Entrevista a Régio Conrado e Boaventura Monjane sobre “Aporias de Moçambique pós-colonial”

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Os académicos moçambicanos Boaventura Monjane (Esquerda.) e Régio Conrado (Direita)

Manuel Matola

Quase três dezenas de jovens académicos e intelectuais moçambicanos, na sua maioria, residentes na diáspora lançaram esta quarta-feira o livro “Aporias de Moçambique pós-colonial: estado, sociedade e capital”, que pretende ser uma plataforma de diálogo do que existe dentro do país a partir de um olhar dos que estão fora do território nacional. Moçambique assinala esta sexta-feira 45 anos de independência. O jornal É@GORA travou uma conversa com os organizadores da obra: Boaventura Monjane e Régio Conrado que responderam as perguntas feitas a ambos de forma alternada.

O que justifica esse título?
Régio Conrado [RC] – Quando nós decidimos dar o título “Aporias de Moçambique pós-colonial”, a ideia de fundo era caraterizar duas situações muitos particulares. Por um lado, nós queríamos transmitir a ideiado processo de construção do projeto nacional moçambicano cujo objetivo fundamental era a transformação radical das várias situações disfuncionais em que os moçambicanos se encontravam. Que dizer, as desigualdades regionais, a pobreza, a penúria e, sobretudo, a exploração que os moçambicanos eram submetidos pelo sistema colonial. Portanto, este primeiro aspeto que tinha justificado o processo de libertação nacional e a proclamação da independência teve um elemento fundamental: por um lado, conceber Moçambique como um lugar livre e de prosperidade, falo num sentido ideal, por outro lado, esta ideia que fundou Moçambique pós-colonial. É que passados 45 anos, Moçambique vive das contradições da situação colonial, podemos dizer que grande parte dos problemas que Moçambique vive hoje é a continuidade, senão o alargamento da situação colonial. “Aporia” significa um conjunto de contradições no momento pós-colonial que na verdade nos faz pensar que Moçambique não só não conseguiu resolver as principais contradições que tinha justificado a sua existência pós-colonial, sobretudo, aprofundou essas contradições, bem como a exclusão do campesinato no processo de construção de Moçambique através da implementação de projetos que são contrários aos interesses fundamentais desses grupos sociais. Esse é o primeiro aspeto. O segundo aspeto é que o modelo de desenvolvimento nacional não só não conseguiu ser um projeto capaz de transformar as vidas dos vários moçambicanos, mas acabou por ser um instrumento ao serviço dos interesses das elites políticas que, não sendo centrais no serviço capitalista mundial, acabam por ser elas próprias a reprodução do capital internacional. Resumindo, “Aporias” significa uma contradição intrínseca ao processo de construção nacional.

Há aqui uma relação próxima com a parte agrícola de Moçambique, dado que a agricultura é definida como a base de desenvolvimento? Qual é a centralidade da questão agrária neste livro?
Boaventura Monjane [BM] – Nós não olhamos apenas para a questão agrária, que é talvez a questão mais urgente e pertinente em Moçambique, porque 45 anos depois da independência continuamos a ser um país maioritariamente agrário. Não somos um país industrial, portanto, o campo e o meio rural continuam a ser o espaço político mais importante em Moçambique. Talvez o termómetro político e o termómetro para avaliar o nível de desenvolvimento, de exclusão e de exploração. Moçambique não é só agricultura, campesinato e o campo. Este livro traz outras perspetivas: a dos camponeses, das mulheres, da crise ecológica e ambiental que Moçambique vive, olhar para o sentido de nação nos dias de hoje. A primeira parte do nosso livro questiona o projeto de nação, ou a ausência desse projeto, critica a forma como Moçambique se construiu 45 anos mais tarde como um estado-nação que, evidentemente, observou algumas melhorias, mas que deixou de resolver uma série de outros problemas. Portanto, a primeira parte do nosso livro critica o projeto que se pretendeu construir – a ideia de nação -, mas também olha para aquilo que são as contradições, as aporias que Moçambique é. Para justificar isso olhamos para a questão da política e de desenvolvimento económico e social, nomeadamente, no que diz respeito ao extrativismo. É um livro transdisciplinar que procura defender a tese segundo a qual Moçambique continua a não saber o que é. Continua a ter uma crise de identidade, e as crises que o nosso país atravessa – não estou a falar das crises de hoje como as de Cabo Delgado. O que Moçambique é hoje é o acumular e a síntese da não conceção que se predispôs a ser em 1962, se olharmos para o período da fundação da Frelimo. Não sabemos muito bem o que somos. Há uma crise de identidade e ideológica.

