Já terá perdoado José Eduardo dos Santos?: “Nunca tive necessidade de o perdoar” – Sedrick de Carvalho

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O ativista angolano Sedrick de Carvalho, jurista e jornalista, autor do livro “Prisão Política”

Manuel Matola

O ativista angolano Sedrick de Carvalho lançou esta quarta-feira o livro “Prisão Política”, no qual descreve de forma cronológica a prisão de 2015 no conhecido Processo 15+2 referente aos 17 ativistas acusados e julgados por vários crimes após lerem e discutirem um livro sobre métodos pacíficos de protesto em Angola. Na obra escrita para evitar “deturpação da História” sobre o encarceramento do grupo que lutou contra o regime de José Eduardo dos Santos, antigo Presidente angolano, o jurista e jornalista residente em Portugal lança um alerta face ao eventual perigo de a democracia regredir em caso de manutenção de regimes como os de Angola, “que desde a sua génese sempre teve presos políticos”. O jornal É@GORA entrevistou-o.

O Sedrick lança um livro que tem um título sugestivo: Prisão Política. O que mais o preocupou para atribuir este título ao livro?

Há quem diga que é um título sugestivo, mas eu digo que não é muito criativo. É um título direto, muito objetivo. O que me fez optar por este título foi porque pretendia que as pessoas ao entrarem em contacto com o livro soubessem do que se trata. Há muitos livros com título de prisão e, eventualmente, haja alguns com o tema prisão política, mas o propósito é este: não dar voltas e ser objetivo logo à partida no título.

O que os angolanos devem saber desta Prisão Política?

Sabem, apesar de haver muitos que não, porque não é possível chegar a todos. Apesar da repercussão que o processo todo teve desde 2015/6 ainda assim há pessoas que não sabem. Podemos dizer que não temos muita esperança de que tenham percebido de todo o que realmente se passou. E o que pretendo com este livro é isso: deixar registado, pelo menos na primeira pessoa, o que se passou para que no futuro quem tenha curiosidade possa encontrar uma fonte de pesquisa.

Angola melhorou ou continua um espaço em que os angolanos e eventualmente outros nacionais se sintam presos politicamente?

Angola é um país que desde a sua génese sempre teve presos políticos. Às vezes, uns com menos visibilidades do que outros, mas sempre teve. Neste momento também há presos políticos, sobretudo na zona de Cabinda e agora numa com conflito mais aceso que é a zona diamantífera das lundas. Esses presos ainda que por vezes por motivos pouco percetíveis também estão detidos por razões políticas. É o poder político praticamente a determinar, porque se fosse só a Justiça [a funcionar normalmente] a forma como são efetuadas as detenções e as prisões não deveriam estar a acontecer. Entretanto, há mais contestação no país. E ter mais contestação reflete que há mais abertura por parte das próprias pessoas para fazerem uma atuação mais direta no país; ou seja, as pessoas tornaram-se muito mais ativas, mais partícipes, e isso é positivo. O país continua a registar bastante índices de intolerância política. Ainda na semana passada o maior partido da oposição, a UNITA, realizou manifestações, no caso na província de Benguela e, em reação, a polícia acabou por matar um dos manifestantes. Isto também demonstra intolerância política.

No comunicado que emite para falar sobre o livro diz que levou muito tempo para escrever a obra. Mais do que levar muito tempo qual foi a grande preocupação que teve ao ponto de olhar para este assunto como algo que deve ser escrito?

