Gattuso: “O meu álbum é uma escola, cada música é uma disciplina”

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Gattuso, músico angolano, vencedor de "Disco de Ouro"

Em plena época pandémica, Gattuso escolheu uma data para relançar o Kuduro a nível global: 12 de fevereiro, dia em que apresentou publicamente o álbum “Vencedor” com 21 faixas, num ato colaborativo que reúne dezena de artistas renomados, incluindo alguns que saíram de estilos diferenciados para apostar num dos mais conhecidos ritmos criado em Angola. Com o título da obra a antever o sucesso do projeto, o último álbum do músico angolano atingiu o topo. No passado fim-de-semana, Gattuso conquistou “Disco de Ouro”. Em entrevista ao Jornal É@GORA, o cantor angolano expressou o orgulho e a felicidade pelo feito alcançado e descreveu “Vencedor” numa referência ao ensino: “O meu álbum é uma escola, cada música é uma disciplina”.

O que é que este objetivo representa exatamente?

É com bastante emoção que eu recebo este disco. Significa realmente uma vitória, como diz o álbum “Vencedor”. É uma vitória do preconceito, do estereotipo, da discriminação que o estilo kuduro sofreu durante muito tempo. Então o sentimento é justamente este: o de vitória. Justamente fazendo uma obra com responsabilidade, focado na intervenção
social, na educação, na motivação e a cultivar o amor ao próximo. Coisas que sinto que o meu público-alvo, o infantojuvenil e também o de classe baixa, sentia falta. Então é uma semente também. Esta obra para mim é uma vitória muito grande. Estou muito orgulhoso e muito feliz.

É uma oportunidade para relançar o nome de Angola no seu todo para o mundo?

Sim, sobretudo do estilo kuduro. Acredito que as pessoas vão sentir mais à vontade em consumir, sem filtros, o estilo kuduro. E eu também vou levar [comigo] essa responsabilidade não só em Angola, mas para todos os kuduristas em toda a parte do mundo para termos cuidado em termos dos conteúdos que colocámos na música, nas danças e também na própria sonoridade. Temos aquela preocupação de masterizar as músicas que é para ser agradável ao consumo. Não ser superior nem inferior a nenhum estilo que seja semba, kizomba, zouk ou funana. Então é justamente este sentido de responsabilidade que levo para a Europa, para o Mundo e para África. Sinto que as portas estão abertas. Então, mais uma vez, é uma vitória do estilo kuduro.

O kuduro já teve momentos altos e volta agora ao momento alto com o seu disco de ouro?

Sim, acredito que o povo do kuduro vai encarar e vai receber com bastante satisfação e saber que o mundo está aberto. E que o kuduro não morreu. O kuduro não morreu, mas tudo depende de nós. Temos que ter responsabilidade
naquilo que fazemos. Nós aceitamos a diferença, o mundo aceita a diferença, mas devemos ter noção quando fazemos algo descartável [pois] é para ser consumido em certos lugares e as portas fecham-se para outros. E então é essa a mensagem. Hoje sou eu que estou aqui a representar, mas é pelo conceito, uma obra que tem 21 músicas, [com] participações de respeito: Euclides da Lomba, Ivan Alekxei que saíram de outro estilo para cantar kuduro e depois os nossos grandes reis Nagrelha dos Lambas, Fodando, Jessica Putgo, Samara Panamera, Madruga Yoyo e por ali vai. E os produtores Vado Poster, DJ Habias, e não só. É muita qualidade junta. O disco foi masterizado cá em Portugal pelo Jorge Cervantes, [que] também dispensa apresentações. Isso é só para ilustrar a responsabilidade que é uma obra como esta. É fruto realmente de trabalho grande e toda aquela componente que tens da união, amor que essa obra traz. Então é um orgulho muito grande e parabenizar também a Bússola Rítmica que teve este olho clínico de poder apostar também na promoção da mesma.

Esta união é aquilo que se esperava durante o período da Covid-19: que as pessoas se unissem, trabalhassem juntas e a seguir criassem um mundo novo?

