conhecimento sobre as problemáticas LGBTi são limitados, por isso, fez sentido a forma como desenvolvemos o projeto: apresentamos a candidatura, que foi ir buscar gente que nos pudesse apoiar em Portugal e fora de Portugal. Esse é o objetivo maior e acho que vamos conseguir desenvolver uma rede de colaboração que dará frutos, se Deus quiser.(MM)

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