Entrevista com Fábio Alexandrelli: “Há risco de ingovernabilidade no Brasil quer com vitória de Lula ou Bolsonaro”

0
827

Manuel Matola

O ator, filósofo e escritor brasileiro Fábio Alexandrelli considera que a Independência do Brasil, que hoje se assinala, começou de “forma equivocada” e afirma que a comemoração do Bicentenário já “está a ser politizada” pelos dois candidatos que lideram as sondagens às eleições brasileiras agendadas para o dia 02 de outubro. Para o autor do livro “Máximas Para Corajosos”, Lula da Silva e Jair Bolsonaro, cujos discursos de campanha “continuam representando o passado”, vão tentar mostrar nos seus discursos para marcar a efeméride “uma grandiosidade do 07 de setembro que é fantasioso e falacioso”. Em entrevista ao jornal É@GORA, o apresentador do programa radiofónico “Além Fronteiras”, um espaço aberto de divulgação de pensamentos de figuras de Portugal e do Brasil para o mundo, adverte: “O Brasil não está a colocar o pé no chão e esfriar a cabeça para nos dizer que direção de país nós queremos”. Acompanhe a conversa:

Como é que o mundo e a diáspora brasileira podem olhar para o Brasil político atual?

Acho que estamos a olhar para o Brasil entre dois passados: de um lado temos um governante que já governou o Brasil. Eu tenho acompanhado os seus discursos, os esboços dos seus projetos políticos e não vejo nada de novo, é o mais do mesmo. E pior: ele continua representando o passado. Ou seja, Lula [da Silva] assume o governo em 2002, deixou-o em 2010 para a sua sucessora Dilma Rousseff, que foi um desastre económico e ele fica voltando para o passado. Não vejo nada de novo. Por outro lado, o Presidente atual, o senhor Jair Bolsonaro, representa o passado também [ao apelar para] o saudosismo dos militares de 1964. Não entendeu o mundo atual que vivemos no século XXI [que assenta] na pesquisa, ciência, tecnologia, na questão da globalização. Vejo que se produzem de ambas as partes muito fake news em campos morais [com narrativas do género] ´o comunismo vai assumir o poder no Brasil`, ou do tipo ´vai-se fechar igrejas se o governo do Lula assumir o poder`, o que não é uma verdade. Então, o eleitor não tem [à sua disposição] projetos políticos, vê ambos os lados a produzir discursos de ataque, ofensas. Numa eleição, a gente até entende. É normal uma alfinetada ou outra, mas se eu sou candidato – que não é o caso – e faço alfinetada ao meu adversário, logo de seguida, eu coloco [em cima da mesa] o meu projeto, a minha visão sobre para onde o país tem que remar no futuro. E [nesta campanha] eu não estou a ver isso em nenhum dos candidatos, senão ofensas de ambos os lados. E ambos os lados têm seguidores aos milhões e aí as redes sociais transformam-se em [espaços de] ódios sociais e não vejo projetos [políticos] para o Brasil onde estamos com uma dívida pública explosiva. Temos hoje 33 ou 34 milhões de pessoas na miséria. Agora reduziu um bocado a questão do desemprego mas ainda é muito alto – estamos com 9 a 10 por cento de desempregados -, o que são quase 25 milhões de pessoas desempregadas e aí você tem quase 100 milhões de brasileiros que não se alimentam direito, estão desesperançados em relação ao país. Então, a situação é muito grave.

Por que considera grave a situação?