Com certeza. Eu estou formatado só para soluções e a pandemia veio justamente para dar uma boa aula de solidariedade, fraternidade, amor ao próximo. Infelizmente na minha terra, em Angola, sinto que ainda não aprendemos a 100%, mas vamos continuar a fazer o bem. Eu tenho uma música que é “Fazer o bem/faz bem” e que virou um slogan muito grande. Não importa quem é/vamos continuar a praticar o bem. Eu digo também que “só amor é que convém” porque é o caminho. Custa, é difícil, leva mais tempo, requer muita paciência este caminho mais longo, mas vamos insistir. Acredito que só o amor, só a união é que faz mesmo o mundo prevalecer. E que convém para o mundo. Acredito que ainda somos a minoria, vivemos num mundo muito materialista, mas vamos tentar ficar focados no legado e nesse amor ao próximo. Acredito que vamos ter um mundo melhor não só para o kuduro, mas de maneira geral.

Mas quando diz que o kuduro não morreu e olha para aquilo que é o resultado que está aqui na sua mão, o disco, é sinal de que há que expandir o kuduro a partir dessas colaborações a nível internacional?

Exatamente. Nós estamos aqui justamente também para tentar promover o nosso trabalho e abrir as portas para os nossos colegas do estilo kuduro, que fazem muito bem e com muita qualidade. O que é importante é realmente ter essa responsabilidade. Somos artistas em palco e temos de saber e conhecer as regras da convivência. Ter certos valores que nós precisamos resgatar para poder ter uma componente geral. Mas eu acredito que este disco, e com o controlo da pandemia vamos poder ter festivais e atividades. E o kuduro é uma música muito ritmada, com uma métrica muito forte e dançante. Depois dessa pandemia adequa-se perfeitamente e é uma música que se dança de forma individual. Respeita-se um metro de distância à vontade [risos] então está a jogar a nosso favor e vamos esperar e ver se se abrem mais portas para podermos trazer esta música, com a nossa dança, com a nossa vestimenta e com o nosso ritmo e com muita responsabilidade de fazer bem porque nós sabemos fazer.

Esta abertura (o desconfinamento) é uma abertura também para a presença do Gattuso em festivais e espetáculos a nível mundial?

Sim. Eu participei no Etimba Fest que realmente foi visto por mais de quarenta milhões de telespetadores e o Gattuso esteve presente com o disco “Vencedor” e com as pessoas que fazem parte do disco, e foi muito bom. Agora pensamos da mesma maneira. O meu grande sonho é realmente ter um festival fora porque o disco não é do Gattuso, é um disco com muitas participações de peso e de luxo do melhor que existe a nível mundial. Então é um produto bom que é para ser usado, abusado e explorado em qualquer parte do mundo. Vamos continuar a trabalhar com humildade. E pedir apoio sempre às pessoas que realmente querem animação e festa, mas tudo com responsabilidade, sem filtro, que a nossa música possa ser ouvida desde o mais novo até ao mais velhote porque tem conteúdos que motivam, alegram e nada que possa ferir os valores de
qualquer nação.

Identificando-se como um artista para soluções, o que propunha para o relançamento, não só do kuduro, mas da cultura angolana e africana, se quisermos entender isso no seu todo, nesta nova fase em que estamos a entrar da pandemia a nível mundial?

A nível micro eu diria: continuarmos a fazer o que nós fazemos com muita responsabilidade e temos que realmente investir em tudo. Desde as músicas em si, como também dos videoclipes e ter a maior divulgação em tudo o que é rádio, televisão, blogs, etc. E olhando para uma maneira mais macro, é nas administrações e distritos. Agora é pensar seriamente em investir nesse produto que é uma arma muito boa para podermos eliminar tudo aquilo que sofremos e que afetou a saúde mental de muita gente. E nada melhor que um bom kuduro para servir de aspirina para aqueles que estão afetados emocionalmente. Para a organização desses eventos é necessário algum investimento. Aí o apoio de algumas associações seria necessário para os músicos poderem deslocar-se e ter algum apoio em termos de logística. Tirando isso acho que o cenário está montado e vamos trabalhar na união.

Daqui para a frente o que esperamos do Gattuso a nível pessoal e artístico?

