A angolana Hélia Adão abandonou um dos programas de sucesso televisivo que fazia em Angola e migrou para Itália onde tirou uma licenciatura em Marketing e Comunicação de Moda. Mas foi em Portugal onde, após o curso, decidiu se estabelecer profissionalmente como produtora de conteúdos.
Agora acaba de lançar um projeto que pretende que seja para a vida: um programa de rádio no qual abordará os mais variados temas fraturantes da sociedade. Daí o nome do espaço que tem duração de quase uma hora: AgriDoce. É, provavelmente, o único podcast virado para a imigração e que, aproveitando uma das ferramentas que surgiu no âmbito da revolução digital, os convidados imigrantes, e não só, falam sobre assuntos que dizem respeito aos que estão cá e lá.
O jornal É@GORA falou com a mentora do podcast, que já tem produzido dois episódios: o primeiro intitulado “Quando o/a parceiro/a (não) está verdadeiramente interessado(a)” e, o segundo, sobre “A Fluidez das relações amorosas”.
Qual é o conceito do programa AgriDoce?
É conversa informal sobre amor e sexo, relacionamento social, as mudanças que aconteceram no nosso comportamento comparando, por exemplo, com a forma de estar dos nossos pais, avós. Obviamente que nós agora lidamos de uma forma diferente. Todas as gerações são diferentes umas das outras, mas nós temos uma maneira particular de estar, na minha opinião, em parte, por causa da evolução que houve com as redes sociais. Então, eu vou fazer uma análise de tudo isso. Também vou falar de temas ligados à negritude, padrões de beleza, empoderamento negro, empoderamento financeiro e feminino.
Qual é o perfil dos convidados?
Não tenho um perfil específico. Eu escolho de acordo ao tema. As pessoas que acho que melhor apresentariam, ou seja, pessoas que tenham uma opinião que, para mim, vão ser suficientemente divergentes para mostrar aspetos diferentes da mesma questão.
Mas quando fala desses temas que apontou como exemplos está a referir-se, nomeadamente, a convidados da comunidade africana em Portugal?
Maior parte sim, porque, provavelmente, o meu público-alvo é mais africano e africano na diáspora. Mas não só. Também vou convidar sexólogos portugueses – porque estamos em Portugal -, alguns convidados (serão) portugueses. Há temas que são para a comunidade, mas também há os que são muito genéricos. Por exemplo, aquilo que falei no primeiro episódio – “Quando o/a parceiro/a (não) está verdadeiramente interessado(a)” – qualquer pessoa poderia identificar-se porque não passa pelo fator raça.
Olhando para os dois convidados do primeiro programa – uma é futura psicóloga e outro não é especialista na área – quando eu perguntava pelo perfil queria saber se são pessoas com alguma ligação ao tema que se vai debater ou são pessoas quaisquer?
Também. Por isso é que eu disse que as pessoas que vou convidar vão ter muito a ver com os temas, porque, por exemplo, a Isabelle Chef, estudante finalista de Psicologia e analista, e o Mário Rafael, como eu disse no programa, é uma pessoa que consegue espelhar as suas opiniões de forma que eu achei que representa a forma como muitos homens pensam. No caso dele, não é nenhum especialista em nada. Ele emite apenas uma opinião pessoal, mas que é partilhada por muita gente. Até os ´feedback` que recebi dos comentários e chamadas, a maior parte dos homens se identificou com o Mário Rafael. Então vai depender muito. Pode ter programas em que podem ter profissionais. Mas eu nunca quero profissionais que falam somente com base naquilo que é científico. É sempre para também tocar na parte humana e pessoal, porque a parte profissional só me interessa para dar um bocadinho de conhecimento às pessoas, mas ao fim ao cabo é promover conversas. Podemos até não chegar a nenhuma conclusão comum, mas promover pontos de vistas diferentes.
Este programa terá quase uma hora de tempo: será tema único ou pretende-se ir colocando vários temas em cada edição?