No processo de elaboração do livro, que critérios utilizaram para poder ter os vários autores que participam neste livro?
[RC] – Antes gostaria de acrescentar algo que o Boaventura referiu. O processo da construção de Moçambique pós-colonial nasceu através do ideal da liberdade (em 1962), que era o fundamento para a constituição da Frelimo e em 1964 para combater o sistema colonial. Mas em 1975 tínhamos um segundo ideal, que era a questão da defesa dos interesses nacionais que passavam pelo interesse do povo. Isto está escrito num relatório do III Congresso, foi reafirmado em 1983 no IV Congresso. Portanto, (temos) o projeto pós-colonial em 1962, como o momento ante colonial, e em 1975 reafirmou-se a liberdade, mas também a defesa dos interesses populares. O grande problema começa em 1986 e, muito particularmente, em 1989 quando se realiza o V Congresso da FRELIMO. A viragem para o neoliberalismo significou, por um lado, o esvaziamento do ideal da liberdade, da proteção e do interesse da grande maioria moçambicana. E aí constatamos que houve a reafirmação do interesse das elites políticas do país. É por essa razão que a situação pós-colonial e, sobretudo, pós 1986 hoje pode ser caracterizada como um projeto que não responde aos interesses da grande maioria, mas responde às elites que são corruptas e corrompidas, incapazes de imaginar e de pensar o ideal de Moçambique como um lugar para todos. De forma sucinta, a grande contradição do processo pós-colonial em Moçambique resume-se numa única frase: As elites políticas nacionais perderam o sentido de responsabilidade ética em relação às populações que dão sentido à existência de Moçambique. Concebido como o lugar dos diferentes povos nacionais, Moçambique foi transformado num instrumento ao serviço de interesses privados de grupos minoritários. Esses grupos que não têm capacidade para pensar o país, nem têm responsabilidade pelos atos que cometem perderam o ideal que dá sentido à própria ideia de Moçambique. Moçambique não existe fora da ideia de Moçambique. Moçambique é uma invenção colonial enquanto território, é uma invenção pós-colonial enquanto ideia, mas hoje concebe-se que Moçambique entrou em contradição profunda dos elementos que o fundaram em 1975, mas também dos elementos que estruturaram a própria ideia de Moçambique como lugar independente em 1962. A nossa ideia de fundo, enquanto um conjunto de intelectuais, ativistas conscientes e académicos era fazer de Moçambique um objeto de reflexão, mas também um objeto de engajamento para a transformação social. Primeiro os artigos deviam ter o critério da cientificidade, o rigor académico, o rigor teórico e o rigor metodológico. O segundo critério é que não houvesse, em nenhuma circunstância, a conceção de que pensar Moçambique significa opor-se à Frelimo. O sentido do livro não é estar contra a Frelimo. O sentido da nossa reflexão é dizer qu pensar Moçambique significa contribuir criticamente, mesmo que isso signifique repreensão para que possamos pensar melhor o destino de Moçambique. Como Moçambique hoje não tem destino, o futuro está esvaziado, o seu Presidente é contraditório e sem conteúdo, o passado é rico em experiências e por causa da impunidade e da inconsequência das elites, Moçambique encontra-se numa situação paradoxal. Por um lado, tem todas as potencialidades de ser um país normal, ou seja, capaz de ser útil para as populações, mas as elites perderam todo o rigor e a conexão com os verdadeiros problemas do país. É por essa razão que quando um país não tem clareza do que e como quer ser no futuro, e o que tem de fazer para se transformar fica numa situação de incapacidade de resolver os problemas e as crises que existem porque nem compreende os problemas que tem, nem sabe quais as principais questões que deve colocar. De forma geral, os critérios foram: cientificidade, rigor e pensar a reflexão de Moçambique não como oposição, mas com responsabilidade ética à nossa nação.

