Entrevista ao académico Fernando Jorge Cardoso sobre ataques jihadistas no norte de Moçambique

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Professor e investigador moçambicano radicado em Portugal Foto retirada do Facebook ©
Manuel Matola

Moçambique está a braços com um fenómeno estranho: desde 2017 que há ataques jihadistas na província de Cabo Delgado, norte do pais, onde existe um ambicioso projeto do gás natural, que tornará o país num dos maiores produtores mundiais, e grandes quantidades de rubis, um dos recursos minerais mais cobiçados atualmente. O Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, solicitou apoio internacional para combater os protagonistas desses ataques, mas o governo desconhece quem são os autores dos atos violentos que já provocaram cerca de 350 mortos. Centenas de famílias estão a abandonar as suas casas e o conflito está a alastrar-se para uma segunda província do país: Niassa.

O jornal É@GORA entrevistou o especialista em assuntos africanos e um dos imigrantes moçambicanos mais respeitados no meio académico em Portugal e não só. Fernando Jorge Cardoso, docente de “Desafios Globais” e “Dinâmicas do Crescimento e Economias Emergentes”, duas cadeiras do curso de Estudos Internacionais ministrado pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), considera que “o Estado moçambicano é um Estado fraco e, em Cabo Delgado, ainda mais fraco”. E dada à fragilidade das autoridades moçambicanas para travar as ações deste grupo desconhecido, o Professor Catedrático está “completamente de acordo” com uma intervenção externa de forças especializadas coordenadas pelas autoridades locais ou por quem seja capaz de o fazer “para caçar” os jihadistas que atuam no norte de Moçambique.

“Eu digo caçar de propósito porque, a prática de bombardear com artilharia ou com aviação, a única coisa que resulta é em morte de civis”, afirma o investigador em entrevista que pode acompanhar a seguir:

Professor, como é que o Estado moçambicano no seu todo deve atuar e como é que olha para a forma como está a responder essa questão dos insurgentes em Cabo Delgado?
O conhecimento e a análise que faço sobre aquilo que está a acontecer em Cabo Delgado é relativa à informação que tenho e capacidade de análise que sou capaz de ter. Parecem-me que há três ou quatro elementos que são claros no meio de tudo isso:
Primeiro elemento, há uma consequência de ações tomadas no passado, que não é tão recente como isso, e essas ações tomadas no passado têm a ver com o envio para doutrinação ou formação em Madrassas, portanto, em escolas corânicas e outras, quer na Arábia Saudita, quer nos Emirados Árabes Unidos, ou no Omã, mas particularmente na Arábia Saudita. E essa ida de jovens moçambicanos com bolsas para estudar nesses países foi algo que começou em Moçambique ainda no tempo de Samora Machel. Ainda no tempo em que o Conselho Islâmico acordou com Samora Machel que poderia aceitar dinheiro – neste caso, bolsas da Arábia Saudita – desde que garantisse ao regime na altura que isso não pudesse transmutar em qualquer posicionamento político contra esse mesmo regime.