Gattuso e Daniel Mendes
Daqui para frente vai ser continuar. O disco tem 21 músicas infelizmente no ano passado conseguimos promover 3, ou 4 no máximo dos máximos. Então viver desse disco por mais algum tempo, trabalhar em algumas participações porque eu sou do estilo que acredito que a vitória dos outros também é uma vitória minha e a vitória do mundo. Vamos continuar a colaborar com outras pessoas, vamos continuar a estar abertos e também promover o que eu gosto de promover: palestras infantojuvenis, educativas e solidárias, em que damos material escolar, alimentação e temos um palestrante a mostrar a sua história de vida. E também trazer um pouco de música infantil que desapareceu do mercado. Eu tenho a minha filha com um EP dela já preparado com sete músicas e estilos diferentes, não só apenas o kuduro. Músicas com conteúdos infantis, dança infantil, para um público infantil. Tem muita falta no mundo, então vou fazer um pouco de tudo. Continuar a trabalhar na obra, continuar a trabalhar nos vídeos, andar ‘à caça’ dos shows, tentar expandir a música a um nível mais internacional, sempre com muita responsabilidade. Estar aberto a participações e apoiar as outras pessoas.

Já repetiu a palavra responsabilidade e a necessidade de olhar para o conteúdo de forma diferente. O que é que o preocupa?

Preocupa-me bastante na verdade. Não sou ninguém, nem nada para julgar e acredito que cada um é livre de fazer o que quer e a música é para todos os espaços. Há músicas que servem para a educar, para motivar, há músicas que estão aí só para as pessoas dançarem, músicas mais descartáveis. Eu penso muito no legado, eu penso muito no público que ouve, penso muito nas crianças porque o futuro do país, o futuro do mundo está nas crianças. E elas ouvem de tudo, então eu tenho esta preocupação. Nas minhas músicas, eu tento olhar para o vocabulário, para a ortografia com a professora de português a controlar até a parte sujeito e do predicado [risos], complemento para garantir que estamos a passar uma música com o conteúdo certo, falar de maneira correta e esta é a minha preocupação e o legado que eu quero deixar. O meu bebé ouve a minha música. Ele dança, curte, aprende e eu digo sempre, o meu álbum é uma escola, cada música é uma disciplina. Um pouco de matemática, geografia, língua portuguesa, educação moral e cívica, etc. Cada música é uma aula, e eu faço questão de trabalhar com a produtora Bússola Rítmica para ver se tiramos o disco em formato físico para as pessoas tomarem o tempo de ler e perceberem. Porque às vezes consumimos o coro e
saltávamos o conteúdo. Ser bom cidadão é preparar a própria komba. Então ser pessoa do bem, hoje, parece que é ser errado. Então os valores estão invertidos e nós com a nossa musicalidade estamos a tentar colocar as coisas no lugar certo.

E esta iniciativa está aqui a anunciar a necessidade de ter isto em caderno?

Tudo está em andamento, estamos em execução. Para mim ideias valem 1% e ações valem 99%. Tudo o que estou a dizer está em ação, está a acontecer. As palestras existem há 2 anos, o álbum da minha filha vai acontecer, o disco do Gattuso existe.

Referia-me relativamente aos conteúdos numa espécie de livrinho.

Na verdade, estamos a produtora está aqui a conversar com outras distribuidoras e eu faço muita questão. É um legado muito grande, mas estamos a ver as distribuidoras porque no final do dia tudo tem um custo e queremos fazer bem. Acredito que, provavelmente, no princípio 2022 possamos ter este este disco em formato físico. Um caderninho com as músicas lá porque é assim, fazer o bem faz bem. Tem lá a luta contra a discriminação, luta contra o racismo. A história da música “Vencedor” é sobre alguém que perdeu a mãe aos 14 anos, nunca viu o pai e em vez de ir para as drogas decidiu ir para a escola. São essas histórias que as pessoas precisam de conhecer.

O lançamento de um disco hoje em dia, com todas as plataformas digitais, não é um contrassenso?