Qual é a responsabilidade da comunidade internacional para essa situação de incerteza que Moçambique tem e da indefinição da sua identidade?
[BM]- Eu acho que a comunidade internacional não tem nada a fazer senão respeitar e endossar um eventual projeto que Moçambique tenha. O problema é que Moçambique não tem nenhum projeto para ser endossado, portanto, não podemos atribuir à comunidade internacional essa responsabilidade. A comunidade internacional opera segundo as condições que existem lá. Os problemas que nós fomos identificando nos vários setores da vida nacional mostram que Moçambique está moribundo, no sentido em que ‘o velho está a morrer, mas ainda não há um sinal de que o novo poderá nascer’. Há um interregno. Isso são ideias de Grasmci que penso que sintetiza este volume que é editado por mim e pelo Régio: que é uma análise que ele fez na altura em que pensou precisamente a Itália e a Europa, que é: “a crise consiste no facto de que o velho está a morrer e que o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. E para nós esses sintomas incluem Cabo Delgado, mas não só. Incluem a intensificação da perseguição, repressão, o ataque à liberdade de imprensa, a expropriação do campesinato, etc. Esse interregno é extremamente violento e ao mesmo tempo sentimos que algo novo também não está pronto para nascer. Se formos ver os dois últimos capítulos do livro, são uma tentativa de como poderia ser esse novo. Um dos autores diz que a solução estaria na sociedade civil moçambicana, que é uma sociedade civil não-política, sob o ponto de vista partidário. Há uma ideia de que talvez Moçambique adote valores do humanismo universal. Nós não achamos que essas soluções sejam, necessariamente, o que vai dar origem a esse ‘novo’. A comunidade internacional pode-se aproveitar desse imbróglio – a situação de aporia – ou teria de se retirar. Mas como Moçambique adotou o neoliberalismo, que é um estágio atual da reinvenção do imperialismo, então o projeto imperial, que morreu/teve uma grande crise com as independências, tende a ser recriado com o projeto neoliberal. Mas o projeto neoliberal está em crise. Moçambique está no meio dessa conjuntura internacional. Para responder à pergunta, eu penso que a comunidade internacional ou se aproveita dessa situação, ou se retira. Mas, creio, a responsabilidade primária e urgente é dos moçambicanos. Não é do Governo, do Parlamento ou da sociedade civil, é do povo. Portanto, nós sentimos que essa luz ainda não começou a dar sinais de existência, pelo que vamos carregando a situação da forma como está.

[RC]- Desde muitos anos, e sobretudo de 1987 e 1988, Moçambique é o resultado das contradições, dos erros, das incapacidades que as elites nacionais tiveram de pensar as propostas da dita comunidade internacional. Como dizia o Boa, ‘é preciso partirmos de um princípio muito simples’: as elites que estão a dirigir hoje o país perderam a capacidade de compreender os principais problemas da ação moçambicana. Estão desconectados com a dinâmica do dia-a-dia dos moçambicanos. Aquilo que Balzac disse: “quando um povo perde as estribeiras porque tem fome, ele perde também a capacidade de compreender qual é a própria dimensão existencial”. Quero dizer: o povo moçambicano está desapossado no seu interior, no sentido subjetivo do termo, e também está desapossado do ponto de vista material que, hoje, Moçambique se transformou substancialmente num local de fantasmas volantes. [Algumas ações ]dos que governam o país, por não terem a conceção de Moçambique e por fazerem do país um local onde cada um se autogoverna – com o vendedor ambulante a vender esqueiros e alfinetes -, não resolvem o problema de Moçambique, mas responde a um problema existencial, a fome. Quando olhamos para as elites notamos que não sabem produzir riqueza nacional, mas têm uma única certeza: controlam o aparelho do Estado, a máquina burocrática, o sistema que permite a distribuição da riqueza nacional. No fundo, transformam-se em pessoas insensíveis àquilo que é a miséria, a penúria pela qual passa a maioria das pessoas. A comunidade internacional nunca foi um grande problema para os países africanos. O grande problema sempre foi haver elites políticas descomprometidas com o interesse nacional. Elites políticas que perderam o sentido da responsabilidade diante dos seus povos.

