Manuel Matola
Aos 15 anos, o músico português Samuel Correia lançou, em plena época da pandemia da Covid-19, o seu primeiro álbum que produziu sozinho no seu quarto, onde durante anos viveu deprimido até a altura em que decidiu abraçar a arte com que sempre sonhou: a música, que aprende numa escola de ensino artístico.
Até chegar a essa nova fase da vida, o jovem artista testemunhou episódios marcantes de bullying que o levaram a desenvolver uma depressão reativa e bipolar.
Mas “a música foi o que me salvou”, garante Samuel Correia em entrevista ao jornal É@GORA, onde fala do álbum – um EP (Extended Play) que conta com três temas inéditos para além dos singles “Ninguém (eu)”, “Perdido” e “24 Horas”, que somam milhares de visualizações e downloads – e da depressão. Uma conversa que decorreu também por ocasião do Dia Mundial de Saúde Mental que hoje se assinala.
Em Portugal, as crianças imigrantes de primeira geração têm um risco acrescido de problemas emocionais e comportamentais e são mais vulneráveis a perturbações de saúde mental, segundo conclui um estudo feito pelo Instituto de Medicina e Higiene Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa com crianças estrangeiras e portuguesas da Amadora. Confira a entrevista:
Samuel Correia é músico, mas também um cidadão que tem alguma ligação com a questão da saúde mental. Quer contar o que aconteceu até chegar ao mundo da música?
Comecei bastante novo a ter situações de bullying quando estava no quinto ano. Devido a essas situações por que passava na escola vim a desenvolver uma depressão reativa e bipolar, que me levou a passar por uma fase um bocadinho mais complicada e mais tarde foi a música que me salvou.
Quais foram os episódios mais marcantes que depois o levam à música?
A primeira coisa que mais marca é sempre o bullying e a forma como não fui aceite por algumas pessoas e que gostava e que eram importantes para mim nesse passado. Isso criou em mim um sentimento de insuficiência perante os outros e mais tarde vim passar por essa depressão e tive dias muito complicados e menos bons.
Quem mensagem se passa a alguém que esteja a viver essa situação como a que Samuel passou?
O segredo é confiar em nós e acreditarmos que um dia as coisas vão correr melhor. Dedicarmo-nos a algumas coisas que gostamos de fazer e que nos satisfaçam enquanto pessoas singulares, uma espécie de lista do eu das coisas que me fazem feliz. Por exemplo, eu gosto de cantar, tocar piano, tocar guitarra, gosto de produzir música. Eu dedico-me nessas coisas. Outra pessoa talvez goste de dançar, representar, dedica-se mais à representação, à literatura, etc. Acima de tudo devemos nos focar em coisas que nos fazem bem e encontrarmos as pessoas certas. E acima de tudo, começarmos a conhecer-nos a nós próprios, isso é fundamental.
Esta é uma doença que toda a gente pode ter, em qualquer fase da vida. Mas, quando atinge os jovens, qual é que acha que é o papel dos pais?
É o papel da presença. Estar lá. De apoiar e de ajudar a outra pessoa, neste caso o jovem, a encontrar meios e as pessoas certas para cuidarem dele para que na sua possam seguir o melhor dos caminhos. Acho que mais importante é o papel do apoio.
Daquilo que eventualmente terá lido durante essa fase, o que mais tem sido destacado naquilo que é o comportamento ou reação dos pais em relação aos filhos que estão nessa situação?
Na minha situação foi mesmo reação de ajuda no sentido em que me ajudaram e encontrar a ajuda certa. Nunca houve um papel – perdoe-me a expressão – mais controlador. Neste sentido, penso que eles perceberam e, na generalidade, as pessoas percebem que isso não é saudável e que o saudável é também dar espaço que a pessoa precisa para se recompor. Acho que é mesmo o de apoiar e respeitar, não tratar a pessoa quase como uma coitadinha, mas sim de estar presente lá e, acima de tudo, dar apoio. É o mais importante.
