Manuel Matola
Formou-se em Economia, mas tem dedicado muito do seu tempo profissional na busca de uma nova narrativa à História de África. Acaba de publicar “Por Exemplo”, a primeira série de livros de apoio escolar que reúne conteúdos resumidos sobre tópicos curiosos relacionados com África. Em breve vai lançar em coautoria com jovens imigrantes e não só espalhados pelo mundo uma obra sobre o ensino básico e prático das 12 principais línguas africanas, através do qual o leitor poderá aprender, por exemplo, o Swahili, a língua bantu com o maior número de falantes no mundo. O jornal É@GORA entrevistou a jornalista, apresentadora de televisão e pesquisadora Mwana Afrika, nascida no Brasil, mas de origem angolana. Confira:
Este livro tem um título sugestivo: “Exemplo”. O que a História de África tem para dar como exemplo?
A falta de narrativa sobre África desde sempre me preocupou. Desde tenra idade, assim que me apercebi que a História de África era contada de forma destorcida. Com apoio de alguns livros que fui tendo com oferta do meu pai, como por exemplo, “Movimentos Proféticos e Mágicos em África”, que deu início a essa minha odisseia, despertou muito a minha consciência. [Com esta obra] aprendi sobre a história de uma guerreira africana – Kimpa Vita – que foi morta pelos portugueses e pela religião católica portuguesa por se recusar a aceitar as suas crenças e cultura e principalmente a sua religião. Ela foi morta com o bebé ao colo. Isso marcou-me muito. Li o livro quando tinha oito ou nove anos. De lá para cá não parei. Notei que nas escolas dos países onde eu já vivi e estudei nunca se falava disso. Falava-se da Revolução Industrial, da chegada dos portugueses, das guerras mundiais, mas temas como este não se abordavam. Não falo simplesmente de Kimpa Vita, mas também de outros guerreiros de vários países africanos que não eram mencionados.
Como surge o livro?
A ideia surge [durante a exibição] do meu magazine “Mwana Afrika, oficina cultural”. Comecei a receber convites de várias escolas, especialmente do Brasil, para fazer palestras. Convites da secretaria de Estado da Educação e Cultura do Rio de Janeiro e de São Paulo para passarem os meus vídeos como material de apoio às aulas de História e não só. Então, surgiu a ideia de criar uma série de livros de apoio escolar que trouxesse todos esses temas. O livro está dividido em vários capítulos, incluindo temas sobre a Filosofia.
Acha que é preciso reposicionar a História Global de África?
É necessário. E que é a disciplina de História nas escolas está muito mais voltada para aquilo que o colono contou. Então eu quis trazer uma nova versão, daí a ideia de criar essa série de livros de apoio escolar.
África precisa de refundar a sua História para ter uma visibilidade Global?
A História é fonte de várias outras disciplinas. Também acredito muito que falta na equação desenvolvimento africano as variáveis cultura e educação. Se virmos os países superdesenvolvidos eles primam muito pela sua educação e cultura. Por isso para mim não vai existir uma revolução económica e social, tecnológica sem pegarmos na questão das origens e sem pegarmos à questão da educação. Por isso, acredito que África tem que voltar-se muito para a questão da cultura e educação para poder alavancar o desenvolvimento do continente.
Qual foi ou tem sido a reação dos historiadores dado que Mwana Afrika não é historiadora, mas sim economista?
Tenho recebido mensagens de muitos historiadores. O meu contacto com historiadores e professores de História tem sido bom. À medida que vou trabalhando aprendo constantemente com eles. Por isso que só tenho a agradecer. Quando necessito de algum dado ou tenho alguma dúvida – mesmo quando gravo algum conteúdo que não vai de encontro ao que eles apregoam – recebo uma chamada de atenção da sua parte. Tem sido [uma relação de parceria] muito boa.
Como é que se faz o enquadramento destas narrativas para um conhecimento internacional ou global, olhando por exemplo para casos como de Angola onde recentemente houve reconhecimento de uma das regiões – o M’banza-Kongo – como património mundial da Humanidade pela UNESCO?
Eu engrandeço muito a Comissão que levou M’banza-Kongo a Património da Humanidade. Mas eu também já tive a oportunidade de ir à M’banza-Kongo fazer crítica aos responsáveis que estiveram à frente deste projeto que elevou o M’banza-Kongo a património da Humanidade. É bom o local ser património da Humanidade mas não basta. Há muito que fazer lá.
Por exemplo?
Quando eu vou a M’banza-Kongo eu quero viver sua História, sua gastronomia, quero ver a arquitetura local. Eu fui à M’banza-Kongo e encontrei arquitetura chinesa. Não faz sentido. Estou numa das cidades seculares que já foi das maiores da África Ocidental. É património da Humanidade mas não há programas para a sua reestruturação tanto arquitetónica como culturalmente. Lá está: só queriam é aparecer mas não se foi a fundo da questão. Eu sou muito crítica quanto a isso. Eu fiz crítica, por exemplo, quanto ao vestuário das entidades culturais em M’banza-Kongo, que atualmente usam pano típico do Gana quando podiam usar pano típico do Congo que até é muito conhecido. Fiz críticas quanto à arquitetura, quanto as unidades hoteleiras que estão lá. Eles preocupam-se com unidades hoteleiras “chic” quando se calhar deviam fazer à base da arquitetura local. Há uma série de coisas que precisa mudar em M’banza-Kongo. Acredito que com esforço – se envolverem mais pessoas, se calhar – se consegue fazer um bom trabalho lá. Mas não sou a favor do espaço como está atualmente.
