“Fénix”, o relato autobiográfico da psicóloga Gisela Van-Dunann sobre o mundo depressivo e traumático

1
1490
Gisela Van-Dunann, psicóloga clínica. FOTO: Neusa Sousa ©

Manuel Matola

A psicóloga clínica luso-angolana e guineense Gisela Van-Dunann teve o primeiro contacto na vida com um terapeuta enquanto paciente que viveu traumas na infância. Gostou do tratamento a que foi submetida e mais tarde decidiu estudar Psicologia para ajudar os outros. Hoje conta em livro o trajeto pessoal a partir da prática diária que concilia com a sua perspetiva de fé e da ciência no tratamento da depressão e de outros problemas depressivos. “O livro dá-nos uma visão muito precisa do funcionamento cerebral das pessoas em vários contextos”, resume a autora do “Fénix- O Impossível não existe”, em entrevista ao jornal É@GORA, onde explica os caminhos que percorre pelas 198 páginas de uma obra autobiográfica baseada na experiência colhida em anos de trabalho com os vários pacientes com traumas.

Gisela Van-Dunann vai lançar no sábado o livro “Fénix – O Impossível não existe”. Quais são as três mensagens principais deste livro?
O próprio título denuncia um bocadinho. A principal é que não existe impossível em termos da capacidade humana de recuperar daquilo que, normalmente, não se recupera. Isto porque como estudante de Psicologia e “cientista” já vi muitos cenários. Há muito conteúdo no livro que, na nossa área, dizem que é impossível de recuperar. O livro mostra que esse impossível não existe. A segunda mensagem que considero relevante é a resposta à pergunta: ‘Será que é possível unir a ciência e a fé no tratamento da depressão e de outros problemas psicológicos, ou de traumas?’. E o livro responde: se ‘não’ e o porquê de não dar, se ‘sim’ e como se faz essa união. O terceiro ponto é explicar quais as alterações que acontecem a nível fisiológico nas pessoas que passam por certos traumas, como o abuso sexual e maus tratos, de forma a entender o comportamento destas pessoas no dia-a-dia. O porquê da dificuldade delas saírem destas situações a nível emocional, e até mesmo explicar o motivo destas pessoas serem reincidentes em situações traumáticas. O livro dá-nos uma visão muito precisa do funcionamento cerebral das pessoas em vários contextos.

A obra cobre algum período de tempo, resulta de um estudo académico que depois transpôs para o livro?
Essa questão é interessante porque o livro é autobiográfico. Fiz o seguinte: como já fui paciente quando era mais nova, tive de fazer terapia em algumas situações. Gostei tanto daquilo que foi feito comigo que quis aprender a fazer o mesmo pelos outros. Eu pude ter uma visão interna dos traumas e uma externa do ponto de vista da investigação como psicóloga clínica. Isso permite-me ter uma visão mais abrangente desse cenário.

Qual é o perfil das pessoas que está a retratar neste livro?
O livro fala principalmente da minha trajetória em vários desses traumas. Quando falo de algumas pesquisas é do ponto de vista geral. Tenho estudos feitos por um psiquiatra e por um psicoterapeuta muito bom, o Dr. Bessel van der Kolk que fez o livro ‘Body Keeps The Score’ que estuda de forma aprofundada os dados dos traumas fisiologicamente. Muito daquilo que explico no livro tem por base centenas de milhares de pessoas. Eu estou incluída nos estudos como paciente, mas também como terapeuta porque faço um apanhado geral.

Olhando para o que está a acontecer hoje, com toda a Humanidade neste momento de incerteza, há similaridades com o que tem estado a observar e aquilo que terá ocorrido em termos de problemas depressivos?
Sim, sem dúvida. Infelizmente a mudança de mentalidades leva muito tempo nas culturas e na sociedade, em geral. E muito daquilo que vivi ainda se observa atualmente. As pessoas têm dificuldade em encarar as consequências de certas vivências, como por exemplo os maus tratos na infância. O estilo de parentalidade tradicional africana inclui infelizmente muita violência. E eu vivi isso em primeira-mão. Eu atendo muitas pessoas que vieram nesse contexto e que ficaram com sequelas, e a família não reconhece como tal. Dizem que é, simplesmente, a educação. Mas isso marca a pessoa e muda o funcionamento de dentro para fora.

