Manuel Matola
É imigrante e um cidadão cosmopolita que, desde cedo, se tornou num profissional do setor criativo enquanto artista respeitado na área musical, na moda e como produtor audiovisual. Depois de ter lançado “Love Infinity” em dezembro de 2020, Coréon Dú explica ao Jornal É @GORA o processo de produção e promoção do seu novo álbum, traça o perfil do público que o acompanha, fala da situação do setor cultural e como tem sido a vivência cosmopolita numa era tramada pela pandemia da Covid-19. A influência da sua posição social em Angola no mundo artístico também foi um tema abordado na entrevista que se segue com o músico angolano. Confira:
Coréon Dú lançou um novo álbum “Love Infinity”. Como é que este trabalho surgiu em época de pandemia?
Na verdade, a produção do meu álbum começou antes da pandemia, depois de adiar várias vezes devido à situação pandémica lancei no final de 2020, mas o tema do meu álbum tem muito a ver [com a situação da pandemia]. O meu álbum é sobre o amor e por causa da Covid-19 e dos vários confinamentos toda a gente teve de reaprender o que é amar, nos vários sentidos da palavra, em tempos de pandemia. Por isso eu acho que foi uma coincidência que acabou por acontecer.
Como tem sido a receção deste álbum?
Felizmente tem sido positiva. Já lancei alguns singles do álbum como “Love Infinity” que também é o título do álbum, “Pele Café” e também o “Nuestro Secreto” que tem tido uma boa aceitação nas plataformas digitais. É um crescimento diferente porque numa altura normal teria tido a oportunidade de apresentar os novos temas nos meus concertos, numa forma mais direta ao público. Mas não havendo essa possibilidade e dentro das limitações de viver virtualmente, não me posso queixar.
A forma como o álbum foi produzido e como está a promovê-lo é reflexo daquilo que aprendemos com esta pandemia, uma forma diferente de estar e de ser?
É uma forma diferente para mim porque sempre fui um artista de proximidade. Por exemplo, a forma como comecei a cantar não foi em estúdio. Sou um artista que começou a cantar no coro da igreja e em apresentações da escola, mas também em bares quando era mais novo. Mesmo a nível profissional sempre tive uma carreira mais ao vivo do que no estúdio. Fazia vários concertos, muitos deles de cariz intimista e em Angola participava em alguns festivais, e também já participei em alguns festivais de jazz a nível internacional. A minha carreira sempre foi virada para o contacto físico. O álbum gravado era apenas um cartão de visita porque a magia continuava ao vivo, e hoje em dia esta parte foi retirada. Para os artistas como eu que têm uma carreira mais ao vivo do que no mundo gravado, a pandemia está a obrigar a desenvolver outras valências e a aprender formas de poder contactar com o público que estava habituado a ver-me e a ouvir a música ao vivo. Não é só gravou, está lançado e está a tocar no Spotify ou na rádio. Como a minha carreira nunca foi muito assim, é ‘sei que ele lançou, mas na próxima semana vai estar no sítio tal…’. Não tendo isto, (confesso), está a ser um desafio, mas também está a obrigar-me a aprender novas formas de manter a proximidade com o público.
O que acha que mudou e vai mudar para sempre ou manter-se durante mais tempo, durante o período da pandemia?