Após a liberalização do regime moçambicano e a ida de jovens moçambicanos, com bolsas, para Arábia Saudita e outros países – porque não foi só de Moçambique que isso aconteceu – foi intensificada. E o que aconteceu foi que em determinado momento do regresso destes jovens, os próprios dirigentes do Conselho Islâmico de Moçambique começaram a ter alguma dificuldade não só de integração de alguns deste jovens, como também começaram a ser contestados. E ao serem contestados, houve um posicionamento dentro do Conselho Islâmico no sentido de enviar uma grande parte deles para o Norte de Moçambique, mais concretamente em Cabo Delgado, onde foram criados um conjunto de mesquitas, houve um conjunto de problemas, mas que não geraram violência do género que acontece desde 2017 em diante. Portanto, nós temos aqui uma componente que tem a ver com a forma como foi gerida por parte do Conselho Islâmico de Moçambique e das autoridades moçambicanas a ida de jovens moçambicanos que voltam, digamos, com uma maneira diferente de olhar para a prática islâmica, de uma maneira, como agora se diz e é correto dizer, salafita, portanto, uma maneira radical, extremista literal (que fazem) uma leitura literal do Corão e que contrasta com as práticas tradicionais, ou de longo termo, praticadas no Norte de Moçambique. Portanto, esse é um dos componentes de há mais tempo.
Um segundo componente que é muito mais recente tem a ver com o facto de no Quénia ter sido morto, em 2012, um dos líderes islâmicos apoiantes de movimentos jihadistas que tinha um conjunto de seguidores. Foram de facto atacados, mortos e foram objeto de violência por parte das autoridades militares e policiais quenianas, também porque o Quénia é um país extremamente envolvido no conflito da Somália no sentido em que tem milhares de soldados quenianos na Somália a tentarem ajudar o governo a conseguir controlar Mogadíscio e as áreas no sul do país que fazem fronteira com o Quénia e que estão todos os dias ameaçados pelo al-shabab, movimento que é hostil à governação queniana.
Esse conjunto de elementos que estavam afetos a esse líder religioso mantiveram a sua atividade, fizeram as suas ligações com outros líderes radicalizados no lado da Tanzânia, portanto, em toda a costa leste africano e em determinado momento, no Sul, contactaram com a parte moçambicana que está no Norte de Cabo Delgado. E esse contágio é feito a partir de meados de 2015 em diante e com grande força em 2017 em diante. Portanto, esse fator da existência de influências por parte de grupos mais organizados com objetivos de desestabilização, mas que tem a ver com uma agenda do Estado Islâmico está obviamente evidente no norte de Moçambique.
E depois há um terceiro fator que começa a aparecer porque, como sempre nesses acontecimentos, uma coisa pode começar sendo uma cenoura e terminar um cozido à portuguesa, ou seja, um facto simples relativamente controlável pode transformar-se com o tempo num conjunto de outros factos muito pouco controláveis. É isso que está a acontecer em Moçambique.
O terceiro fator, como eu estava a dizer, tem a ver com contrabando e com a utilização do porto de Palma – isso está provado e relatado, aliás, pela polícia internacional – como um ponto de passagem no tráfico de heroína, o que significa que há intervenção – e aqui vou ser muito concreto – de máfia chinesa, não do governo chinês, devemos ser claros, não dos empresários que estão legalmente e de boa fé em Moçambique, mas da máfia chinesa. Não só chinesa.
Embora não esteja provado, há também denúncias relativamente a partes de comerciantes moçambicanos que professam o islão, mas que não por razões religiosas também estão envolvidos em operações menos lícitas. Isso, em fim, é algo que a polícia tem que provar e a única que eu sei é aquilo que vai sendo dito nas notícias e nas redes sociais, mas sem substrato de factos muito forte.
Por último, há todo um contexto em que o norte de Cabo Delgado se encontra. E aqui não estamos a falar unicamente da população do nordeste de Cabo Delgado. Estamos a falar de Cabo Delgado enquanto uma das províncias onde existe maiores indícios de pobreza e o aparecimento de repente de grandes negócios de mineração que suscitam bastantes apetites. Grandes negócios esses que neste momento estão nas mãos de alguns antigos líderes do movimento de libertação nacional. Aliás, não é desconhecimento e eu não quero com isso dizer que os antigos líderes estejam envolvidos, porque não acredito que estejam envolvidos em operações de instabilidade, pelo contrário, estão interessados em estabilidade. Mas o que é um facto é que neste momento em Cabo Delgado encontra-se a mina de rubis com maior qualidade no mundo. E nós vimos o que aconteceu nesses últimos dias com invasões de desempregados que procuravam também ser garimpeiros e que ao tentarem ser impedidos levaram a que houvesse sangue. Então, o que nós estamos a ver é que os conflitos estão a passar do nordeste de Cabo Delgado para o centro de Cabo Delgado, e já começamos a ver aparecer também alguns conflitos na parte norte do Niassa na sua ligação com a Tanzânia.

Mapa das zonas centro e norte de Moçambique

Há possibilidade de extensão pelo país todo?
A possibilidade de extensão pelo país todo não é um facto nesse momento. Agora, a possibilidade de extensão por mais partes de Cabo Delgado e algumas partes de Niassa está em cima da mesa, porque nós já temos factos concretos de que está em cima da mesa. Eu não acredito que as forças políticas moçambicanas, quer o governo e a Frelimo, que sustenta o governo, quer a Renamo, quer o MDM, quer as comunidades religiosas, sejam elas islâmicas, católicas ou de outos grupos estejam de alguma maneira interessadas no prosseguimento da instabilidade e daquilo que está a acontecer. O que eu sei é que o Estado moçambicano é um Estado fraco e, em Cabo Delgado, ainda mais fraco. Por outras palavras, o Presidente da República moçambicano independentemente da valorização que se possa sobre a sua atividade tem as mãos relativamente atadas sobre aquilo que o Estado moçambicano pode fazer em Cabo Delgado, porque o envio de soldados, ou polícias do sul para o norte do pais, ou seja, de pessoas que não conhecem o terreno, não falam a língua e muitas vezes não professa a mesma religião, a única coisa que provoca é confusão. As primeiras tentativas no envio de tropas especiais logo em 2017 para Cabo Delgado resultaram em revolta da própria população contra alguns desses elementos e no aumento de atividade, invés de haver uma diminuição da atividade desses grupos armados que neste momento operam.