Não, será tema único. Mas o que eu pensei é, ao longo do tempo, implementar, nos dias em que tiver temas, se calhar, que levem menos tempo a ser feito algumas rubricas curtas, sempre muito informal e muito leve, isso pode vir a acontecer. Mas o tema vai ser sempre único.
Pela forma como se comportou no programa deu a entender que além das opiniões que pretende ouvir dos convidados, a Hélia também emitirá opiniões. Ou foi exceção?
Não, as minhas também serão ouvidas, porque o meu objetivo é não ter uma posição neutra dos apresentadores. Eu não vou ter isso. Por que eu decidi fazer um programa? É justamente porque eu achava que tinha coisas para passar, porque eu achava que, de alguma forma, a mensagem que eu tenho dentro de mim pode ser benéfica para um grupo de pessoas. Então, sempre no programa, no final principalmente, as pessoas poderão ouvir aquilo que é a minha opinião pessoal sobre o tema.
Para quem não tem uma ideia concreta do que é um podcast, o que é que esse – que é o AgriDoce – difere dos demais podcasts que já existem?
Em termos de linguagem. Há muitos podcasts em inglês que tratam do tipo de temas que eu vou tratar. Há bastante informação na Internet, de forma geral, sobre muitos (desses) temas em inglês. E depois, a nossa comunidade que fala português não tem acesso a muito tipo de debates, de conversas e de tópicos por falta de informação disponível em português. Essa é uma das grandes diferenças: é o facto de serem temas que são relevantes mundialmente e extremamente atuais, mas falado em português.
Daquilo que conhece em Portugal, este é o primeiro podcast virado para a comunidade imigrante, ou há outros que, embora não tenham as mesmas caraterísticas, já existem?
Eu não conheço nenhum. Não estou a dizer que não existem. De certeza que existem, mas eu particularmente não conheço. Se calhar por não ter feito muita pesquisa sobre podcast virados à comunidade africana em Portugal. Mas ainda que haja 100 ou mil não faz diferença, porque cada um de nós neste mundo tem uma coisa diferente para dar e contribuir e para dizer. E todas as mensagens são bem-vindas. Se são coisas repetitivas que se podem tirar desses programas, pode haver um, 100, mil. Quanto mais gente estiver a falar de coisas importantes melhor, porque o “João e a Maria” vão ficar com pessoas diferentes ainda que essas pessoas digam a mesma coisa. Há quem se identifique com a minha maneira de se comunicar e se identifique com a maneira de outra pessoa, a mensagem passa e ao fim e ao cabo isso é que é o mais importante. Há espaços para todos.
O projeto é de raiz ou tem colaboração com alguma entidade?
O programa é de raiz, mas que está a ser gravado na Rádio Movimento, que fica em Campo de Ourique.
Pode caraterizar a rádio?
É uma rádio independente e uma rádio de autor. Ou seja, os programas que vão para o ar na Rádio Movimento são todos de inteira responsabilidade do dono do programa, mas a rádio não tem uma direção que nos diz que não podem falar disso, não podem fazer aquilo. O autor do programa tem total controlo. Obviamente que há algumas orientações básicas que se seguem, mas o autor tem a liberdade de puder passar a sua mensagem.
Não há uma triagem dos conteúdos a ser produzidos. São da autoria e responsabilidade do produtor?
Exatamente. Só temos que informar a rádio com alguns dias de antecedência qual o tema que vamos abordar.
Qual é a periodicidade do programa?
É semanal. Ao sábado, às 17:00.
No fim do programa, a Hélia despediu-se dos ouvintes de Portugal e Angola. Os ouvintes angolanos têm acesso ao programa através de alguma rádio, ou ouvem-no pela Internet?