Relativamente às pessoas que praticam esses atos de abuso, o que o Samuel acha que falta nelas para não compreenderem que podem estar a contribuir para uma situação grave na vida da outra pessoa?
Eu acredito e tento sempre acreditar que essas pessoas não cometem esse abuso por maldade e que fazem isso porque, na maneira de entender delas, é o melhor a fazer. Acho que as pessoas precisam é de um pouquinho mais de formação e de conhecimentos no sentido da doença e compreender também o lugar da outra pessoa.
Mas essa formação seria a chamada educação de casa ou a formal?
Diria que a educação começa em casa. Acho que isso nos ajuda a formar enquanto pessoas. Isso é um dado que uma pessoa deve ter: o saber entender o próximo para o poder ajudar.
Em que nível de escolaridade o Samuel está neste momento?
Há aqui uma discussão na sociedade à volta da cadeira de Cidadania. Se é que está a acompanhar essa discussão, até que ponto essa cadeira pode ser útil para aquilo que estamos aqui a falar, a questão da saúde mental?
Eu acho que essa cadeira, no geral, devia ser facultativa. E acho que a questão de educar as outras pessoas para a saúde mental deve partir essencialmente de casa e haver uma contextualização geral em termos escolares mas do próprio ambiente de escola, e não haver uma disciplina quase que dedicada a isso.
Porquê?
Acho que isso pode fazer as pessoas banalizarem a situação, até porque esse tipo de assuntos abordados na escola são extremamente romantizados e acabam – na minha opinião – por desvalorizar um bocadinho o que é a doença e o que é o sofrimento que as pessoas passam quando estão a atravessar uma depressão.
E o papel dos pais têm que ser de quem entenda e tem sensibilidade para isso. Acha que os país têm esse entendimento e sensibilidade relativamente a essa doença?
É assim: os meus pais têm. Conheço pais de outras pessoas que têm, mas também conheço alguns que não compreendem.
Como se pode sair dessa situação estando em famílias que não compreendem como lidar com a doença?
Eu acho que é sermos nós próprios a procurar ajuda, ou falar com um amigo que consiga ajudar, ou nas escolas. As escolas têm psicólogos, ou até mesmo recorrer aos serviço público que muitas vezes apoiam ou arranjam formas de apoiar os jovens nesse sentido.
Há muito apoio nesse sentido, da parte das instituições públicas?
Não há muito apoio, mas há se calhar o começo. Na ausência de alguma coisa, o mais pequeno que seja já ajuda. Às vezes basta dar um clique. Às vezes nem precisa ir ao psicólogo. Por exemplo, basta um conselho que um amigo próximo nos dá, de alguém em quem nós confiamos…
O Samuel é filho único?
Sim.
Isso terá algum peso nessa situação, o de não partilha destes momentos, de situações os abusos da parte dos colegas como o que Samuel viveu?
O facto de ser filho único tem sempre dois lados, é um binómio: um irmão ou uma irmã acaba ser uma espécie de companheiro e amigo com quem podemos falar, mas também o facto de sermos filhos únicos faz com que tenhamos mais atenção da parte da família. Portanto, acaba por estar aí no meio termo. Então, não sei se é um fator determinante.
Dizia a pouco que as pessoas têm que tentar descobrir o seu gosto pela literatura, música e outras artes. E o Samuel descobre a música. Houve algum clique para daí passar a viver uma vida diferente em termos artísticos?
Eu já gostava de música desde pequenino, essa é uma paixão que foi crescendo comigo ao longo do tempo, até que comecei a tirar aulas de canto, piano. Ter começado a dar concertos ajudou-me a encontrar-me enquanto pessoa. E a minha formação também foi fundamental. Entrar para uma escola de artes mudou a 100 por cento a forma como eu penso e como sou. De facto, poder escrever através de letras de partituras ajuda a encontrar-me comigo mesmo, ajuda a expressar-me de uma forma muito mais poética e ao mesmo tempo eu consegui ser mais sincero sobre aquilo que eu sinto e penso. Daí também esse meu álbum “Reticências” ser uma longa duração completamente autobiográfico, tendo em conta as situações que eu vivi e marcaram a minha vida.
