Entrevista ao fotógrafo português Sérgio Morais sobre o projeto para “humanizar a diáspora ucraniana”

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Manuel Matola

O fotógrafo português Sérgio Morais aprendeu a apreciar os valores singulares da Comunidade Ucraniana em Portugal e decidiu documentar toda essa riqueza cultural num conjunto de fotografias inéditas no seu projeto “Diáspora”. Fotografou quase 200 pessoas que integram este que é o terceiro maior grupo de imigrantes residente no território português para as apresentar em livro e numa exposição, mas a Covid-19 tramou todos os planos. O jornal É@GORA entrevistou-o e exibe hoje alguns retratos. Acompanhe:

A que é que se deve esta iniciativa?
Nos últimos anos foram surgindo coisas nos “media” que por vezes me chateiam um bocadinho. Primeiro, (aviso): eu não me classifico a nível politico. Há algumas ideias de Esquerda com as quais concordo, outras de Direita, portanto, não me identifico com nenhuma delas. Sou mais pragmático do que ideológico. O que me incomodou foram algumas coisas vindas da Direita e outras vindas da Esquerda. No caso da Direita, esta perspetiva de xenofobia e o discurso de que quem vem do estrangeiro vem aproveitar-se do nosso sistema de segurança social. Portanto, isso criava-me algum incómodo porque eu convivo com essas pessoas quase numa base diária e fazem trabalho árduo. E se entrarmos no site do INE conseguimos perceber que, no total, a riqueza que as comunidades migrantes, independentemente das nacionalidades, é muito superior àquilo que gastamos com eles através do sistema de segurança social. As pessoas utilizam isso (a informação) para jogos políticos, o que me tem trazido algum desconforto. Depois, eu fui convidado na altura em que a seleção da Ucrânia veio cá jogar com Portugal, no Estádio da Luz. Lembro-me do Mamadou Ba ter dito que as pessoas tinham que ter cuidado porque iam estar cá nazis em Lisboa, referindo-se aos ucranianos. É uma narrativa muito forte e que se encontra nas caixas de comentários nas redes sociais. As pessoas não sabem de onde isso vem. Tive que fazer uma pesquisa para perceber (que) nós estamos num país onde existe a extrema-direita que, nas últimas eleições presidenciais, tiveram quatro por cento e, na França e Itália, ultrapassaram os 25%. Ninguém diz que esses são países nazistas. Se eles não têm tanta expressão a nível de votos a nível da extrema direita, então de onde é que isso vem? Logicamente que com a anexação da Crimeia, os ataques em Donetsk, na Ucrânia, a Rússia criou esta narrativa de extrema-direita. Mas (entre os ucranianos cá) ninguém se identifica com o André Ventura e com a essa extrema-direita. Essas pessoas almejam alguma democracia. E como comunico para tantas marcas, dado a minha experiência com essas pessoas, comecei a pensar: por que não humanizá-los, mostrar as suas tradições, a indumentária, a gastronomia. Portanto, a ideia foi essa: humanizá-los um bocado, porque não são comunidades que veem para cá para vir explorar seja o que for, mas para trabalhar. Alguns veem com histórias muito tristes. Já tivemos aqui um anuário com histórias de cada pessoa que foi fotografada. Faz chorar. Pessoas que vieram para cá e passaram fome no trabalho. Os colegas diziam que iam almoçar e elas diziam que já haviam almoçado quando não tinham sequer dinheiro para almoçar. Foi a história destas pessoas e do quanto elas lutaram que fazem perceber que essas pessoas não se identificam com o fascismo. Até porque nós vemos que essa segunda geração de imgrantes ucranianos está toda a ir para as universidades. São pessoas que prezam a educação e o trabalho. Nós não vemos notícias de grande criminalidade ligada a essa comunidade. São pessoas muito apreciadas pelos patrões. São malta de trabalho, que se esforça. E a ideia foi essa: tentar desmistificar essa ligação à extrema-direita e de que são pessoas que veem para cá se aproveitar do nosso sistema de segurança social.

Qual é o período que cobre e qual o número de fotos e pessoas que foram envolvidas nessa iniciativa?
Até este momento foram fotografadas cerca de 200 pessoas. Ainda hoje recebi dois telefonemas. É raro o dia em que não receba telefonemas de pessoas que pretendam ser fotografadas. Eu não deveria estar aberto a isso ainda, porque a minha ideia era seguir agora para uma exposição, primeiro, em Albufeira, seguindo Lisboa, portanto, estamos neste momento a negociar com as autarquias e depois isso iria culminar num livro, só que a situação da Covid-19 veio se meter pelo meio. Nós arranjamos um espaço muito giro na Albufeira, só que nos disseram que, dado à pandemia, só poderiam entrar lá 10 pessoas de cada vez e então começamos a reequacionar tudo e estamos a protelar um bocadinho o projeto que já devia estar a andar, pelo que o projeto está meio parado porque temos que saber como vai ficar a situação epidemiológica.