Porque de 2014 a 2017, no governo de Dilma Rousseff e do PT (Partido dos Trabalhadores) foi a pior crise económica desde a proclamação da República em 1889. Depois veio o senhor Jair Bolsonaro que só criou confusão, discussão e não fez absolutamente nada no primeiro governo. Empurrou com a barriga e aí trocou ministros só criando crises desnecessárias. A seguir veio a pandemia. Aí teve que fechar tudo. A economia que já vinha ruim… desmontou. Moral da História: estamos tendo 200 a 300 mortes/dia por Covid-19. Quase 680 mil pessoas perderam a vida devido à doença. Não se tomou os devidos cuidados e ficou aquela dicotomia imbecil Economia ou vidas humanas. Não tinha como discutir isso: [a prioridade] é vidas humanas em qualquer lugar do mundo. E o Estado brasileiro tem que dar as condições para que as pessoas possam se sustentar enquanto a pandemia não passa. Então, houve uma série de erros, incompetência e falta de visão. Agora na campanha começa-se a entender tudo. Perdeu-se tempo discutindo coisas obsoletas. Hoje em dia eu estou como conselheiro de algumas grandes candidaturas mas eu não vou citá-las porque acho um desrespeito ao eleitor que deve fazer as suas escolhas. Não sou eu que vai fazer o proselitismo político porque sou democrata, então acho que o povo tem a liberdade de fazer as suas escolhas. Mas eu vejo o Brasil numa situação bastante complicada a partir de 2023, porque com estes dois candidatos que estão a liderar as pesquisas – Lula em primeiro lugar e Bolsonaro em segundo -, quem assumir o poder em 2023, o Brasil pode entrar num conflito gravíssimo. Isso é muito preocupante porque se uma das partes não aceitar [o resultado] o Brasil pode ficar ingovernável porque são duas posturas belicistas em certo aspeto em relação ao Estado. Bolsonaro é mais. E pior: Bolsonaro flexibilizou decretos para que as pessoas tenham acesso à armas, inclusive colecionadores podem comprar fuzis. Isso é muito preocupante. [Consequentemente, recentemente] nós tivemos um bolsonarista que invadiu uma festa familiar de um petista que estava a comemorar o seu aniversário com temas do Partido dos Trabalhadores – o que é um direito seu, pois estava no seu espaço. Esse bolsonarista saiu, voltou armado e atirou sobre outra pessoa e essa outra pessoa também estava armada e acabou [por ripostar] atirando sobre o outro. Uma coisa horrorosa. Um crime ideológico político-partidário. A violência não é melhor caminho na política. Essas duas forças políticas não dialogam, nem vão dialogar. E agora temos o 07 de setembro [Dia em que se comemoram os 200 anos da Independência do Brasil]. Vamos ver o que vai acontecer: se vai ter distúrbios, confusões, ou brigas.

Qual é a centralidade das questões da diáspora nesta campanha, olhando para o facto que aconteceu nas eleições passadas, por exemplo em Portugal, onde a diáspora votou em massa no Bolsonaro?

Não foi só a diáspora que votou em massa no Bolsonaro. Setenta por cento dos 26 estados mais distrito federal, ou seja, em 27 estados, 70% dos votos foram para Bolsonaro em 2018. Foi unânime. Todo o mundo achou que Bolsonaro era uma esperança. E eu escrevi vários textos dizendo que não era uma esperança, porque o senhor Bolsonaro foi 28 anos parlamentar e [durante este tempo] o cidadão não apresentou [sequer] dois projetos. O que ficou fazendo nestes 28 anos como deputado federal? Só recebendo salário? Por aí já se vê que a produção intelectual de projetos como parlamentar foi ridícula.

Ainda assim ganhou…

Temos que entender o seguinte: a partir de 2005, o Brasil até o impeachment da Dilma Rousseff em 2016, quase 24 horas por dia – manhã, tarde e noite – falava-se de operações da Polícia Federal, prisões e milhões de desvios. A Operação Lava Jato retornou para o Brasil de desvio seis biliões (seis mil milhões) de reais. Não é brincadeira. O povo que estava machucado, desempregado e ressentido disse: ´vou votar no capitão Bolsonaro`, um drama com contornos trágicos porque este senhor não apresentou absolutamente nada até agora, o que eu acho triste, pois eu gostaria que todos os textos que eu escrevi criticando-o estivessem errados, mas eles se confirmaram e [até agora] o senhor Bolsonaro não está preparado para assumir a Presidência do Brasil. Parece a onda meio Trump [ex-Presidente norte-americano cuja presidência ficou marcada] com fake news e mentiras. Infelizmente, como os livros no Brasil ainda estão caros, as pessoas não têm acesso e com esta onda digital as bibliotecas fecharam, então as pessoas começam a se informar neste tiroteio de fake news e acaba não dando coisa certa.

Acredita que o Bicentenário do Brasil será politizado ou que será usado para este eventual fake news?

Já está sendo usado porque vai tentar mostrar uma grandiosidade do 07 de setembro que é fantasioso e falacioso. [Na verdade] não existe 07 de setembro com 33 milhões de miseráveis. Não existe 07 de setembro com 100 milhões pessoas se alimentando mal por dia. Não existe 07 de setembro com milhões de desempegados desalentados. Não existe 07 de setembro com 680 mil morte na pandemia. Convenhamos: quando a gente fala de 07 de setembro, Dia da Independência, não tendo dinheiro, o grito do Ipiranga foi com dinheiro dos ingleses…[então a independência, no fundo não existe]. Que independência é essa que já começou devendo? Então está totalmente equivocado. [Exemplo]: Em 1824 fez-se uma constituição que pega um bocadinho da [lei fundamental] dos americanos, ingleses e dos franceses quando tínhamos 90 por cento da população brasileira que não sabia ler nem escrever. Que constituição é essa? Que liberalismo económico era esse? Que independência é essa que já começa de forma equivocada? O Brasil não está a colocar o pé no chão e esfriar a cabeça para nos dizer que direção de país nós queremos. Eu estou absolutamente convencido, mas espero estar errado: se uma destas duas forças ganharem o Brasil vai se transformar em [uma nação] ingovernável.