O que eu aprendi é que muitas das vezes quando o mundo dá um salto, já não volta para trás. Eu sou um Millennial “cota” (Geração Y) porque nasci no século passado mas estou mais perto da outra fase, e passei por várias fases em que o mundo mudou. Isto faz-me lembrar uma fase no ensino médio quando aconteceu o 11 de setembro e a forma de viajar e comunicar mudaram. A comunicação social, em particular, mudou muito a forma de abordar o mundo. Agora com a Covid-19 estamos a sofrer um fenómeno semelhante, mas por outra razão. Não uma razão humana, mas sim uma razão da natureza que ninguém pode controlar e tivemos de ajustar tudo. A forma como consumimos, como nos relacionamos com familiares e amigos. O grande convívio com a família toda reunida à moda africana já não é possível [risos]. Temos de usar tecnologias para comunicar. Temos de aceitar que de hoje em diante, isto fará parte do novo normal. Todo o artista, gostando ou não, terá de habituar-se no futuro quando der um concerto não será apenas para aquelas pessoas, poderão estar pessoas a assistir em streaming. Outra coisa é a presença nas redes sociais. Eu conheço alguns artistas que não precisavam de redes sociais para terem o público, hoje em dia já não há o luxo de ser misterioso e de só aparecer quando tem um produto. Hoje em dia tem de haver um contacto quase diário com o público porque a pandemia assim nos habituou. Acho que essas nuances vão se manter todas, claro que se vão transformar quando as coisas retomarem, especialmente eventos musicais e culturais. Mas agora farão sempre parte do nosso dia-a-dia.
A produção da música e do disco em si irá mudar ou irá permanecer?
Eu acho que a forma como a música é produzida hoje em dia com a Covid-19 não mudou muito porque, nos últimos 20 anos, nem todos os álbuns foram produzidos de forma tradicional. Nos anos 90, as pessoas juntavam-se num estúdio, Instrumentistas, vocalistas, etc. Desde os anos 2000, o guitarrista pode estar no Japão, o vocalista pode estar em Angola, o pianista pode estar nos Estados Unidos e eles conseguem fazer uma música porque gravam e enviam as partes para cada um. Isto já faz partes das nossas vidas há quase 20 anos.
Hoje em dia faz sentido produzir um disco (CD)?
Como se diz, esta é uma questão de ‘Primeiro Mundo’. Em países onde já há penetração e disponibilidade de internet e dados com um valor reduzido e de forma ampla, a pergunta poderá não fazer sentido, mas não podemos esquecer que esta não é a realidade em todos os países. Apesar de ter nascido em Angola, cresci entre a Europa e os EUA. Nunca me esqueci de onde vim. Eu cresci mais no sul dos EUA e a Internet não era muito boa e (hoje) ainda há partes da Europa onde não há adsl [tecnologia de comunicação de dados]. Se eu falasse em streaming nestes sítios, estaria a ser insensível àquele consumidor porque é uma coisa que não lhes é acessível. Enquanto artista no século XXI mas que cresce no século XX tenho de me lembrar disso. Tal como em sítios que estão tecnologicamente mais abertos e há essa possibilidade para eles pode não fazer sentido [a produção de um disco], mas àquele consumidor que pode estar no interior de algum país europeu, dos EUA, ou num país de África ou ainda da América Latina, o disco é a única forma de ter contacto com o meu trabalho. Acho que às vezes esquecemo-nos um pouco e, como alguns já superaram essa fase ou nasceram noutra fase, esquecem-se que ainda há pessoas com essas limitações.
Isso pressupõe uma melhor colaboração entre esses dois mundos ao nível artístico?
Como sou um artista cuja carreira começou com a proximidade – os meus concertos tanto eram na cidade como no interior de Angola e vários sítios -, tenho de me preocupar com isto e questionar: como é que a minha música vai chegar à pessoa que só usa streaming, mas também a pessoas que ainda usam CD? Eu tenho de preocupar em não me esquecer que eu estou onde estou hoje graças a essas pessoas. É importante ter esta noção e tentar o melhor possível para conseguir comunicar com todos de forma equitativa. Não é fácil, mas é um desafio que todo o artista deve lembrar, em particular, os de países em desenvolvimento. Temos muitos consumidores que gostam, apoiam e investem no nosso trabalho que ainda não têm muitos acessos tecnológicos. Isso faz parte da realidade e temos de saber conviver com ela e sermos respeitosos, ao invés de presumirmos que uns são válidos e os outros não. Temos de respeitar o público que respeita o nosso trabalho.
Olhando para o tipo de música que o Coréon Dú faz e para o período que estamos a viver, o álbum “Love Infinity” tem propensão para atingir um público do Norte ou do Sul global?