“As elites moçambicanas hoje são cipaios ao serviço do capital internacional” – Régio Conrado

No caso específico de Moçambique, em que momento é que elite política nacional perde este sentido de construção de nação?
[BM] – Francis Fanon previu e anteviu isso nos anos 60/70 ao afirmar que o grande dilema das sociedades pós-coloniais africanas seria o surgimento de uma compradorial bourgeoisie,. Acho que isso elege hoje no status quo de Moçambique, portanto, daqueles que mandam – as elites estatais e políticas. Elas não têm o poder de decisão sobre o jogo do capital internacional, no entanto, beneficiam dele. São burguesias compradoriais. Isso significa que são burguesias altamente dependentes do capital internacional. Aliás, a elite moçambicana não é necessariamente capitalista, no sentido clássico do termo que controla os processos de produção e os meios de produção. É uma elite que se ancora no capital internacional para desapropriar a população para poder se afirmar. Vários capítulos deste livro mostram que a nossa elite não só perdeu a sensibilidade como acredita no capital internacional como a sua âncora para levar a cabo as suas aspirações de se transformar numa classe dominante, governante, que tenha acesso a recursos financeiros e que tenha acesso ao capital sem ser ela própria uma elite produtora de riqueza. Quando se fala em comunidade internacional estou a olhar para a diplomacia e organizações internacionais. Mas o projeto do capital internacional em Moçambique – que temos de diferenciar entre isso e aquilo que poderíamos chamar de comunidade internacional – é que o capital internacional aproveita-se dessa fraqueza, dessa insensibilidade e dessa crise da elite moçambicana para levar a cabo a sua missão histórica de acumulação de capital. Portanto, a nossa elite política, que coincide com a nossa elite económica, apesar de não ter nenhuma experiência produtiva real – porque não são capitalistas no sentido convencional – elas não existem sem o capital internacional. Quando este livro mostra o que acontece no ramo da produção social, no ramo do campesinato, no ramo agrário, pesqueiro, no ramo dos serviços sociais sintetiza essa confusão ideológica e de pertença de classe. A maior parte da nossa elite política e estatal são oriundas do campesinato e não têm um processo de acumulação histórico. Eles são capitalistas que usam o Estado, que se apropriam dos recursos, oprimem o povo para se posicionar na conjuntura internacional e nacional como os novos neocolonialistas.