O que devia marcar esta campanha em termos de narrativa e prioridade para aquilo que o Brasil precisa?

[caption id="attachment_4453" align="alignleft" width="500"] FOTO: Redeemer

É o que eu tenho batido na tecla e agora depois de décadas alguns candidatos estão falando: é trabalhar a educação em tempo integral no fundamental. Nós precisamos trabalhar uma nova geração para este novo mundo criativo, tecnológico onde as mudanças são muito rápidas e efetivas no presente. Essa é a revolução que o Brasil precisa para a gente ter força de trabalho adequada e o futuro para estas pessoas, porque com o avanço da tecnologia, nomeadamente da Inteligência Artificial, vai faltar mão de obra especializada para o trabalho e ao mesmo tempo vai desempregar milhões. Acabou aquela Revolução Industrial que aconteceu na Inglaterra em que se precisava de braços e pernas para produzir. Hoje em dia o que funciona são máquinas evoluídas, como aqui [no Brasil] ou em Portugal, na França, Inglaterra e os EUA. O que você vai fazer com esses milhões de pessoas? Aonde é que as vai empregar? Então, é preciso fazer essa revolução, [até porque] já estamos atrasados. Só que político brasileiro gostam de subir no palanque e ficar fazendo imagem, tirar fotos, andar de motinha e fazer discurso enquanto a realidade os desmente, ao passo que o povo brasileiro vive num sonho que é mix entre o pesadelo, esperança e desesperança. Não enxerga a realidade. E aqueles como eu que são chatos, que pegam no pé, publicam todo o dia e fazem críticas contundente são mal vistos. São tidos como chatos. Mas muito pelo contrário: quando eu estou fazendo crítica, estou tendo esperança concreta para mostrar que esse caminho que estamos a seguir não nos vai levar a lugar nenhum. Olha por exemplo a Amazónia que está sendo dilapidada…

Há pouco falou de educação. Não há ciência sem o domínio do inglês. Acha que o Brasil devia repensar na língua que usa para poder promover a educação e, acima de tudo, criar algum espaço na ciência?

Na verdade, o que se precisa numa escola fundamental para essa criançada que entra às 8:00 da manhã e sai às 6:00 da tarde é ter inglês, língua portuguesa e laboratórios. As escolas brasileiras públicas estão sucateadas e não têm laboratórios. É preciso estimular a criançada para a ciência. E, em particular, para a ciência é preciso ter laboratórios. Essa criançada tem que perceber a complexidade das coisas. Colocar contradições, fazer reflexões. Na minha escola tinha laboratório. [Era] incipiente mas tinha. Hoje em dia não tem mais nada. Então, é preciso resgatar isso para se poder criar uma nova geração com a cabeça mais aberta. [Hoje] estamos a gerar gerações que acredita em Papai Noel: que acha que o Messias vai vir e resolver todos os problemas. Quem vai resolver os problemas do Brasil são os brasileiros, mas para isso precisa dar uma qualificação adequada ao povo brasileiro, porque se o povo não tiver isso não tem como fazer uma transformação política porque mesmo que você tenha direito ao voto, [sem qualificação adequada] acaba elegendo essas pessoas que usam da demagogia e do populismo para se elegerem. Vendem mundos e fundos e no fim não fazem nada. É muito complicado, pelo que é preciso ter uma revolução na educação fundamental. Temos que mapear as universidades que fazem a pesquisa de ponta e lá ver aquilo que está dando certo, aquilo que é bom para o Brasil em termos de riqueza e royalties e investir dinheiro aí, o que também não está sendo feito. Nós no Brasil estamos tendo cortes na educação, cultura, na pesquisa e ciência. Não tem como se fazer um país soberano sem pesquisa e ciência. As commodities [matéria-prima] que enviamos para o mundo já são do século passado. É necessário transformar essas commodities com inteligência, igual a produtos e novos serviços. A gente precisa avançar nisso, mas com estes dois candidatos que aí estão eu só vejo discussões do passado. Então não temos como avançar.