Do ponto de vista de epistemologias, há, por um lado, uma perspetiva que diz que as pessoas que vêm de países africanos tendem a interpretar a educação de uma forma. Mas a interpretação da Gisela é com base naquilo que é a perspetiva académica ocidental, no sentido de norte global. Há necessidade de criar uma narrativa ou uma forma de ver o problema do ponto de vista do sul global, países pobres, e também do ponto de vista dos países ocidentais?
Acho que é uma coisa que acontece a nível mundial, no entanto, pela observação que eu tenho enquanto terapeuta, diria que 8/9 em cada 10 pacientes que apresentam essa problemática apresentam essa origem. Daí ser uma coisa que vejo mais normalizada na nossa cultura porque – não me intendam mal – mas isto acontece em todo o mundo. Eu tenho estudos que falam de parentalidades super agressivas, por exemplo nos EUA, que foi o país onde o Dr. Bessel fez mais pesquisas. No entanto, eu tenho observado essa tendência um bocadinho mais acentuada na cultura africana e penso que uma das possibilidades seja o resquício das gerações que vieram depois da escravatura. Que viram os avós e bisavós a serem subjugados através da violência, então a agressão física passou a ser muito normalizada. Mas nem sempre foi assim. África não foi sempre um lugar de escravos. A civilização começou lá. Nós tínhamos reis, rainhas e tudo mais. As últimas gerações que assistiram à época da escravatura foram fortemente influenciadas por aquilo a que estiveram expostas. Isso é um facto.

O processo migratório não terá ajudado a mudar essa perspetiva?
Muito pouco. Tanto que as pessoas que estão na Europa quando falam de educação muitos dizem ‘aqui em África não tem nada, vocês é que estão na terra dos brancos e começam a achar que tudo é trauma. Eu apanhei e não aconteceu nada de mal comigo por causa disso. Sou uma pessoa funcional’ A agressão física é uma coisa que é muito normalizada. Não só a agressão física como também o abuso sexual. Também falo muito sobre isso no livro e é um dos temas centrais porque o tenho visto, mesmo estando na Europa, é uma verdadeira pandemia sexual. Isso também tem raízes históricas.

É possível, do ponto de vista geográfico, ao nível de Portugal e de Lisboa, indicar os sítios onde mais ocorrem esse tipo de práticas?
O que posso dizer é que 9 em cada 10 das mulheres que atendo foram abusadas sexualmente na infância e muitas na idade adulta. É uma percentagem muito elevada.

O que é que está a falhar nisto tudo para que haja esta recorrência de atos?
A primeira coisa é o facto de ser abafado. Eu tenho caso de mulheres que disseram ‘Olha, aconteceu quando tinha x anos, mas não ninguém acreditou em mim’. Existe uma preocupação muito grande com o escândalo que vai acontecer e o que as pessoas vão pensar. Muitas das vítimas têm de calar as dores para não incomodar. Outra coisa que piora o cenário é o estilo de parentalidade. Quando os pais educam os filhos através da violência, o que acontece no cérebro da pessoa é que ela atinge níveis químicos de tolerância à dor superiores. Todo o estímulo de dor que acontece no corpo é tido como normal. A criança entende que o corpo dela é um local onde sempre vão acontecer situações dolorosas, que vai ser sempre punida por alguma coisa. A criança passa-se a ver como um culpado perpétuo de tudo o que venha a acontecer, principalmente quando os pais espancam e dizem ‘Estou a fazer isto para o teu bem’. Eu tenho um caso de uma miúda que a mãe bateu-lhe tanto que chegou ao ponto de queimar as mãos dela. Como é que queimar um filho pode ser edificante em termos de educação? Quando a pessoa entende o corpo como um local onde sempre vai acontecer dor, se é abusada ela acredita que merece passar por aquilo porque já está habituada a sentir dor. E tem outra componente que é muito importante esclarecer. O abuso sexual confunde a mente da vítima porque como o nosso corpo reage a estímulos ela pode sentir excitação sexual mesmo sem consentir o ato. A vítima entende que merece o que está a acontecer com ela porque o corpo está a gostar. Então como é que se vai queixar de algo que o corpo gostou? Exemplo, ao mudar a fralda, um bebé de meses pode ter uma ereção, mas ele não sabe o que é aquilo, mas é uma reação natural do corpo.