E é um contrassenso olhando para o facto de Angola ter um Presidente que é um historiador?
Pior ainda, devia-se fazer muito mais. Eu acho que em Angola olham para História, Cultura e Educação como questões não prioritárias. Atualmente o governo dá muita atenção às questões ambientais pois acredito que por ser moda falar destas questões em todo o mundo. Assim o governo já dá uma atenção privilegiada às questões do ambiente, mas as questões ligadas à cultura e História acho que são muito descartadas em Angola.
Este livro parte de uma perspetiva de História de Angola para o mundo?
Não. De História de África. É uma mistura de histórias de vários países africanos. Falo por exemplo da capulana de Moçambique. Falo das universidades mais antigas do mundo. Falo do Mansa Musa, o homem mais rico de todos os tempos, da História do Mali, Egito, Etiópia. Não primo só por Angola, mas falo de África no geral.
Qual deve ser o papel da diáspora na disseminação da História e de uma nova narrativa sobre África?
Acho que a diáspora faz muito mais do que os africanos dentro de África.
Como é que justifica isso?
É o meu ponto de vista, até porque, se formos a ver a fundo, o próprio pan-africanismo começou com a diáspora africana: eram jovens estudantes africanos que saíram de África para estudar em vários países e formarem movimentos de libertação do continente. Então, a diáspora tem feito muito, se calhar mais do que os locais.
De que forma África deve se reposicionar para poder contar a sua narrativa e ter uma História diferente face à situação que se está a viver agora na Ucrânia com a invasão russa que, no fundo, é aparente redefinição dos blocos a nível global?
Acho que o africano tem que ser o que é [autêntico]. É muito de seguir o que Ocidente faz. Acho que é muito de seguir a bala e não deve. Vimos há pouco tempo com a pandemia. Se a memória não me falha quando houve a questão de nova variante [do coronavírus] na África do Sul em que a Europa se fechou aos países africanos e logo os países de fronteira com Africa do Sul, como Angola inclusive, também fecharam as suas fronteiras. Não há política de coesão, de união entre os países africanos. Estamos muito virados para o Ocidente. O que o Ocidente faz, o que o Ocidente falou, o que o Ocidente acredita é o que nós seguimos. É muito política de segue bala. Eu não sou muito a favor destas políticas. Qualquer revolução económica e social, tecnológica vai depender da aposta de África na Educação para o desenvolvimento e posicionamento a nível global.
Num ano em que Angola realiza eleições gerais com a participação da diáspora, há necessidade de os partidos políticos, sobretudo os da oposição, esclarecerem qual vai ser a sua posição em relação à disciplina História?
Quando falo de Cultura e Educação não falo da disciplina de História. Falo num todo. Temos, tanto a nível da educação, o ensino da Matemática, onde temos fórmulas que devíamos estar a desenvolver. No meu livro eu falo de uma ciência que é muito desconhecida: o Mandombe, que envolve a arquitetura e um sistema de escrita próprias. Por isso quando falo da Educação refiro-me a um conjunto de elementos que devem ser mudados em África tanto a nível de educação como da cultura. Não é simplesmente de mudança enquanto cadeira escolar. Falo de um conjunto de elementos que podem ser trabalhados para o desenvolvimento de África.
Relativamente ao livro que está escrito em português e me está a falar da Educação cujos conteúdos vêm maioritariamente em inglês. Há aqui alguma pretensão em produzir uma obra destas em inglês?
O livro já está traduzido para francês, inglês e alemão.
Qual é o modelo de distribuição que está a ser adotado?
Numa primeira fase estamos a vender no site https://mwanafrika.com/. Numa segunda fase, vamos fazer o programa de distribuição gratuita ou a um valor simbólico nas escolas nas 18 províncias de Angola. Vamos começar por Angola, para testar, e depois passar para os outros países de língua portuguesa. E depois com a impressão dos livros em inglês, francês e inglês distribuir em outros locais. O que apelo é conseguir apoio para concretizar o sonho.
E nisso os governos têm que intervir?
Sim. São livros de apoio escolar. No Brasil já se usa muito livros de apoio escolar. Além dos livros convencionais, há muito material de apoio. E acho que os países africanos podem pegar isso enquanto aprendemos a escrever com o sistema de escrita convencional, por exemplo, podemos aprender os outros sistemas de escrita de África que são vários.
Fala aqui da série de livros. O que está programado para os próximos tempos?
O próximo e que já está quase terminado é um livro sobre o ensino básico e prático das 12 principais línguas africanas. Através deste livro as pessoas poderão aprender o Swahili, o Ronga, o Lingala num único livro.
Esse livro é feito só por si ou há mais pessoas envolvidas?
Já não é feito só por mim. Envolve pessoas das mais variadas línguas. Na verdade, somos uma instituição de jovens espalhados pelo mundo.
Quantos são dos países de língua portuguesa?
Em Angola temos uns 10 especialistas. Na Namíbia temos dois. Na África do Sul temos uma especialista. Temos várias pessoas envolvidas. (MM)