Uma pergunta para os dois: Há necessidade de mudança dos atores políticos e sociais para que Moçambique tenha uma outra perspetiva?
[RC] – Não penso que o grande problema esteja na mudança dos atores, na mudança de quem governa. Há uma ideia perversa, eu até diria que há uma sofisticação do senso comum que vem da incapacidade de compreender os verdadeiros problemas de Moçambique: que é pensar que substituindo a Frelimo pela Renamo, a Frelimo pela sociedade civil por outros grupos resolveríamos o problema. Estive a ler um livro da Simone Veil, uma filósofa francesa que farei enunciação no dia do lançamento do livro. (Ela diz que) quando um país perde a consciência de si próprio e perde a sua responsabilidade porque as elites já não compreendem não só o seu papel na construção do país, mas, mais grave ainda, se transformam em opressores, em violentos, agressivos, exploradores, em larápios, aves de rapina no que concerne ao país, obviamente, o que resta é que os povos são transformados em insectos consumíveis, quer dizer, perdem necessariamente a dignidade humana para se transformarem em instrumento ao serviço de interesses que são alheios à própria nação. A nação moçambicana é um projeto de liberdade e é uma ideia. Hoje, ser moçambicano constitui uma ideia de pertença a um território que se chama Moçambique. Na introdução, eu e o Boa afirmamos uma coisa: um dos grandes problemas de Moçambique pós-colonial não é o problema das sucessivas crises, o problema é que o projeto nacional está em situação de crise radical. E quando há a decomposição da ideia de pertença a um país, o que ocorre é que todo e qualquer indivíduo que viva em Moçambique perde, em parte, a dignidade e a relação com este lugar que se chama Moçambique. Cada um procura satisfazer os seus interesses imediatos. No entanto, não vou discutir a comunidade internacional, porque é um conceito abstrato que não existe. Estaríamos a dizer que existe uma uniformização de interesses. Eu poderia falar da força do capital internacional que tem muito mais interesse operatório porque quando as grandes empresas internacionais investem em países como Moçambique não estão preocupadas nem com estabilidade, nem com o desenvolvimento, nem com o crescimento económico, mas com a estabilidade que, para eles, quer dizer a ausência de conflitos de alta densidade. Este é o ponto fundamental. Mas o problema é que no contexto moçambicano elas, as empresas, têm cúmplices. As elites atuais são cúmplices dos interesses exteriores a Moçambique. É por essa razão que quando se renacionaliza a Cahora Bassa não são os interesses do povo moçambicano que estão no centro das atenções. Quando se constrói uma estrada nacional, ou uma subestação de fornecimento de energia não é o interesse nacional que está em causa, mas é o que ganham as diferentes elites envolvidas em diferentes negócios do Estado que importa muito mais do que o interesse nacional. É por isso que a Natacha Bruna, autora de um dos textos do livro, afirma que o problema da crise moçambicana além de ser múltipla ela representa um desequilíbrio profundo na estruturação do país do ponto de vista económico, agrário e, por consequência, acrescento: desestabiliza o próprio projeto de reconciliação e da paz em Moçambique porque, enquanto se pensa Moçambique na perspetiva dos interesses das elites, perde-se, na verdade, o interesse da grande maioria. Resumindo, o grande problema de Moçambique, no ponto em que coloca: a comunidade internacional está a fazer a sua parte, que é responder os interesses dos seus respetivos países, capitais e, para o caso de Moçambique, eles têm a vantagem de ter uma espécie de cipaios nacionais. No tempo colonial, os cipaios eram os que usavam a força bruta para reprimir os povos e esses mantinham a ordem social. As elites moçambicanas hoje são cipaios ao serviço do capital internacional e, pior, é que nem têm consciência disso. É por isso que Castel Branco – que não é o primeiro, porque Michel Cahein também afirma -, as elites moçambicanas são rendeiras e improdutivas mas que fazem da relação com o Estado o instrumento fundamental para a acumulação primitiva do capital. Isso significa três coisas fundamentais: roubo, saque e delapidação dos interesses nacionais.

“O regime político em Moçambique está esgotado” – Boaventura Monjane

Boa, há necessidade de mudança de atores políticos e sociais para poder ter o novo Moçambique?
[BM]- Na esteira desta pergunta, eu falaria de um capítulo escrito pela Natacha Bruna que explica (o Pro-Savana) um processo de resistência a uma proposta de capital agrário que não se efetivou em Moçambique que é apresentada por uma grande potência mundial – o Japão. Era uma proposta de substituição de agricultura camponesa e campesinato em Moçambique para dar lugar àquilo que se poderia chamar de agricultura industrial(izada) para produção de commodities agrários que têm mercado, tal como a soja, etc. Por isso, gostava que falássemos das resistências que é um elemento muito pouco estudado em Moçambique, mas bastante importante. Acho que os povos em Moçambique – não podemos falar de um só povo, tal como um dos capítulos diz: não podemos falar de uma nação homogénea, pois é uma falácia – não são vítimas passivas de tudo isso que dissemos. Eles reagem. Exemplo, essa proposta – o Pro-Savana – foi resistida e combatida. Portanto, em Moçambique neste momento eu vejo este potencial, sobretudo, aquilo que podemos chamar de sociedade civil organizada. Mas eu queria focar-me na sociedade civil agrária. O que a resistência e a derrota ao Pro-Savana nos mostra, tal como mostra um dos capítulos do livro, é que há uma agência ativa em Moçambique e que a articulação entre os vários setores da sociedade civil, os movimentos sociais agrários, mas não só, podem resultar em potência ou potencialidade política (não partidária) que pode fazer face ao grande capital. O Pro-Savana foi um exemplo claro disso, portanto, o movimento camponês uniu-se com o das mulheres, dos ambientalistas, dos direitos humanos e confrontaram o projeto que tinha tudo para dar certo a favor dos seus proponentes e foi resistido. Isso é uma pista de que o potencial político dos excluídos, dos cidadãos e do campesinato em Moçambique é revolucionário. Se calhar esteja aí a solução, porque há uma coisa que devemos dizer: é que o regime político em Moçambique está esgotado e este esgotamento é bastante claro. Não é preciso ser especialista para ver que está esgotado. E a violência que vemos em Moçambique, para manter este regime politico esgotado, é resultado deste esgotamento. Eu penso que as soluções estão no exercício pleno da cidadania moçambicana. Isso já está na Constituição, que coloca ênfase no agenciamento e na capacidade de as pessoas exercerem um certo poder como povo e como pessoa. Não é uma coisa nova.