A minha opinião é que nós devemos abraçar as novas tecnologias, tudo o que existe em termos de redes sociais e de plataformas digitais, porque é o mundo real e o atual. Temos que estar atentos e conhecer os mercados porque em Angola existe um mercado gigantesco. 30 milhões de habitantes que têm dificuldades com a internet. O pessoal que segue a minha música, 80% não faz o download nas plataformas digitais. Eles vão procurar o disco em formato físico. Então eu tenho que olhar para todas as vertentes. Para um público internacional, focar-me realmente nas plataformas, e ter essa responsabilidade de ter o disco na pen drive para distribuição. O equilíbrio é que prevalece. Nem 100% digital nem eliminar o que já existia antigamente. Sou daqueles jovens que gosta de preservar um pouco isso. Tento preservar os valores antigos, mas estando sempre atento ao que existe de novo.

O Gattuso diz que quer ser lembrado de uma forma diferente. Como é que as pessoas o vêem?

As pessoas já me viram como uma pessoa maluca, uma pessoa que se formou, capacitou-se, fala 5/6 línguas, trabalhou numa empresa durante 17 anos. Não fazia sentido nenhum ir para o kuduro. Então essa pessoa perdeu completamente o sentido da vida, mas sempre tive foco. O meu objetivo sempre foi claro, ninguém é inferior a ninguém. Ninguém é superior a ninguém. As pessoas que fazem o estilo kuduro são pessoas normais e eu sou um deles. Estou lá para ajudar a eliminar esse estereotipo e não só. Tenho este dever patriota de educar, e eu senti que a música é uma arma muito importante para eliminar a delinquência, o analfabetismo, a prostituição e muito mais. Então eu acredito que depois de 3/4 anos, hoje as pessoas vêem-me como um visionário. Alguém que tem muito amor. Acredito que as amizades, o respeito, o carinho que ganhei já são prémios muito grandes. Depois vêm esses prémios mais físicos que de alguma maneira fortalece. Eu acredito que venha alguém para dar amor ao próximo, alguém que faz pelo mundo. O resto não sei. É uma pergunta bastante forte [risos].

O que representa o seu trabalho nas mãos de Cervantes?

O Cervantes é craque e depois ele coloca a música na sonoridade certa. Aquela sonoridade que, nós em Angola dizemos que está baixo. A primeira vez que eu ouvi a música que masterizou senti que estava baixo, mas explicou-me a técnica, o impacto e para rádio e para a comunicação e não só. E passei a passar a mensagem porque os músicos do meu estilo pensavam que o kuduro não se masteriza assim. O Cervantes é mesmo guitarrista, ele é muito bom, é uma pessoa forte. Ele ajudou-me bastante eu tenho que agradecer. Vinte e uma músicas masterizadas não é assim tão fácil [risos] e ele teve o cuidado, não só de masterizar, mas também de colocar naquele formato de disco, título do álbum, numeração. Tenho de agradece ao Cervantes, à Bussola Rítmica, ao designer gráfico, a toda a equipa de trabalho e à minha família. O kuduro é bastante duro. Temos de visitar os guetos todos para promover os trabalhos e dai vem o título do álbum “Vencedor”.

Com o título deste álbum, o Gattuso sente-se realizado?

Eu já me sentia realizado. Sai da cidade de onde faço parte, da classe média. Sair da classe média, perder amigos e depois ganhar amigos da classe baixa, ser respeitado e aceite foi isso que fez com que desse o título de “Vencedor” ao álbum. Durante 1 ano e meio tive o cuidado de trabalhar no conteúdo, na métrica, no flow, nas batidas e na
escolha dos músicos. Tive muita fé neste álbum. Não tencionava fazer outros álbuns. Queria fazer uma obra com muita cautela e que servisse para várias gerações. Estou feliz. Em nome do estilo kuduro, estou ‘proibido’ de falar que este disco é meu “porque este disco é do kuduro”. É da família kuduro. É uma grande responsabilidade e tenho de
ter cuidado. Tenho de falar em nome do kuduro. Depois da pandemia isto é um remédio santo para a saúde mental das pessoas. Vai fazer bem, garanto [risos]. (MM)

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