Como referi, a necessidade de escrever o livro era a de deixar na primeira pessoa [a versão sobre] o que realmente se passou. Há na nossa História de Angola e também acontece um pouco na História do Mundo [o princípio de que] a História é sempre contada na versão dos vencedores e contam-na deturpando-a. E Angola está eivada de deturpações, manipulações da sua própria História, a começar pela História da própria descolonização do país. E depois temos todos outros processos políticos em que também há bastante manipulações. É preciso então que nós nos antecipemos a essas manipulações narrando e deixando uma obra para que as pessoas possam consultar e verificar os pontos em que quando surgir a manipulação possam facilmente desfazer essas manipulações. Neste livro ainda consigo identificar nos documentos judiciais [do processo de detenção dos 17 ativistas] manipulações e faço questão de desfazer essa manipulação desde já.[Exemplo]: estou recordado de um elemento em que o Tribunal Supremo dizia num dos acórdãos que quando começamos a ser julgados em novembro de 2015 estávamos em prisão domiciliária. Isto é bastante grave porque quem lê aquele acórdão no futuro, eventualmente um pesquisador ou jurista que se deparar com aquele documento sendo oficial, vai usar esta fonte para sustentar que determinado grupo de jovens naquele ano quando começou a ser julgado estava em prisão domiciliária. É um documento oficial que está a dizer isso, mas é mentira [porque] só fomos submetidos à prisão domiciliária em dezembro. É preciso desmontar isso.

Até que ponto o próprio poder político e outros poderes não estarão reféns dessa prisão política?

Não acho que estejam reféns porque se tivesse que estar seria contra a sua vontade e não estão. Eu tenho gostado de referir com redundância que o poder em Angola é muito poderoso. Tem tanto poder que não há ninguém acima do poder político em Angola. Quando falamos daquela trindade de separação entre os três poderes, os outros dois poderes – o legislativo e o judicial – é que estão reféns do poder político. Aí sim podemos fazer essa analogia de reféns: o poder judicial que é quem deveria ser responsável por dar um percurso isento ao julgamento nunca foi capaz porque está refém do poder político, refém numa perspetiva mais ou menos exemplificativo porque o próprio poder judicial não é bem que esteja refém. Poderíamos dizer que estariam reféns em termos concretos se fosse o seguinte: se o poder tivesse todo interesse em fazer o seu trabalho com imparcialidade como mandam as normas, mas houvesse um boicote, um controle por parte do poder político. Mas é que nem isso há. Os tribunais superiores em Angola são controlados por juízes e juízas que fazem parte do próprio partido MPLA. Há pouco menos de três meses, a presidente do Tribunal Constitucional [Laurinda Cardoso] que foi nomeada pelo Presidente João Lourenço era na altura da sua nomeação secretária do Estado (vice-ministra, na linguagem anterior), membro efetivo do Comité Central do MPLA, uma empresária com ligações a vários indivíduos membros do MPLA; ou seja, fazia negócios com os companheiros do próprio partido e a nível internacional com reputação maculada, mas ainda assim João Lourenço não se coibiu e fez questão de a nomear para presidente do Tribunal Constitucional. Ou seja, ela vai para o Tribunal Constitucional e obviamente nem precisa que lhe deem instruções, pois por si só ela está a atuar exatamente como mandam as regras do partido. É por isso, como digo, que o poder é muito poderoso. Eles estão em todos os lados e todos os órgãos que supostamente deveriam ser independentes não o são porque é tudo uma extensão do poder político.

De que forma essa situação se pode reverter olhando para aquilo que é a atuação do próprio partido no poder e de outras forças políticas que existem em Angola?

Infelizmente, exatamente por causa destes elementos que apontei – o controlo dos poderes que à partida deveriam ser independentes – é muito difícil. Daí o super poder que o poder político tem agora. Um poder judicial devia servir para balancear esse jogo até mesmo nos momentos crucias em que devia atuar com isenção. Não há essa possibilidade, daí que mesmo no processo eleitoral que é onde se espera que saia resultados que vão pelo menos alterar a forma positiva à atual situação do país não há garantias de que isto venha acontecer. Nós tivemos eleições em 2017 onde se verificou de forma descarada as fraudes que foram feitas, mas ainda assim o poder judicial que, neste caso o Tribunal Constitucional que em Angola assume as vestes do tribunal eleitoral, validou as eleições e ignorou todas as reclamações que houve.

Qual é o papel da diáspora para eventual alteração deste cenário que descreve?

É quase nenhum.

Porquê?