Como é que se materializa essa ação?
[BM]- Essa é uma grande pergunta. Eu não sei se temos uma resposta clara nesse livro. Uma das nossas teses é que é claro que o velho já está moribundo, o regime político está em crise, a Frelimo não sabe o que fazer, a elite está confusa. Penso que para que o novo surja não é uma transição que vai necessariamente através de um processo que vai surgir de um processo democrático, ou seja, através de um processo eleitoral, com um partido que surja, etc. Não. Penso que as várias forças vivas da sociedade moçambicana e nisso o papel dos movimentos sociais da sociedade civil organizada é importante. Penso que daí poderá provavelmente surgir uma aliança como algum processo político que possa ser formado, mas que neste momento não existe. Concluindo: não acredito que a sociedade civil, como diz o José Pinto Sá, autor de um dos capítulos, que acredita que a sociedade civil sozinha pode fazer nascer essa alternativa. Acho que sozinha não pode. Ela tem uma potencialidade e força importantes, mas precisaria se articular com muitas outras forças e, provavelmente, com algumas alianças dentro do regime e sistema atual. Talvez assim poderia pôr fim a atual situação de aporia que Moçambique atravessa.

[RC] – É o seguinte: durante muitos anos eu acreditei que era preciso fazer uma aliança com o campesinato pobres, miseráveis para solucionar os problemas de Moçambique. Também acreditei que era preciso destruir as elites para repor uma nova ordem social. Mas hoje, porque já não sou da extrema esquerda, sou um social-democrata…
[BM] – Esta é uma opinião do Régio e não do livro (risos).
[RC] – Como Boa demonstrou que não estava de acordo totalmente com a opinião do José Pinto Sá, que é um dos autores do nosso livro, nós também respeitamos as opiniões, pelo que cada um diga o que bem pensar e entender. Mas eu e o Boa acreditamos numa coisa: a reconstrução de Moçambique enquanto projeto onde é possível imaginar a prosperidade, estabilidade, passa necessariamente por repensar o projeto de desenvolvimento nacional baseado nas reivindicações, aspirações das maiores excluídas, que significa aquela mamana (mulher e mãe) que vende gelo nas esquinas da cidade de Maputo para poder alimentar o seu filho para ir à escola. Neste momento, Moçambique é economicamente inútil para as populações que vivem em Moçambique, é socialmente desesperante para a grande maioria e é angustiante para as classes médias. Quer dizer, Moçambique, no final de tudo, o que oferece aos moçambicanos é miséria, angústia e enfarte. Estas três caraterísticas de fundo ocorrem porque o projeto nacional da forma como está a ser implementado consciente ou inconscientemente acaba desvalorizando as forças nacionais.

