Entrevista/Daniela de Jesus: A arte “foi uma fuga à solidão” da pintora autodidata requisitada mundialmente

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Daniela de Jesus, pintora autodidata

Manuel Matola

A luso-cabo-verdiana Daniela de Jesus sempre usou a arte para fugir da solidão. Numa aldeia em Alcobaça onde cresceu praticamente sem muitos amigos de infância aprendeu a saber estar sozinha. Há cinco anos – já na fase adulta – foi assolada por um sentimento menos agradável a nível amoroso e para fugir a isso decidiu aproveitar um dos intervalos do almoço, em pleno horário de trabalho, para comprar uma tela e um pincel. Começou a pintar. O patrão viu a obra, gostou e incentivou-a a apostar afincadamente na arte que a autodidata nunca levou a sério. Hoje tem mais de 100 quadros, alguns espalhados pelo mundo. Vende-os todos através das redes sociais. “Sou uma artista internacional”, diz entre risos. “Já tenho quadros nos EUA, em Macau…”, tudo resultado de uma pintura que cresceu sobretudo no confinamento e que hoje é a sua principal fonte de rendimento. A artista plástica pretende usar essa ocupação para moldar o seu futuro profissional. O jornal É@GORA entrevistou-a:

A Daniela nasce em Portugal ou em Cabo Verde?

Nasci em Cabo Verde e vim cá com os meus pais quando tinha dois anos.

E como foi o teu percurso?

Inicialmente vivia na Quinta do Conde. Mas após os meus pais se separarem cresci em Alcobaça, que é no centro de Portugal. Fiquei lá até aos 13 anos onde andei na escola normal. Fiz tudo normal. Sempre gostei de pintar e das artes, de criar coisas [até porque] cresci numa aldeia onde tinha poucas crianças [pois praticamente] era eu e um rapazinho. Passei muito tempo sozinha, mas nunca fui uma pessoa deprimida. Sempre fui uma pessoa contente e feliz porque eu criava o meu mundo. Havia assim uma espécie de casulinho. A arte foi uma fuga para fugir da solidão. E até hoje é assim: passo muito tempo sozinha e a arte é a minha companhia. Vim para Lisboa com 15 ou 16 anos. Estava no secundário e comecei a trabalhar em part-time porque queria dinheiro para comprar as minhas coisas. [Apesar do gosto], nunca levei a arte a sério. Era que nem uma amiga. Eu não segui Artes. Estudei Humanidades. Há cerca de quatro ou cinco anos apeteceu-me pintar. O meu patrão gostou e incentivou-me a fazer mais pinturas.

E foi um quadro sobre o quê?

É assim: eu nunca tive muita ligação com a comunidade africana porque cresci no meio de portugueses, mas sempre tive curiosidade, tanto que sempre gostei de panos, savanas africanas e turbantes. Sempre gostei de cores mas ao meu redor não havia isso. Pesquisei na Internet e fiz uma savana. O meu patrão adorou. Foi na altura que comecei a ter mais contacto com a população negra e o crioulo de Cabo Verde. E desde aí comecei a pintar [com regularidade].

E quando falas com o teu patrão em que áreas trabalhavas?

Num restaurante no Estado da Luz. Foi algo espontâneo: sai do trabalho, fui comprar uma tela e pintei.

Estavas nervosa, irritada, havia algum motivo? É que há pouco disseste que pintavas para fugir a solidão.

As piores razões são coisas amorosas. Eu sempre pinto quando estou com problemas amorosos.

E foi assim também no início?

Sim [risos]

Então o teu patrão incentiva-te a pintar. E depois?

Depois comecei a publicar coisas no Instagram e passei a mostrar as minhas amigas pois a maior parte delas não sabia que eu pintava. Isso foi há cinco anos, altura em que comecei a pintar mais. No entanto, como tive muitas responsabilidades no trabalho – trabalhava de manha e à noite – eu não conseguia ter muito tempo para pintar. Há cerca de três anos mais pessoas começaram a vir ter comigo e a dizer que estavam entusiasmadas com o trabalho e a apoiarem e passei a pintar mais e a vender. Só há dois anos é que passei ter mais destaque e a ganhar mais dinheiro. Hoje é das pinturas que tenho mais dinheiro.

