Manuel Matola
Aos 26 anos, o cabo-verdiano Helton Sanches tornou-se num dos mais notáveis estrangeiros da África lusófona no Lisbon Project, uma iniciativa que reúne jovens voluntários que ajudam imigrantes e refugiados que não falam o português a enfrentar os dias difíceis em Portugal devido à pandemia de Covid-19.
Com uma experiência de voluntariado internacional por quatro países, Helton Sanches divide o seu dia – agora em regime de teletrabalho – entre o emprego formal numa instituição financeira ligada à área de Rating e os telefonemas que faz, diariamente em inglês, para 10 imigrantes que acompanhará durante quatro meses.
A ideia é auxiliá-los nas necessidades básicas decorrentes da terríveis dificuldades que muitos desses estrangeiros estão a enfrentar desde que se estabeleceram em Lisboa e arredores para construir suas vidas, entretanto, encalhadas por causa do surto pandémico.
“Para alguns de nós não parece – por exemplo, eu estou a trabalhar remotamente e pelo menos por agora o meu vencimento não foi afetado -, mas há muito gente que não tem emprego, já não tinha o mínimo e agora a situação ficou pior”, diz o voluntário sobre os imigrantes com quem trabalha, alguns dos quais “têm filhos”, sendo, por isso, “os primeiros a sofrer com tudo isso”, o que “é um bocado preocupante”.
“Se calhar, os impactos vão ser mais fortes daqui para frente neles também. Ou seja, quando isso acabar eles vão ser os últimos a recuperar”, afirma o membro do Lisbon Project, a associação que presta apoio psicológico e não só a imigrantes e refugiados oriundos de vários países, maioritariamente, da Ásia e África.
Neste momento, Helton Sanches serve voluntariamente em Lisboa, mas “há alguns beneficiários que estão fora”, nomeadamente, na Margem Sul do Tejo, onde residem, “mas estão na mesma situação”.
“Tenho um número específico de beneficiários e eles estão espalhados, por exemplo, em Almada. Mas a esses não podemos oferecer muito suporte por causa da distância, mas podemos manter contacto e ir percebendo a sua situação e dando apoio psicológico”, afirma.
O Lisboa Project fez um levantamento de fundo para ajudar com alimentação essa comunidade estrangeira durante os quatro meses, a contar da data em que os casos da Covid-19 começaram a atingir níveis alarmantes em Portugal, onde há atualmente 1.330 mortes registadas e 30.788 casos confirmados.
Quando instando pelo jornal É@GORA a descrever o seu percurso académico, que mudou assim que começou a frequentar o 9º ano em Portugal, Helton Sanches responde quase que telegraficamente.
“Tenho 26 anos. Nasci em Cabo Verde. Tenho uma licenciatura na área de Gestão e um mestrado em Finanças. Neste momento trabalho na área financeira. Comecei o meu percurso na área da Banca. Agora estou na área de Rating”, diz.
Até o 8º ano, o jovem cabo-verdiano viveu em Cabo Verde, mas, de seguida, mudou-se para Lisboa e, “desde então”, abraçou com afinco os estudos que o permitiram, mais tarde, fazer, por seis meses, o programa Erasmus na capital francesa, Paris.
“E aí comecei a ter uma experiência fora do país: durante e mais no final da licenciatura” em Gestão, acrescenta Helton Sanches, que destaca a sua participação “em alguns projetos cá e fora”.
“O meu mestre dá aulas nessa organização, então há uma ligação forte entre as duas instituições. E foi a partir daí que entrei em contacto com eles para ajudar os miúdos, mas também fora da capoeira, que pratico há anos, quando tinha por aí 16/17 anos”, lembra Helton, apontando o ano do arranque dessa atividade: 2017.
“Inicialmente comecei a trabalhar com crianças”, aliás, “desde 2011 estou em contacto com crianças e com a comunidade de capoeira, porque eu faço capoeira com miúdos de bairros necessitados”, afirma.
E deste cruzamento entre a prática artística e a necessidade de apoio a quem de resto precisava de auxílio, arrancou verdadeiramente a primeira experiência de um jovem voluntário com os miúdos do bairro de Apelação.
“Há lá uns miúdos da associação Pastoral dos Ciganos que os ajudei. O meu trabalho consistia mais em ir buscá-los à escola, brincar mais com eles, eventualmente, ajudá-los a fazerem os trabalhos de casa. Mas isso não fiz tanto, pois foi mais numa perspetiva mais lúdica, fazer atividades com eles, acompanhamento, aulas de percussão, porque eu faço capoeira e eu também ajudava com alimentos”, conta.
Hoje, o seu trabalho ganhou uma nova dinâmica e Helton Saches já tem experiência internacional contabilizando quatro países nos quais fez o voluntariado. Apesar de ser quase uma mão cheia, pretende mais.
“O meu objetivo é fazer mais. Não fiz assim tantos, já participei em alguns: faço voluntariado cá em Lisboa, fiz na Bélgica, em Cabo Verde e no Togo”, assinala.
E seguindo uma ordem cronológica, destaca como foi o contacto que teve com jovens e adolescentes de bairros problemáticos numa cidade como Bruxelas, onde são traçadas políticas públicas pro-imigração pela maior organização comunitária na Europa e replicadas em todos os 28 estados-membros pertencentes àquela instituição supranacional.
“Depois disso fui para Bruxelas mais ou menos na mesma dinâmica: levávamos os miúdos para brincar, criávamos as dinâmicas dos dias e as atividades para os miúdos: fazíamos atividades lúdicas, criativas, pinturas, atividades plásticas e depois visitas para conhecer a cidade, passeios aos museus, a piscina, praia e parques”, relata.