É através da Internet, porque, como está no mundo inteiro, qualquer um se quiser ouvir ainda que estiver na China consegue ouvir. Eu despeço especificamente Portugal e Angola porque conheço o meu público, mais ou menos, e conheço os meus seguidores. À partida, agora numa fase inicial, são eles que estiveram aí a ouvir. São as pessoas que já estavam nas minhas redes sociais. A maior parte das pessoas que me seguem nas redes sociais são pessoas de Angola. Então, era uma forma de dar as boas-vindas, mas ainda assim o meu objetivo pessoal é que o meu programa atinja os PALOP, de forma geral.
Tendo em conta que o acesso à Internet nesses países africanos de língua portuguesa é deficitário, pensa em (re)transmitir os programas nas rádios locais, ou as pessoas terão sempre acesso sempre via Internet, apesar das dificuldades de tal ordem?
Esta é a parte complexa, mas eu acho que se as pessoas em África conseguem entrar para o Facebook, WhatsApp, estar no Instagram e fazerem tudo o que fazem também conseguem ouvir o Agridoce. O acesso à Internet é limitado, mas com a pouca Internet que elas têm as pessoas escolhem onde é que querem gastar. E se escolherem gastar com o AgriDoce, eu fico muito grata. Vai ser uma coisa muito boa. Não tenho nenhum plano de levar o AgriDoce para FM de um país africano. Porque enquanto, não tenho esse plano. Estou a começar com passos pequenos. Agora o foco é fazer um bom trabalho, fazer um programa que seja realmente interessante e que tenha qualquer coisa para contribuir para as pessoas. Obviamente, se eu tivesse apoios, alguém a financiar o programa, eu levava para a estrada e, mais daqui a um tempinho, eu fazia coisas para que mais pessoas tivessem acesso. Mas agora na fase inicial o foco é dar o meu melhor para fazer um bom programa.
No início e no fim do programa disse que há tempos que já não fazia rádio. Sei que é produtora de conteúdos. Mas pode dizer-me um pouco mais quem é Hélia Adão?
Em termos profissionais, eu comecei a minha carreia em Angola como apresentadora de rádio. Como radialista era assistente de locução de três, ou quatro programas. O meu primeiro programa, tinha eu 17 anos mais ou menos, era miúda. Depois passei à televisão. Fui primeiro repórter na Rede Record. Depois apresentei um programa (na TV Zimbo), que foi o maior trabalho em termos de comunicação, o maior emprego que eu tive na minha vida: foi apresentar lá em Angola um programa que se chamava “Canta com Blue” para miúdos de 13, 14 anos, que eram adolescentes que vinham de famílias menos favorecidas. No fim de tudo, dávamos bolsas de estudo, vários brindes. Íamos às escolas em sítios mais complicados para puder beneficiar essas crianças.
Quanto tempo apresentou o programa?
Apresentei por duas temporadas. Depois casei-me e tive que sair de Angola por razões pessoais. Foi nessa altura em que deixei de fazer televisão e comunicação, de forma geral, fui para Itália, fiz a Universidade, mas sempre foi aquilo que eu gosto e sei fazer. Então, nunca seria uma coisa que eu abandonaria para sempre. Mas também não queria voltar a fazer alguma coisa que me obrigasse a repetir as palavras de uma outra pessoa, porque de lá para cá aprendi muitas coisas sobre o mundo e a forma como as coisas são realmente. E vi que a mim não adianta nada me preocupar, enquanto mulher e pessoa, em ficar a ler o guião que foi escrito por alguém que, se calhar, só pensa na parte monetária do projeto. Para mim é muito mais do que isso: eu faço a comunicação porque gosto, porque sei fazer, mas também porque sinto que tenho coisas a dizer e porque sinto que há pessoas a colher daquilo que eu ou outras pessoas têm para dizer. Há muita mensagem negativa a ser passada. E nós podemos contribuir um bocadinho no lado das mensagens positivas. Depois vim para Portugal e produzindo conteúdos de uma coisa ou outra fui me preparando correndo atrás e agora estou aqui. É mais ou menos o retorno à minha base e daqui não pretendo parar.(MM)
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