Então, o que fazer?
Quando fazemos uma análise daquilo que se passa e nos perguntamos o que fazer, há aqui o curto prazo, o prazo mais imediato e o longo prazo. Relativamente ao longo prazo estamos perante um problema de pobreza, de más práticas relativamente à governação, perante um problema, digamos, da organização do próprio Estado moçambicano. E isso passa muito pela luta política, por novos investimentos, pela criação de emprego, etc. Ou seja, nós estamos a falar de médio e longo prazos, mas enquanto o médio e longo prazos não chega, chega aquilo que se passa todos os dias. E aquilo que se passa todos os dias vai mudar o médio e longo prazo, seguramente, e as perspetivas. Então, a outra perspetiva é o que fazer imediatamente. Eu não tenho pejo absolutamente nenhum em dizer que estou completamente de acordo com intervenção externa de forças especializadas que em coordenação com as autoridades locais e o governo moçambicano ajudem o governo moçambicano, se isso ainda é possível, a caçar essas pessoas. Eu digo caçar de propósito porque, a prática de bombardear com artilharia ou com aviação, a única coisa que resulta é em morte de civis. Vamos ser claros: eu estou de acordo com uma operação militar e policial com apoio externo em Moçambique coordenada pelo Estado moçambicano ou por quem seja capaz de a coordenar.

Lusa©

Mas o Presidente Nyusi apareceu, segundo a imprensa moçambicana, a dizer que não tem havido uma reação dos parceiros internacionais. Isso significa que não há interesse de todo da parte de quem possa ajudar?
Não sei especificamente que tipo de ajuda o Presidente Nyusi pediu que, neste momento, não está em cima da mesa, está em baixo da mesa. Eu também percebo que há determinado tipo de operações que devam ser planificadas sem que haja uma visibilidade pública, porque estamos a fazer de guerra. Vamos ser claros, uma guerra localizada, mas neste momento é uma guerra. Não sei exatamente que tipo de ajuda e a quem é que o Presidente Nyusi pediu ajuda, mas não tenho dúvidas de que o Presidente Nyusi precisa de convencer relativamente aos parceiros internacionais a intervenção de forças especializadas neste tipo de luta.

Apesar de ser Presidente eleito e já ter tomado posse numas eleições que foram tidas como fraudulentas e o facto de o seu nome ter aparecido recentemente no maior escândalo de dívida do país poderá estar na origem dessa eventual falta de resposta de quem possa participar nesse palco de guerra?
Academicamente eu diria que sim, do ponto de vista prático não lhe sei responder. Mas o que é um facto é que o Presidente Nyusi precisa de mostrar aspetos positivos da sua governação, porque, como acabou de dizer, a classificação das últimas eleições moçambicanas não foi muito positiva relativamente aos observadores internacionais, incluindo a Delegação das União Europeia que esteve presente e a Delegação norte-americana, para também sermos claros. E por outro lado, o problema da dívida oculta, o nome de Nyusi enquanto ministro da Defesa está indelevelmente ligado ao caso enquanto o caso não estiver totalmente clarificado. Portanto, enquanto isso não acontecer, a fragilidade do Presidente Nyusi perante a opinião pública moçambicana, por um lado, e, por outro lado, perante os seus parceiros internacionais é evidente.


E qual é a solução provável?

A solução provável tem a ver com ele próprio. Tem a ver com o facto de ele assumir que tem que ter uma posição proativa. Vamos ser claros: independentemente da ilegalidade da contração da dívida moçambicana, a utilização dessa dívida foi feita alegadamente para melhorar a capacidade de resposta das Forças Armadas e das Forças Especiais da Polícia moçambicana na luta contra a Renamo. Foi essa a razão pela qual o Governo de (ex-Presidente Armando) Guebuza não levou a contração da dívida ao Parlamento moçambicano, porque estavam lá deputados da Renamo. Isto é óbvio. Esta é a razão que não é dita da maneira como eu estou a dizer, mas que é óbvia. Depois há uma outra questão ligada com essa que tem a ver: alguém lucrou com isso, ou seja, alguém meteu dinheiro no bolso? Eu penso que essa segunda parte é que o Presidente Nyusi tem que de uma vez por todas que deixar claro que ele não meteu dinheiro no bolso. Agora, ele era ministro da Defesa. Ele não pode alegar que não sabia da contração da dívida ilegal, não pode fazê-lo porque ele era membro do governo. Portanto, por um lado, essa não é uma decisão de Armando Emílio Guebuza à revelia do ministro da Defesa moçambicano, ou de seus outros colegas no governo, ou no partido. Por outro lado, o ministro da Defesa, atual Presidente da República de Moçambique, Filipe Nyusi, sabia que o objetivo da contração desta dívida era reforçar a capacidade de defesa das Forças Armadas moçambicanas e da Polícia. Ele sabia disso. Portanto, quanto a isso é um facto, quer dizer, não há nenhuma explicação que agora se possa inventar para contar uma história diferente, o que, ao meu ver, tem que ser muito claro relativamente ao seu posicionamento para o futuro é ele clarificar a situação e demonstrar que pessoalmente não lucrou nada com este dinheiro que entrou no país. Isso é que me parece absolutamente fundamental e isso não está claro. E enquanto não estiver claro, a posição dele está fragilizada.