Esse conceito para mim não existe [risos]. Porque é que eu digo isto? Quando comecei a fazer música eu não sabia quem ia ser o meu público, e quando o meu trabalho musical começou a ter contacto com o mercado e com as pessoas, surpreendeu muita gente em relação ao meu consumidor. Falando do sítio onde passei a maior parte da minha vida adulta, em Luanda, e depois quando comecei a ter fãs na América Latina, grande parte de quem segue a minha música não tem o perfil que as pessoas acham. Quando ouvem o meu trabalho pensam que o meu público é um, mas é o outro.
Qual é o seu público-alvo?
Em Angola, eu tinha mais convites e contratos para fazer atuações na periferia de Luanda e no interior de Angola do que propriamente nos grandes festivais para o público dito “erudito”. Era muito raro ter eventos para esse público. Mas quem ouve a minha obra pensa que o consumidor ideal seria um público com um certo nível económico ou com mais posição internacional porque viaja mais. Mas a verdade – o que achei interessante – é que na maior parte das ocasiões é ao contrário. A música tem disso. Muitas pessoas ainda pensam que se pode controlar quem vai gostar de uma coisa ou não. Numa ocasião estava a fazer um set de música ligeira e fui convidado para um evento de jovens com música mais urbana e eu era o único artista que não se “enquadrava”, e até me perguntava: Porque é que me convidaram para estar cá?. Eles disseram que apreciavam o meu trabalho, se calhar, não é igual ao que os outros estão a fazer, mas é algo que o público se revê e com que se identifica.
Terá isso a ver com a perceção da sua origem e, provavelmente, a sua posição social em Angola ser próxima desse público “erudito”?
Aí está. Na verdade, esse público “erudito” não era quem mais apostava no meu trabalho.
Mas terá sido essa sua perceção?
Não. A perceção tinha mais a ver com o tipo de música que eu fazia. As pessoas achavam que eu fazia um tipo de música mais sofisticada, e esquecem-se que a sofisticação não depende do que as pessoas têm no bolso. Depende do gosto pessoal, depende do quão aventureira é a mente da pessoa. Uma pessoa que tem a mente aberta e diz “Eu quero ouvir música, se a música for boa é boa se não for não me interessa”, então a pessoa tem um gosto sofisticado. Há pessoas que pensam que ter um gosto sofisticado é gostar de um certo tipo de música que, de acordo com certos cânones e padrões, é considerada erudita [risos]. A parte que eu sempre achei muito curiosa é a parte em que essas pessoas ficam chocadas quando vão a um concerto meu e vêem que há uma diversidade muito grande de consumidores. Vão encontrar a pessoa que é mais erudita, como um jovem de 15 anos que ouve música mais comercial durante 90% do tempo. Uma coisa não anula a outra. Há mais estereótipos e pressupostos, mas isso tem a ver mais com as pessoas pensarem que eu tenho um certo estatuto económico que, se calhar, também não é a realidade. E é a mesma coisa com a música. O meu primeiro álbum pode ser considerado como jazz e as pessoas diziam: “este álbum vai tocar num círculo mais pequeno e com pessoas mais velhas”. Esse álbum foi lançado em 2010 e até hoje tenho adolescentes a ouvi-lo.
Como é que pensa vender e promover o “Love Infinity” olhando para a incerteza de retoma ao novo normal?
Isto é um desafio e estamos todos a aprender. A única coisa que tenho a dizer sobre isso é: não existe uma resposta. Temos de estar abertos para aprender e lidar com a situação tal como vai acontecendo. Estamos a viver um momento de grande incerteza. É a primeira vez no mundo inteiro que estamos focados no mesmo problema. Muitas das vezes as pessoas acabam por estar separadas porque estão a lidar com os problemas do país ou da região, e agora está a ser muito interessante. Agora com a prevenção da Covid-19 estamos um pouco mais empáticos para aprendermos. No setor cultural temos sido o parente pobre e acho um pouco injusto porque em tempos normais somos esquecidos porque supostamente somos os excêntricos e os lunáticos e as pessoas até reclamam dizendo que não somos necessários. Mas, quando começou o confinamento, todo o mundo queria que dêssemos um alento a todos. Quando se começa em regresso também somos os últimos contemplados. Por isso que digo, infelizmente, trabalhar no setor criativo, seja ele qual for, é um pouco ingrato nesse aspeto: toda a gente quer o que temos para oferecer, mas não dão o devido valor ao que nós fazemos.