Infelizmente, a comunidade imigrante em Angola não tem expressão. Angola tem uma comunidade de imigrante bastante vasta. Nós temos fronteiras vastíssimas com vários países e, sobretudo, os residentes nos nossos países vizinhos, como a República Democrática do Congo, que estão permanentemente em Angola tem pouca influência no tecido político, ou na esfera da comunicação em termos de expressão. No dia a dia nota-se a sua presença, que é massiva e impactante. Na economia informal lá estão também. Mas daí a ter um contributo para alterar as coisas a nível politico não vejo espaço.

O poder de voto da diáspora contribuiria para alguma mudança?

As eleições em Angola têm sido bastante renhidas desde 2002, mas neste momento não é permitido o voto da diáspora. Lutou-se bastante mas parece que a diáspora continuará a não ter esse direito nas eleições de 2022. No entanto, mesmo que tivesse – que é um direito necessário que tenham – o problema maior reside no poder de contar os votos. A forma como é controlado os votos em Angola é feito a partir do topo. Essa é a discussão que há em Angola em termos de pacote eleitoral. Se a diáspora votasse – e se for para aplicar o modelo que há em Angola – não teríamos garantias de que o voto seria contado na diáspora. O MPLA iria impor a necessidade de mandar as urnas para Angola para se contar os votos lá na sede da Comissão Nacional Eleitoral, que é onde é realizada a fraude quando o normal é contar-se nas mesas onde se realizou a votação para no final da contagem afixar-se o resultado naquela assembleia de voto. Mas não, é o contrário do que o MPLA autorizou na sua lei eleitoral [que impõe] que os votos têm que ser contados a partir do topo. Ou seja, todos os votos de todo o país e, se permitisse do exterior, também teriam que ir para a sede nacional em Luanda.

Pode se dizer que a diáspora está numa prisão política no que diz respeito a direito de voto?

Também está refém desta situação política. Continua refém. Obviamente que todos sabemos que a comunidade angolana na diáspora era bastante apática, distanciada, mas nos últimos anos tem se envolvido cada vez mais nas questões do país e tem exigido imenso. Aliás, grandes manifestações têm sido realizadas em vários países, com destaque para Inglaterra e Portugal. E certamente que estão reféns e gostariam de deixar de estar por participar por meio do voto num processo que é muito importante para os destinos do país.

Qual é a avaliação que faz dos resultados destas manifestações que a diáspora tem feito diante das instituições as quais se tem apresentando queixas sobre a realidade angolana?

Estou muito cético, e talvez o meu ceticismo também ofusque a possibilidade de ver os resultados, infelizmente. Mas o que vejo de positivo – e este é o esforço que tenho feito – é que essas manifestações despertam imenso a comunidade. Começou com pequenos grupos – lembro-me de alguns nomes em alguns países – mas hoje já não são só essas pessoas que estão à frente destas manifestações que continuam a fazer-se. É esse despertar da comunidade angolana no exterior que também de certo modo acaba por galvanizar estes movimentos. Depois há essa dupla reação: o que há dentro do país motiva os que estão lá fora e foi assim que estes começaram a sentir mais motivados, mas o que há lá fora também começa a motivar internamente. A questão que às vezes se coloca e que já ouvi as pessoas dizerem é: “até aquele angolano que está fora num país bastante desenvolvido, com uma qualidade de vida aceitável está a reclamar pelo seu país. E eu que estou cá?!!!”. Então, as pessoas se sentem também motivadas a participar. Acho que esse é o principal ganho [destas manifestações da diáspora]. Em termos de alterações de postura por parte das instituições – aqui poderíamos apontar, se calhar, dada a proximidade, para as embaixadas e consulados em Portugal – não temos visto mudança de postura.

E qual é a leitura que faz da reação das instituições multilaterais como a ONU e a União Europeia?