A Oposição tem ou não responsabilidades sobre aquilo que está a acontecer, quer seja relativamente ao silêncio, ou à não clarificação da parte do Presidente Nyusi em relação ao assunto?
Eu julgo que se está a referir à falta de eficácia da Renamo nesses últimos tempos. Eu acho, de facto, que a Renamo desde a morte de (Afonso) Dhlakama está a passar por uma crise interna relativamente complicada que vai ter que resolver. Eu espero que rapidamente resolva essa crise e se transforme num partido de Oposição com mais capacidade de atuação na sociedade.

Mas corre o risco de desaparecer enquanto partido, olhando para aquilo que está a acontecer dentro da Renamo?
Eu acho que corre risco, não sei se é de desaparecer. Agora, que existem convulsões internas, existem, mas essas convulsões podem ser resolvidas pacificamente: ou por alguma cooptação de dissidentes, por um lado, e, por outro lado, a realização de um novo congresso. Não sei qual será a decisão no interior da Renamo. Eu sei é que independentemente das fraudes que terão ocorrido nestas últimas eleições, os observadores – não estou a falar de observadores oficiais, estou a falar de os próprios jornalistas e de quem analisa as eleições – por aquilo que me chega é que, na verdade, a atuação da Renamo deixou muito a desejar do ponto de vista de captação de votos.

E o MDM?
O MDM está marcado, do meu ponto de vista, por ser um partido demasiadamente regionalizado. O MDM nasce ligado à família Simango. (O reverendo) Urias Simango foi o primeiro vice-presidente da Frelimo. Durante muito tempo foi uma figura de proa do movimento de libertação nacional, mais tarde foi preso e morto pela Frelimo, ou por quem dirigia a Frelimo – isso todos nós sabemos – e, de facto, o aparecimento da família Simango na zona da Beira mostra uma projeção e uma capacidade de mobilização política relativamente grande e que põe inclusivamente em causa a própria projeção da Renamo – lembremos que nos primeiros tempos o relacionamento do MDM e a Renamo do Dhlakama não era muito bom, porque estavam a disputar o mesmo eleitorado –, mas o que é um facto é que o MDM, neste momento, ainda não conseguiu se afirmar como um partido nacional, embora em teoria o seja. Portanto, eu creio que, de facto, falta dar esse passo ainda ao MDM.

Essa ausência da Oposição terá que ser preenchida pela sociedade civil, ou o surgimento de novos partidos?
Eu julgo que as dinâmicas sociais em Moçambique poderão fazer aparecer novos partidos, inclusivamente a partir da Frelimo. Embora ainda exista muito por parte, digamos, da velha Frelimo aquela noção de que mesmo que estejamos em desacordo não saímos da família isso vale enquanto vale e em períodos de grande crise deixa de valer. Portanto, poderá acontecer. Não está a acontecer hoje, provavelmente não vai acontecer amanhã, mas eu não ficaria surpreendido se do interior da Frelimo começasse a surgir movimentos não só se opusessem à liderança da Frelimo, mas que eventualmente possam criar outros partidos. Não sei se isso vai acontecer, mas pode acontecer.
Do lado da sociedade civil, o aparecimento de novos partidos também pode acontecer, embora, vamos também ser claros aqui: a sociedade civil moçambicana é muito fraca e muito dependente do financiamento externo, não para comprar, mas tem a ver com subsistência da atividade que a sociedade civil faz. Não se trata disso. Mas vamos lá ver, a sociedade civil por definição não é um partido político. Se dentro da sociedade civil surgem partidos políticos, com certeza que surgem; se dentro da sociedade civil moçambicana podem surgir outros partidos políticos, estou convencido que sim; se vão ter projeção nacional, não faço a mínima ideia.(MM)

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