Ainda não há uma data para a tal exposição, certo?
Ainda não. A última reunião que tivemos aqui com a câmara eles queriam que avançássemos já no mês de julho, mas perante estas condições, como estamos no Verão, pensou-se fazer algo no exterior junto ao Museu porque, para esta exposição, foram fotografadas algumas pessoas que têm uma papel importante no seio da comunidade em Portugal e, entre elas, existem algumas pessoas do forum musical, a ideia seria fazer uma exposição onde eles estivessem presentes a cantar também.

O que significa o retrato da comunidade ucraniana em termos da exploração que está a fazer – no bom sentido da palavra – dos traços culturais?
Desde que houve a guerra dos ucranianos com os russos, houve um avivamento do que é o patriotismo. Por exemplo, eu li num site outro dia que diz que 80 por cento das ucranianas estão a casar novamente com os vestidos tradicionais e não estes ocidental, que é o branco que nós mais conhecemos. Portanto, isso é igual a Portugal quando está no Euro, ou Mundial. As pessoas gostam de ter a bandeira nas varandas. Eles têm um grande orgulho por esses fatos que os carateriza. Essa foi a razão pela qual eu decidi que as fotografias fossem feitas com os fatos. Depois, pediu-se também que não se sorrisse nas fotografias, exceto as crianças. E foi explorado aquilo que é chamado a dominação lateral que traz algum dramatismo à imagem e estou a contar com a publicação da escrita com o livro, que tem o prefácio escrito pela deputada da Câmara Municipal de Lisboa, Aline Gallasch-Hall de Beuvink, que é de origem ucraniana também. E vão ser acompanhadas por alguns textos que é sobre a história do que eles passaram até estarem aqui hoje: o que deixaram para trás, as saudades, dificuldades e como foi (a adaptação) aqui em Portugal. Nós estamos perante pessoas que veem da antiga União Soviética, onde com todos os defeitos que tinham, eles prezavam muito a Educação. (Nesta comunidade), conheço muita gente letrada, com o ensino superior inclusive, que veio para cá limpar escadas, apanhar tomate em Santarém. Portanto, é essa carga dramática de toda essa História que se pretende, por um lado, que figure no livro. Mas eu não queria fazer um retrato totalmente vivido, com a pessoa a rir muito contente da vida e depois ter uma carga dramática tão grande, porque essas histórias é esse esforço desumanizado. Quero que as pessoas percebam que (estes imigrantes) têm sentimentos, que passaram por algo para estarem aqui hoje. Nós quando dizemos de ânimo leve que são nazis – o que não deve ser feito – é uma tremenda injustiça para com essa comunidade. E nós como sendo um país como somos – com défice grave a nível dos nascimentos, pois estamos a viver o momento da pirâmide invertida -, devemos saber que essa gente nos faz falta. Nós precisamos destas pessoas, tal como em França foi necessário os portugueses na altura em que fomos em massa. Faz tudo parte do que são as sociedades e movimentos.

Quando diz que as crianças são as únicas que não aparecem a sorrir, o que pretende transmitir?
Relativamente às crianças há aqui uma ideia diferente. Uma vez estive num jantar da comunidade e há um senhor ucraniano que me aborda dizendo: senhor Sérgio, agradeço por você pôr sempre a comunidade ucraniana em primeiro lugar, mas acho que você acredita mais do que eu. E perguntei: como acredito mais?, ao que ele diz: acho que não há esperança para a Ucrânia pois tem tanta corrupção, tantos oligarcas. Eu ouvi-o e quis lembrar que em tempos cá em Portugal as pessoas no trânsito metiam uma nota dentro do livrete para quando a polícia pedisse determinados favores. Hoje Portugal mudou muito. Haverá outro tipo de corrupção seguramente. Antes de entrarmos para a Comunidade Económica Europeia também era assim. Estamos numa evolução. Por isso, eu disse: no vosso país, que é mais jovem, vocês devem depositar esperança nessas crianças porque elas estão a receber educação fora daqui – a Ucrânia tem uma comunidade grande em Portugal, na Itália, nos EUA – e todos falam ucraniano. Não conheci nenhuma criança que não falasse a língua. São bilingues, os país tentam manter isso vivo e alguns deles pensam voltar um dia. É uma espécie de esperança que os filhos podem ter, essas crianças vão fazer a diferença porque foram educadas noutra conceção da vida. Eu achei que essas crianças são a esperança para que as coisas possam de facto mudar no país deles, pois estão a receber um tipo de educação diferente. São a esperança num futuro melhor.