Como é que acha que a autoridades têm estado a lidar com esta questão, olhando para a eventualidade de terem conhecimento desta realidade na comunidade migrante?
A comunidade migrante acaba por ser mais prejudicada porque não é prioridade em lado nenhum. Eu digo isto por causa de exemplos de pessoas que foram denunciar agressões e não foram levadas a sério. Existe uma discriminação evidente às vítimas de violência e de estupro. A forma como os próprios agentes da autoridade tratam as vítimas retraumatiza a pessoa. O caso não é levado a sério, não há qualquer tipo de proteção, as penas são super leves, então os agressores sentem-se à vontade tanto para atormentar a vítima como para repetir o crime, além de que pela complexidade do crime, o constrangimento que a vítima sente por ter passado por aquilo e depois ter de expor na polícia é muito complicado. O que vejo é que não há qualquer tipo de preparação por parte destes agentes para lidar com este tipo de cenários, sobretudo, pela forma como fazem as perguntas. Muitas vezes a vítima sai da denúncia tão humilhada que desiste da queixa. Tem de haver uma preparação e sensibilização para lidar com este tipo de cenários. Ou mesmo falando de violência, as vítimas têm muita dificuldade em sair desses relacionamentos, e quando ganham coragem para ir denunciar muitas vezes não são levadas a sério porque passado algum tempo voltam ao mesmo contexto. E neste livro eu explico o porquê disso. O que é que acontece na mente de uma pessoa para ela voltar para uma situação onde está constantemente a ser brutalizada.

Como é que olha para essa questão diante da realidade da Covid-19 que estamos a viver, em que as pessoas tiveram de ficar confinadas e continuam a viver com os perpetradores destes atos?
Tem de haver mais instituições a darem apoio, mas apoio palpável às vítimas. Terem um lugar onde podem procurar abrigo, aonde lhes seja disponibilizado alguns recursos para se orientarem enquanto não arranjam um sítio mais permanente. Principalmente proteção da vítima porque assim que a pessoa resolve denunciar passa ser alvo de ameaças e perseguição. Infelizmente muitas destas pessoas acabam por ser assassinadas. Algumas vítimas permanecem porque não têm onde estar e porque temem pela própria vida. Cabe ao Governo disponibilizar uma assistência adequada a estas pessoas. Mas também há muitos homens envolvidos nestas situações e que precisam de ajuda.

Falou há pouco da necessidade de haver instituições que pudessem fazer a cobertura disso. Com base na experiência que tem, acha que as organizações pro-imigrantes em Portugal têm alguma capacidade e estrutura que possibilite trabalhar com estas pessoas de modo a reduzir esses casos?
Pelo conhecimento que eu tenho, infelizmente não. O que tenho visto são instituições que ajudam os imigrantes a tratar da documentação, existem instituições onde se fala de discriminação. No caso de instituições específicas para imigrantes que ajudam a proteger as vítimas de violência ou de outros crimes não tenho conhecimento de nenhuma organização que esteja a fazer esse trabalho em particular, e seria interessante criarmos esses mecanismos.

Para caso dos homens vítimas, é por parte dos pais ou de outros elementos da família?
Da experiência que tenho, tem mais haver com as parceiras. Quando um homem é já adulto a capacidade de defesa é diferente em caso de serem os pais a agredir. Mas, quando estão num relacionamento, a dinâmica muda, pois têm dificuldade de sair muitas vezes também por terem vindo de uma educação aonde eles igualmente eram vítimas de violência, ou assistiram as mães.

A segunda parte do título do livro estabelece uma relação entre a ciência e a fé. Numa altura em que há registo de menos pessoas a aderirem à religião, há possibilidade de estabelecer-se esta ligação de forma evidente por causa desta relutância, ou eventualmente o abandono das próprias igrejas?
Eu sou cristã evangélica, então a doutrina que eu sigo tem uma visão diferente daquilo que é a religiosidade e daquilo que é a ligação com Deus, que é uma vida com fé, uma vida de espiritualidade. No meu caso foi necessário unir os dois conceitos porque a fé e a ciência não são necessariamente opostas, não têm de ser adversárias. Um pode complementar a outra. Muito daquilo que se fala na Bíblia Sagrada (evangélica, que é protestante), não conseguiu ser refutada pela ciência, pelo contrário, a ciência tem vindo a comprovar cada vez mais aquilo que já está escrito na palavra de Deus. O caminho para casar os dois conceitos foi algo muito interessante de observar.