Nas vossas leituras sobre o papel desta burguesia e o contacto com o capital internacional, encontram a elite moçambicana como um ator ativo ou uma vítima desses processos?
[RC]- Nós somos eminentemente sociológicos na nossa análise, pelo que é preciso esclarecer aqui uma coisa muito simples: não defendemos a tese segundo a qual a nação moçambicana não existe; não defendemos a tese de que o país, Moçambique, não existe, nem defendemos a ideia de nação e de projeto nacional é inútil. O que defendemos é: o problema hoje é que o conceito de unidade nacional perdeu a sua sensibilidade íntima. E quando se perde a sensibilidade a um espito maior – chama-se absoluto -, filosoficamente falando, estamos a dizer que não temos nem o conteúdo para continuarmos a pensar como país e muito menos temos o orgulho de pertencermos a um país. Mas apesar de as elites moçambicanas terem com todas as suas contradições, os povos moçambicanos, felizmente, continuam preocupados, ligados e convictos de que pertencem a uma pátria. Se nós tivermos que analisar com profundidade – eu penso que cheguei a uma ideia mas complexa ao mesmo tempo – é que o grande problema de Moçambique, sobretudo, pós-1986 (com a morte de Samora Machel) foi de imaginar o país como o lugar em que todo e qualquer indivíduo transformar-se-ia num instrumento ao serviço do capital internacional e que isso daria resultados replicadores no processo de desenvolvimento nacional. Mas o grande problema é que Moçambique não tem pessoas que compreendem o sistema capitalista, a economia do mercado, pelo que quem se beneficiou disso, como diria o Pepetela na “Geração do Utopia”, todo mundo canta socialismo, capitalismo, mas os interesses que eles cantam são os interesses privados. Resumidamente, o problema de Moçambique não é tanto perguntar aquilo que poderá ser mas nos questionarmos: que conjunto de perguntas é que nós não nos estamos a colocar. Quer dizer, Moçambique não se está a colocar perguntas de fundo.

E quais seriam essas perguntas?
[RC]- A primeira pergunta de fundo seria: que tipos de problemas nacionais queremos resolver? Não está respondida porque não sabemos a quem queremos beneficiar?; a segunda é: a que tipo de interesses responde o modelo de desenvolvimento nacional? Esta pergunta não está respondida porque as elites nacionais estão convictas de que elas ao responder ao seu próprio interesse estão a responder a um interesse coletivo, o que é um total erro.

A Agenda 2025 não responde essas duas questões?
[RC]- A Agenda 2025, que é uma ideia extraordinária, no fundo, não foi apropriada por quem deveria ter o sentido de pertença à pátria, que são as elites. A Agenda 2025 nunca teve o conteúdo programático e político necessário, porque caso se aplicasse o projeto da Agenda 2025 e o que nós estamos a refletir nesse livro isso iria significar a relativização da força do partido que está no poder, que deixava de ser o centro das atenções e isso iria transladar para o povo moçambicano e a Frelimo transformar-se-ia o contrato social popular e, segundo aspeto, teríamos uma situação em que o povo moçambicano teria muito mais capacidade de intervir no processo de construção de Moçambique. Mas como esses dois interesses não são importantes para a elite governante o que nós hoje temos é um sistema cadeado que consiste na promoção de amantes, amigos e companheiros que estão à volta do indivíduo que detém o poder, o que se chama a neopatrimonialização do processo de desenvolvimento nacional. Quando o Fanon em os Condenados da Terra diz que os descolonizadores tornar-se-iam piores que os colonizadores é o que no fundo eu estava a dizer: o grande problema da situação pós-colonial seria o facto de que os que descolonizaram o país iam ser melhores servidores na continuidade da estrutura precedente em concreto em que o nacional é utilizado para poder maquilhar a verdade do colonizador. Por essa razão que o Banco Mundial, o FMI, a OCDE e todas as grandes fundações internacionais quando chegam a Moçambique têm sempre os seus sequazes, os seus cipaios nacionais, que permitem que as suas ideias entrem para o país e estruture uma espécie de estabilidade para que haja uma espécie de coincidência de interesse. Exemplo: olhemos para o projeto de construção das estradas. Esses são estruturadas não para responder ao interesse da ligação do país mas para responder ao interesse das elites políticas que controlam o mercado e os serviços de construção em Moçambique. Por hipótese: se a estrada de Cuamba para Mecula não é útil, mas a de Macomia para Palma é, ainda assim vão construir a primeira estrada. Não é o interesse nacional que está em causa, é o das elites nacionais que fazem discurso do interesse nacional o instrumento para legitimar os seus próprios interesses.