E foi em Bruxelas, no centro político da Europa, que teve o primeiro choque nessa sua experiência de voluntário, quando em conversa com filhos de imigrantes residentes num bairro social daquela cidade belga ficou a saber do sonho inusitado de “um miúdo de 8/9 anos, muito ativo”, a quem Helton questionou sobre o que desejava ser no futuro.
“Quero ser ladrão de um banco”, foi a resposta dada pelo rapaz, que procurava demonstrar a ambição de um filho que queria prosseguir com uma carreira do pai, que estava preso por assalto a banco, lamenta Helton Sanches sobre a vida deste e outros menores que “nem sequer imaginam que existem certas profissões na vida” além daquela.
“Eram miúdos imigrantes ou filhos de imigrantes que, tal como cá em Lisboa, acabam por ser um pouco marginalizados estando dentro da cidade num ambiente muito peculiar em que é mais difícil encontrar as mesmas oportunidades que as pessoas que não estejam naqueles bairros”, considera.
Tempos depois, Helton Sanches rumou para o continente africano, onde usou os seus conhecimentos em Gestão e Finanças para prestar consultoria, a título de voluntário, a grupos de empreendedores e de pequenos comerciantes que têm as suas lojas e os seus negócios nas zonas pobres do Togo.
“Depois fui para o Togo, onde puxava mais a parte do empreendedorismo social: tentar desenvolver as minhas competências nessa área, aplicar os conhecimentos que eu venho adquirindo a nível profissional e académico para tentar ver se cria um impacto positivo na sociedade. Então estava à procura de um projeto ligado ao empreendedorismo social”, frisa.
E lá conseguiu dar o seu contributo ao trabalhar com empreendedores e pequenos comerciantes que têm as suas lojas os seus negócios nas zonas pobres daquele país da África Ocidental situado no Golfo da Guiné.
“O objetivo era perceber quais eram as dificuldades destes empreendedores, o que fazem e o que eventualmente poderíamos aconselhar, tendo em conta a nossa experiência académico e profissional mais formal”, explica.
Mas esse grupo era de uma faixa etária diferente da dos miúdos com quem trabalhou em Lisboa e dos filhos de imigrantes que encontrou em Bruxelas.
“Alguns eram jovens e outros com idade um pouco mais avançada, e eles têm uma noção do empreendedorismo mais empírico assente na realidade de África, em que algumas pessoas sabem fazer uma coisa, vendem e criam animais, e, às vezes, vendem e criam uma loja. No final preparamos um relatório em grupo com aconselhamentos sobre como melhorar os negócios”, diz.
E no espaço de um ano, desde que iniciou o voluntariado em Lisboa, passou por Bruxelas e Lomé, a capital togolesa, Helton Sanches ruma para o país natal: Cabo Verde.
“Em 2018, depois do Togo, estive um mês em Cabo Verde. Lá trabalhei com uma instituição que se chama Delta Cultura, na Ilha de São Tiago, onde fica a cidade capital, Praia”, voltando a relacionar-se “com crianças também na ótica de ensino mais alternativo, atividades lúdicas, acompanhamento, com trabalhos de casa”, refere.
“Na verdade”, acrescenta Helton Sanches, era “um pouco de apoio emocional às crianças e apoiava a associação em brainstorming na melhoria das atividades que eles fazem com os miúdos, a própria filosofia da organização – como comunicar com as pessoas locais”.
E num espaço temporal de quase cinco anos, Helton Sanches já consegue ver em si o resultado de um antes e depois da ação de voluntariado que moldou o ser humano que é hoje: “A minha sensibilidade para com a situação de outras pessoas também aumentou um bocado”, reconhece.
“A primeira coisa que me vem à cabeça é aquela sensação de estar a fazer qualquer coisa, porque nós nos sentimos revoltados e insatisfeitos com muitos problemas sociais que temos no mundo e na comunidade africana, em particular, pois sabemos a nossa situação e dos nossos irmãos, e revolta-nos muitas coisas”, diz, apontando uma das eventuais razões para a perpetuação deste quadro de coisas.
“A minha opinião pessoal é que falta mais ação. E desde que comecei a fazer voluntariado, sei que há muita coisa para se fazer e não se faz. Inclusive sou de opinião de que, se queremos mesmo fazer uma mudança social grande, temos que ter para além de trabalhos com as ONG. É necessário, mas precisamos de muito mais do que isso”, refere.
E prossegue: “Na verdade, foi esse sentimento que me levou a começar a fazer voluntariado, ou seja, o sentimento de para além de estar revoltado com as coisas começar a tomar alguma ação prática. Isso mudou imenso em mim e, se puder registar mais coisas, digo que cresci imenso como pessoa”.
Segundo o voluntário, não foi apenas a sensibilidade para com a situação de outras pessoas que “aumentou um bocado”, pois Helton Sanches notou outras mudanças a nível pessoal.
“Começo a perceber um bocado a minha falta de importância, pois às vezes quando estamos nas nossas casas e no ´nosso mundo` parece que damos importância mais do que deveríamos dar a nós mesmos. Nós todos temos muitos problemas, mas nesse percurso fui encontrando pessoas com mais problemas”, garante.
Para Helton Sanches, “se calhar”, essas são “pessoas que de alguma forma tiveram que encontrar forças, apesar das suas situações, que se fosse eu diria que nem aguentaria. E isso fez-me crescer imenso como pessoa. Vou aprendendo, vou estando mais próximo das coisas que realmente me inquietam, que gostaria de puder contribuir, pois uma coisa é estar sentado em casa, outra coisa é estar envolvido com algumas pessoas”, conclui.(MM)