De que forma é que a sua convicção pode remeter as pessoas que trabalham com a Gisela a olhar para isto como a via mais viável?
Os estudos mostram que as pessoas que professam uma fé têm uma taxa de recuperação psicológica bem superior às pessoas que não têm. A ciência também mostra que no cérebro humano existe um órgão que remete mais para a nossa ligação ao sobrenatural. É natural para o ser humano acreditar em algo. Mas também há quem não acredite, 90% das pessoas que atendo não acreditam, mas mesmo assim conseguem recuperar-se dos traumas. Eu não espiritualizo tudo, até porque acho errado e perigoso. Não podemos dizer que uma pessoa tem de orar até a depressão aparecer porque a depressão é uma doença com componente fisiológica. Há que saber separar as coisas e encontrar o bom senso e o equilíbrio. Há pessoas que conseguem beneficiar quando juntam os dois fatores. Há formas de chegar à recuperação sem misturarmos nada com a fé, mas também há formas de chegar a esse sucesso terapêutico juntando a fé e a ciência. A questão é como fazê-lo. Claro que cada pessoa tem a sua experiência pessoal. Eu não posso impor a minha crença a outra pessoa. O que posso fazer é, de acordo com aquilo que vivi, houve um caminho que me levou a esse destino. Ao lerem o livro vão entender porque aconteceu assim. Quem não crê também vai entender ao ler o livro e como encontrar essa cura.

Quanto tempo levou a escrever este livro?
Essa pergunta é interessante porque comecei a escrever este livro há alguns anos e depois parei [risos]. Achei que ainda não era o momento de concluir. Comecei há pelo menos sete anos.

Foi antes ou depois da formação académica?
Antes da formação académica já tinha o esboço do livro. Entretanto acabei o curso, fiz o mestrado, comecei a trabalhar e de vez em quando ia colocando algumas vivências no livro. O livro só ficou concluindo depois de entender que tinha fechado um ciclo e que já tinha vencido muitas das minhas guerras internas e que já tinha autoridade para falar sobre essas questões. Acredito que temos autoridade sobre aquilo que nós vencemos. E houve muita coisa que precisou de ficar madura antes de sentir-me livre para passar esses ensinamentos adiante.

Como é que o livro está estruturado?
O livro tem 198 páginas, mas tirando índice e agradecimentos fica com menos 4 páginas. Eu começo por falar sobre a minha infância e as coisas que passei. Explico os bastidores da alma, um dos capítulo em que explico o que leva os nossos pais a terem esse tipo de postura. Aquilo que mostra um pouco de quem eles são. Eu não queria transmitir uma visão muito negativa, eu quis explicar as idiossincrasias de cada ser humano, as particularidades de cada ser humano no momento da sua ação e observá-lo de fora. Nós somos quem somos e existem as coisas que fazemos. Será que dá para separar as duas coisas? Se sim, como. Se não, porquê.

Vai lançar este livro numa altura em que o país tende em voltar à normalidade. O livro vai ser físico ou digital?
O livro está impresso. Estive a sondar e quase todas as pessoas com quem falei disseram que querem pegar no livro. E ainda bem que assim é porque nesse aspeto sou um bocadinho old school. Também vou disponibilizar uma opção digital para quem tiver essa preferência. Agora o livro está em formato físico. Daqui a cerca de um mês vou disponibilizar digitalmente. (MM)

1 COMENTÁRIO

  1. Gostei muito da sua entrevista e concordo quando refere o peso da educação violenta dos pais nos filhos. Por viverem um modelo semelhante não aceitam e consciencializam das consequências que teve esse modelo de educação nas suas vida. Há uma negação e sublimação constante que é transportado para onde forem dificultando a mudança. “Não existe o impossível” como referes no teu livro “Fenix”

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here