Qual é o papel da diáspora na alteração de tudo que está a descrever como sendo a discussão do passado e, sobretudo, para a necessidade de se olhar para o futuro e destacar-se a ciência?

Tem o primeiro ponto nesta pergunta. Quando a gente fala de diáspora, está a falar de alguém que saiu e foi embora do Brasil, pelo menos, por algum tempo. Foi embora porquê? Tinha emprego? Tinha oportunidade? Por que foi embora? Este é o primeiro ponto. Na verdade foi embora porque também no Brasil não está a encontrar espaço para avançar. Mas acho que o papel da diáspora é apresentar aquilo que o Primeiro Mundo tem de de melhor, de evoluído e colocar essas suas reflexões dentro do debate brasileiro porque como nós temos hoje as redes sociais que estão interconectadas com o mundo inteiro. A diáspora tem que contribuir com o debate reflexivo para que a gente possa ter uma luz no fundo do túnel. Para que possa provocar esses candidatos, que na minha visão estão a representar o passado, para que tenham um outro olhar. Estamos a falar de civilização, que as pessoas sejam elas de qualquer classe social tenham uma vida digna, uma moradia digna, uma alimentação digna mesmo que seja humilde e simples. Mas a gente não está a conseguir nem oferecer isso ao povo brasileiro: nem educação, nem emprego, salário, nem moradia de qualidade. E o que vai acontecer? Nós temos outro problema: o crime organizado está crescendo absurdamente no Brasil. Está a resgatar esses jovens colocando em suas fileiras para trabalhar. E o que pode advir daí? Opressão ou morte, o que é ruim para toda a sociedade. Então, o que estamos a falar é de que civilização brasileira nós queremos construir. E isso passa pelas pessoas, tal como passa em França, Inglaterra, Alemanha, Portugal. Essa é a grande questão. Às vezes eu vejo que o debate entre os candidatos é um chutando a canela do outro [para demonstrar] quem é o mais corrupto, quem é mais picareta, mais canalha e aí não se entende qual é o projeto político para o país para tirar a gente dessas encruzilhadas.

Manifestantes de ucranianos, em Lisboa, contra invasão russa à Ucrânia. FOTO: Jornal É@GORA ©
Por falar nisso, o mundo está neste momento numa encruzilhada económica por causa da guerra na Ucrânia. Qual é o destaque que tem sido dado pelos candidatos naquilo que pode ser o papel do Brasil na resolução de um problema, que é a fome, e acima de tudo na restauração da economia mundial?

Vê que é interessante: nenhum dos dois candidatos que estão na frente nas pesquisas se manifestou de forma contundente contra a guerra na Ucrânia. Eu fiz vários textos a dizer que esta guerra na Ucrânia é uma vergonha. O Putin não tem direito de invadir a Ucrânia que é uma nação soberana para escolher o seu destino e do seu povo de querer fazer parte da NATO ou não. É uma vergonha. O Putin é um pseudo Czarista e imperialista desmedido que fez com que agora nós tenhamos perto de nove milhões de ucranianos sem os seus lares numa diáspora também resultado de um êxodo, que é uma coisa triste de se ver. Mas você não vê nenhum dos dois candidatos com uma coragem de tocar no assunto. Acovardaram-se diante do assunto, inclusive na véspera da invasão russa na Ucrânia, o nosso Presidente vergonhosamente foi lá visitar o Putin. Quer dizer, não há uma postura de Estado brasileiro. O Brasil é um país que sempre foi contra os conflitos mundiais. A gente acha que o caminho não é por aí. Então isso é muito triste. Até agora, os governantes brasileiros não soltaram uma nota contrariando. Eles passam o pano [dizendo que] a Rússia é soberana e ficam neste papinho. Mas não: a Rússia está absolutamente errada em invadir a Ucrânia. Isso está gerando uma série de problemas na União Europeia em relação ao gás, à alimentação, aquecimento das casas, calefação, na questão das indústrias, do comércio… Então, o Putin está a utilizar isso para fazer terrorismo mundial. O Putin hoje, para mim, é o inimigo número um da Humanidade, porque não dá no século XXI para você resolver as coisas de forma belicista, pela guerra, pelos tanques, bombas e pelas armas. Não dá mais. Isso é coisa do século XX. Mas a mentalidade dele ainda está no século XX. E os nossos dois governantes que estão na frente das pesquisas estão a mostrar uma covardia ao não se manifestar contra a guerra. (MM)

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here