Mas o que é que falta para haver essa mudança de perceção e posição?
Isso vai ter de perguntar ao mundo inteiro, parece que é um problema global.
Há alguma responsabilidade dos atores políticos?
A responsabilidade tem de vir do cidadão, porque ao fim do dia quem consome é o cidadão. Quando começamos a falar e a ter ‘responsabilidade institucional’, para mim, é quando a pessoa sabe que é responsável por alguma coisa e quer retirar de si a responsabilidade e passar para outro. Isto é muito o (princípio segundo o qual) ‘alguém devia pensar’ ou ‘alguém devia fazer’. Grande parte das pessoas de hoje em dia para se livrarem do stress por causa do confinamento ouviam música, liam livros, viam séries mas nem sempre querem remunerar quem cria [risos].
Há falta de união dos artistas e produtores?
Não. Os artistas continuam a trabalhar. O problema está na mente de quem consome. Deve começar a sentir o impacto na vida e valorizar. Exemplo: quando falamos em recuperação, muitos esquecem-se do ramo criativo e cultural. É o facto de, normalmente, mesmo sem pandemia, toda a gente pensar que são coisas fúteis e não necessárias. [Mas] durante a pandemia provou-se que não é fútil e que é necessária. Mesmo assim, quando se pensa em voltar ao normal, [a cultura] é sempre a última coisa a ser contemplada. Então, isto não é um problema sobre um grupo de pessoas. Infelizmente, não é um problema que os artistas e os criativos devam resolver. É uma coisa que parece ser comum. É societal e é mais do que uma sociedade.
É outra pandemia?
Isso é, sim. Por isso que eu acho que a nós os artistas cabe-nos fazer arte e arranjar formas de continuar a fazê-la. À sociedade cabe decidir ao que dá ou não valor. Eu nunca fiz um concerto nas minhas redes sociais, não vou oferecer a minha obra gratuitamente. Eu sou um profissional do setor criativo, trabalho com música, na moda e sou produtor audiovisual. Eu entendo o paradigma “os artistas querem criar e muitos estão a partilhar coisas”, mas a forma de interagir com o meu público é conversar com eles para verem que estamos a passar pelo mesmo momento. Infelizmente criou-se o paradigma dos profissionais criativos oferecerem o que é nosso, especialmente nos países onde se fala português. Esquecem-se que quem cria também são seres humanos com responsabilidades [risos]. As pessoas que gostam de música é que têm de decidir a quem é que dão valor.
Daqui a algum tempo vai para Luanda, qual é o próximo passo a nível musical?
Estamos muito à mercê das regras dos estados de emergência e restrições de viagem, e há muita incerteza. Sempre gostei de falar do presente. Posso falar do que estou a fazer agora, mas enquanto artista posso ter uma ideia daqui a 5 minutos, começar a criar e ser completamente diferente do que tenho agora [risos]. Gosto de focar-me no que estou a fazer no presente, neste momento o que tenho feito tem sido encontrar a melhor forma possível de fazer esta obra chegar ao público. Os artistas têm um grande espírito de colaboração. Como estamos todos à procura de soluções tenho feito debates espontâneos para falar com o público para falar sobre o que está a acontecer no ramo criativo dos nossos países. Grande parte dos meus seguidores são de países de língua portuguesa, apesar de também ter em outras paragens, mas tem sido interessante porque as reflexões que saiem dali têm-me surpreendido pela positiva especialmente porque a maioria dos meus seguidores têm menos de 25 anos. (MM)