Do seu contacto com a diáspora, no seu todo, quais são as justificações que encontra para este olhar e a atribuição destes rótulos, sobretudo, à comunidade ucraniana quer da parte da Direita e da Esquerda?
É fácil, isso está documentado. O que acontece é que aquilo que é a Rússia hoje tem uma máquina de propaganda muito bem montada. Vi um documentário há pouco tempo na Netflix que diz que a própria anexação da Crimeia teve um arquiteto e aquilo demorou quatro anos a congeminar. (Diz ainda o documentário que) houve um tratado (o de Budapeste) que foi assinado entre a Ucrânia, os EUA e a Rússia sobre a desnuclearização após a separação das repúblicas soviéticas. E os países (da ex-URSS) concordaram em entregar todo o arsenal nuclear porque são ainda democracias muito jovens; em troca, a Rússia e os EUA comprometem-se: ´se houver alguém que ponha em causa a vossa integridade territorial nós estaremos do vosso lado`. Perante isso, para se anexar a Crimeia era difícil. Teve que se criar aqui toda uma narrativa. Recentemente, foi apresentado no Parlamento português um voto de pesar pelo povo ucraniano – um da parte do Partido Comunista (PCP) e outro do Partido Socialista. Basta ler os textos, vê-se que eles são completamente opostos. O argumento do PCP estava totalmente assente nessa narrativa do nazismo. Mas as pessoas têm que pensar que a Segunda Guerra Mundial acabou para nós já há muitos anos, mas para eles acabou há meia dúzia de anos, porque eles estiveram até agora a viver consequência disso. Portanto, eles (os ucranianos) acabaram por ilegalizar o Partido Comunista e entende-se. Eles sofreram tanto mal daquelas pessoas que, se calhar, a fuga é essa. E, depois, Portugal é um país maioritariamente de Esquerda, porque sofreu muitos anos debaixo do jugo de Salazar. Acho que será por aí, pois tem sido feita muita propaganda nesse sentido. Diz-se que eles têm uma brigada de voluntários de guerra que são da extrema direita. Sem dúvida nenhuma, mas é pouco representativa e é isso que vem nos artigos da Brigada Azov: o de que a Ucrânia tem um campo para a extrema direita treinar. Vamos olhar para os EUA e contar quantos campos de milícias de extrema direita existem. Centenas, mas ninguém faz bandeira disso. A Ucrânia está a ser constantemente apertada pela Rússia só pela extrema direita que também existe na Rússia e em todos os países.

Essa narrativa é notória também da parte dos dois principais partidos: o PS e o PSD?
De maneira alguma, até acho que o PS inclusive, há pouco tempo, teve um encontro com o presidente da comunidade ucraniana. Portanto, tem havido, de facto, muito apoio do PS e do PSD no sentido de desmistificar essas coisas. Acontece que os restantes partidos dos extremos – quer à Esquerda quer à Direita – depois utilizam isso a seu bel-prazer e é aí que há uma tremenda injustiça.

O que é que pode fazer com que a narrativa sobre a comunidade mude e passe a ser vista de outra forma?
É difícil, mas não podemos parar de tentar. As pessoas têm de ser sensibilizadas. É muito fácil as pessoas dizerem: “Estão lá no bairro e não querem trabalhar”. Isto é uma ideia pré-concebida de quem não conhece a comunidade, de quem não esteve lá dentro e quem não sabe os desafios dessa comunidade, o que eles enfrentam no dia-a-dia. É preciso conhecer. E a ideia é essa: mostrar o que as pessoas passaram para estarem aqui hoje. A maior parte deles tem uma vida boa cá em Portugal. Têm casa, filhos na universidade, carro. Não estamos a falar de milionários, mas de uma classe média bastante estável e à força de muito trabalho. Há que perceber o contexto. Em comparação com a comunidade africana, traziam na bagagem uma educação diferente daquela que era dada em África. Portanto não estão a concorrer em pé de igualdade, não querendo com isto diminuir outra comunidade. Estes indivíduos vieram sem dinheiro nenhum, passaram fome, estiveram a dormir em barracas, mas traziam uma educação no bolso. Demorou um bocadinho a ser reconhecida pelas nossas entidades. Mudar esta narrativa é sensibilizar as pessoas e era preciso os partidos políticos não meterem à frente o ‘valer tudo’. Parece que isto da ‘caça ao voto’ faz valer tudo. No Europeu houve uma manifestação bonita quando os jogadores de Portugal se ajoelharam contra um problema: a xenofobia e o racismo, que continuam a ser um problema. Isto afeta-me. A ideia deste trabalho é desmistificar, é apresentar às pessoas o que eles são. Mostrar estas pessoas bonitas, com estas cores bonitas e com estas histórias.

Portugal está a fazer um bom aproveitamento das habilidades dos ucranianos?
Eu penso que sim. Há uns anos para se reconhecer uma licenciatura demorava muito tempo. Foram criados mecanismos de forma a acelerar e perceber se têm de fazer mais alguma cadeira. Acho que está a ser bem feito. Numa primeira altura não. Mas agora acredito que está a ser feito um grande aproveitamento, esta comunidade também tem uma grande participação na sociedade civil, organiza festivais, já tem as suas igrejas. Neste aspeto não diria que estas pessoas estão mal.


Portugal tem muito a aprender com estas pessoas?
Seguramente que sim. E ensinar também. É ai que está a riqueza da multiculturalidade. A multiculturalidade só nos enriquece e acrescenta valor à nossa sociedade. É de aproveitar o que esta gente traz na bagagem.(MM)

As fotos foram cedidas por Sérgio Morais

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