Neste momento está a fazer o lançamento de seis músicas, de um total de quantas que pretendia lançar se não houvesse a Covid-19?
Eu tinha 12 músicas escolhidas, o dobro para trabalhar para um álbum. No entanto, optei por essas seis músicas. Tenho, se calhar, duas das seis músicas mais fortes que eu já escrevi. As outras quatro são um bocadinho mais romantizadas, falam um bocadinho sobre o amor e as relações que não correram bem na verdade.
São situações pessoais ou no geral?
Pessoais que eu vivi. Foram mal para o meu lado (risos).
O lançamento do álbum já foi no dia 02 de outubro…
Sim.
Como foi a reação do público?
Foi uma sensação de total realização para mim. Senti-me que estava quase como se estivesse a nascer um filho. É um projeto que me deu muito gosto por ter sido todo ele feito no meu quarto e feito por mim, desde a composição das músicas, gravação das vozes, instrumentos, todo o trabalho de produção, mistura e masterização, divulgação… Só contei mesmo com apoio da minha equipa de videoclipes e da minha agente Isa (Cardoso).
Referia-me ao feedback do público…
Foi muito bom. Fui muito acarinhado. Claro que há aquelas pessoas que gostam de fazer aqueles comentários menos instruídos e assim um bocadinho dispensáveis, mas isso acontece sempre. Há pessoas que gostam e as que não gostam de nós. E se calhar as experiências que tive no passado ajudaram-me também a saber lidar com isso, mas no geral e na grande maior o feedback está a ser incrível. O videoclipe que lancei na sexta-feira (02/10, um dia antes da apresentação do álbum) já passou as 2700 visualizações neste curto espaço de tempo e as pessoas estão a mandar imensas mensagens e estão a gostar muito do trabalho. Também tive um concerto de apresentação no sábado e tivemos a lotação máxima do sitio onde atuamos dada à situação atual da Covid-19.
Qual foi o ritmo que apostou?
A sonoridade do EP é mais pop, balada, pop intimista, um conceito muito mais acústico. Dentro do registo pop, é um registo muito mais acústico.
Qual é a forma que se está a usar para promover o álbum nesta fase da pandemia?
Estou a fazer uma divulgação acima de tudo digital, até porque não houve orçamento para fazer uma edição física pelo menos para já. Mas estou a fazer uma divulgação digital publicando mini vídeos, videoclipes e estou a apostar muito no frente a frente. Estou super ansioso por ter mais concertos e por me apresentar ao vivo. É por isso que eu faço música, para ter o contacto com as pessoas, para (atuar) em concertos. É isso que me move. É mesmo minha paixão.
Há uma faixa etária que o Samuel está a pensar olhar para ela como público-alvo?
Acho que a música que faço e os temas que abordo são um bocadinho transversais a todas as gerações, apesar de, na minha opinião, achar que a música se adequa melhor a um público entre os 13 anos aos 40/50, por ser um público, se calhar, mais presente sobre estas temáticas da saúde mental e relações interpessoais e do amor, que, para mim, não correu tão bem (risos).
Nesta promoção ainda que de forma digital, admite a hipótese de falar sobre estes temas em workshop, ou o foco é só na promoção das músicas?
Também seria uma experiência nova para mim e tenho a certeza que isso também ajudaria outras pessoas. Seria um privilégio enorme.
Há alguma coisa marcada para o dia 10 de outubro para fazer coincidir a data e os temas que são abordados no álbum com a efeméride?
Não. Tenho que perguntar à minha agente, mas à partida não. (MM)