Quais são as propostas futuras que apresentam no livro?
[RC]- Nós não somos magos da bíblia, as deusas femininas gregas que davam soluções aos guerreiros para irem para a luta com a certeza de que ganhariam a guerra. A nossa única responsabilidade é apontar os problemas, as contradições e demonstrar que os processos e as narrativas nacionais chegaram a um ponto de esgotamento e que é preciso renovar. Mas a renovação passa por duas coisas fundamentais: primeiro, estamos numa situação em que a geração dos 50/60 anos está a ir para morte biológica. A geração dos 40/45 anos que é a idade da grande produção intelectual está preocupada com o dinheiro, as prostitutas, porque o paradigma pós-90 fez de Moçambique um país em que ser reconhecido como ser de valor é ter dinheiro e mulheres ao lado. Isso penetrou tanto que na sociedade moçambicana que há poucos que se preocupam com o destino nacional. Volto a citar Simone Veil: o único critério válido para medir a profundidade de uma sociedade é quando a sua juventude intelectual, cultural e cívica é capaz de se apropriar dos problemas e propor soluções. Este é o sentido (do) “AlternActiva”: primeiro, nós nos apropriarmos dos problemas nacionais e assumi-los; segundo, definimo-nos como moçambicanos convictos.

Os autores do livro estão todos na diáspora?
[RC] – Fundamentalmente. Os que produziram os artigos científicos estão todos na diáspora.

Do ponto de vista de estrutura do livro, o que se pode destacar?
[BM]- Como o Régio disse, a maior parte dos autores e autoras deste livro tiveram de uma ou de outra forma exposição ao mundo além de Moçambique. O escritor José Saramago já dizia que é preciso sair da ilha para ver a ilha. Ou seja, apesar de termos uma proximidade epistémica, o facto de a maior parte de nós termos dado as nossas contribuições sobre Moçambique, que bem conhecemos, de fora permitiu-nos fazer uma análise menos emocional e mais realística do que se estivéssemos em Moçambique. Portanto, o grupo de autores não se fecha no conceito da diáspora, que é um conceito que pode significar gente que se radicou fora do seu país. Parte significativa dos que autores escreveu os capítulos fora, mas está agora em Moçambique. Nós não nos desligamos da vida do dia a dia, da dinâmica e pulsar de Moçambique. Este livro não foi escrito por gente que fugiu de Moçambique, foi escrito por quem saiu de Moçambique para refletir Moçambique a partir de outras geografias. Portanto, encaram Moçambique de uma forma muito mais realística e teoricamente mais informada.

[RC] – Este livro é produtivo de duas convicções: por um lado, que é possível pensar Moçambique diferentemente, é por essa razão que algumas das ideias elementares deste livro foi construídas na Beira numa longa viagem de carro com um grupo de académicos e intelectuais para pensar Moçambique a partir do centro, uma rutura com a ideia de que o pensamento tinha que começar em Maputo. Foi simbólico e pragmático. O segundo aspeto de fundo e a vantagem deste livro é que grande parte dos artigos e capítulos são de pesquisas em curso ou terminadas com conclusões mais ou menos sólidas. Os capítulos académicos e de investigação científica têm esse condão de trazerem a dinâmica do que poderíamos chamar de concreto do quotidiano daquilo que Moçambique vive e poderíamos resumir numa única frase: o destino de Moçambique não se jogará nem na sociedade civil, nem no partido que está no poder, nem nos partidos da oposição. Vai jogar-se quando os moçambicanos comuns se apropriarem das contradições de Moçambique para poderem compreender que afinal que a miséria e a desconstituição de Moçambique não é uma fatalidade, é um problema temporal que pode ser resolvido. Eu continuou a acreditar que este livro tem duas virtudes: são jovens académicos intelectuais, sobretudo, que estudaram, viveram na diáspora e contactaram com a diáspora, vivem conectados ao internacional e isso faz deles um dos atores essenciais no processo de diálogo do que existe no país e fora.(MM)

2 COMENTÁRIOS

  1. Espanta-me a citação de Simone Veil pelo R.C. Veil é a expressão do conservadorismo mais adorado pelos politólogos ocidentais. Cheira a velho.

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