Estamos a falar de dois anos, o período dm que começa a pandemia. Há alguma relação entre o confinamento e essa avidez pela produção?

[A pandemia] começou em março, mas eu comecei a pintar mais em em dezembro. E depois comecei a fazer ilustrações de pessoas. Isso deu-me um impulso na visibilidade. O que eu faço mais são molduras ilustradas.

Tens noção de quantas obras já produziste neste período de tempo?

Mais de 100 [quadros].

E estas obras têm estado a ser espalhadas pelo país…

Pelo mundo. Sou uma artista internacional [risos]. Já tenho quadros nos EUA, em Macau…

Como é que se chega lá?
As pessoas encomendam. Alguém fez isso pelo Instagram e depois a peça foi enviada para lá. Nos EUA já tenho duas. Não, três ou quatro. Os clientes são cabo-verdianos. Quando eu comecei [a vender]os meus potenciais clientes eram mais portugueses: o meu patrão e os seus amigos. Hoje, os africanos são os que [mais] pagam a minha obra. E gosto muito disso. Principalmente mulheres. As mulheres africanas é que são as minhas melhores clientes e isso para mim tem muito valor.

Qual é o período de tempo que levas para fazer uma obra?

Se eu não parar levo dois dias.

Isso significa trabalhar 48 horas seguidas?

Não. Como eu trabalho e às vezes estou cansada, pois normalmente tenho só uma folga, então não dá para conciliar. Mas quando tenho folga dois dias [seguidos] eu consigo fazer uma obra nesses dois dias. Só que a minha vida não para. Eu tenho dois trabalhos: de manhã um, à tarde tenho outro. Saio às 10:30 da noite. Entre sair de trabalho e chegar a casa, [consigo] estar em casa [depois das 11:00 da noite, pelo que] estou em casa das 11:30 às 9:00 da manhã. E é nesse período que pinto. E nas folgas gosto de sair, estar com a minha irmã e o meu afilhado, pelo que não tenho muito tempo. Então, eu costumo pintar de madrugada e para pintar faço direta. Normalmente pinto da 01:00 até as 06:00 da manhã.

Quais são as principais mensagens que passas nas tuas telas?

O que mais gosto de fazer e mais me inspira é a mulher africana e vejo-me a mim também como fonte de inspiração porque só eu sei a minha história: tudo o que já ouvi, vivi. A fé a força que temos que ter em nós. Isso é que me inspira. É a mulher que me inspira.

O que está na mulher africana que mais destacas?

É a força. Lutar com alegria e leveza. Acho que não tem igual. Estamos mal, mas estamos lá felizes e sabemos que vai dar certo. A nossa luta é uma luta sem desânimo. Nós temos muita vida.

E quando falas de uma mudança que ocorreu de há quatro anos a esta parte, estás a falar de um projeto que vais levar a sério e a tempo integral?

Agora essa é a minha intenção. Desde o Verão passado várias coisas negativas aconteceram, mas hoje vejo-as como positivas. Houve projetos que não deram certo e que me mostraram que eu tenho que me focar na minha arte, pois é ela que me tem salvado economicamente também. Por isso que agora estou a ver se consigo sair do meu casulo, falar mais com as pessoas sobre o trabalho afim de conhecer mais pessoas que me possam ajudar a crescer.

Como está registado o teu Instagram?

Danieladejesus https://www.instagram.com/d_yeshuua/

Qual é a estratégia que pretendes adotar quando falas de levar isso a tempo integral: contratar uma manager?

Ainda não pensei nisso. É que eu fico muito isolada. Agora a ideia é dar-me a conhecer mais e abrir-me porque eu sou uma pessoa muito reservada nessa parte da arte. Eu gosto que as pessoas falem comigo mas eu não saio do meu casulo. E agora vou tentar abrir mais nessa vertente.

Com que idade começas esta aventura?

Hoje tenho 27. [Começo] aos 25 anos quando passei a praticar mais autoconhecimento, pois foi quando comecei a me dar valor e a dar valor à minha arte. Ainda estou nessa busca. Há dois anos é que eu estou a começar a acreditar em mim e no meu potencial. (MM)

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