Feliz e infelizmente estas instituições têm uma agenda muito própria e que visa primeiro salvaguardar os seus interesses. Digo infelizmente porque é infeliz para nós. Mas é feliz para os seus povos, ou seja, tomara nós que tivéssemos uma União Africana que estivesse a trabalhar pelo continente africano, que tivesse uma postura permanentemente ativa e crítica contra os estados que são membros da própria União Africana, como é o caso de Angola quando há violações graves de direitos humanos. Não temos isso. A União Europeia está para isso: primeiro para os interesses do cidadão europeu. Daí que é infeliz para nós. Entretanto, a própria União Europeia tem delegação em Angola onde tem estado mais próxima das organizações da sociedade civil. Digo isso porque eu próprio também tenho alguma proximidade, conheço pessoas da delegação, interajo com algumas e acompanho os seus trabalhos junto de algumas associações da sociedade civil, mas isso é o máximo que poderiam fazer. Não podem ir para além disso. Obviamente que nós queríamos, exigimos e tem-se exigido mais, mas temos que compreender que não podem fazer mais do isso a nível da diplomacia. Tivemos aqui nas relações bilaterais de Angola e Portugal [que azedou no chamado “irritante” e vimos que nestes casos] Portugal não vai abdicar dos seus interesses. E e é aí que está o nosso grande problemas que às vezes não compreendemos que as relações com as instituições internacionais têm esse elemento.

Qual tem sido a articulação entre os 15+2 em torno dos problemas de Angola?

Continuamos articulados e é interessante que continuamos a ter atividades. Obviamente muitos de nós isolados. Apesar disso, alguns elementos deste grupo têm trabalhado juntos. Eu próprio estou a trabalhar com três pessoas do processo e outros companheiros também têm trabalhado juntos, mas enquanto grupo dos 17 não temos uma agenda. Mas podemos dizer que até coincidimos nas nossas agendas isoladas. Continuamos todos a trabalhar pelo bem de Angola, pela democracia e desenvolvimento, cada um isolado mas todos de forma positiva. E é isso que mais importa. A nível de interação, sempre que necessário, temos interagido e muito bem.

O Sedrick já terá perdoado o antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos?

Nunca tive necessidade de o perdoar, porque eu fiz um esforço para que não cultivasse um ódio por ele. Não tive essa necessidade. Infelizmente, José Eduardo arrastou-se muito tempo no poder e isso beliscou imenso a sua própria imagem. Hoje ele está fora do poder quando parecia quase impossível ele largar o poder vivo e hoje consegue perceber o impacto negativo que causou ao país. Digo isso não no sentido de que ele esteja a viver as amarguras que o povo angolano vive [diariamente], mas que ele está a ser vítima do próprio sistema que construi, mais do que foi o primeiro Presidente Agostinho Neto que só fez quatro anos [de governação]. Ele foi quem construiu esse monstro que delapida o país inteiro. E hoje ele tem sofrido por isso. Os próprios companheiros do partido, a própria máquina que ele montou está a perseguir a sua família, aquele reduto em que ninguém pensa tocar. A família é um reduto por quem se tem que ter muito respeito, mas a primeira coisa que a máquina que ele criou fez foi perseguir a sua família. Pode-se dizer que é [resultado de] uma Justiça que está a fazer o seu trabalho, como o Presidente João Lourenço tem alegado, mas nós conhecemos aquela máquina. Aquela máquina é a Justiça imparcial. É uma máquina política [usada para] ir atrás da família porque pretende esvaziar de poder toda a família [Dos Santos]. Em rigor já conseguiu esvaziar a família [do ex-Presidente angolano] de todo o poder. Por isso que fomos vendo que aquilo foi escalando: depois da família [Dos Santos] atacou outros também poderosos que estão a esvaziar para que ele [João Lourenço] pudesse consolidar e afirmar-se como todo o poderoso. E neste momento já demonstra que é.

E este título do livro encaixa-se naquilo que José Eduardo dos Santos e a família estão a viver?

Neste momento eles não estão propriamente numa Prisão Política, até porque apenas um dos filhos é que foi condenado judicialmente. Não sei se já voltou para cadeira porque houve um acórdão do recurso a uma decisão que determinou que a pena está bem aplicada, por isso terá de a cumprir. Entretanto, não sei se já regressou, mas me parece que não porque já teríamos ouvido alguma coisa. Talvez tenha interposto mais algum recurso ao nível do Tribunal Constitucional. A ser possível isso, são elementos que vão prolongando a decisão final sobre o cumprimento da pena. Mas em prisão política não está propriamente, mas está numa prisão de isolamento porque ele está praticamente isolado. A família está isolada. A filha que em Angola era chamada de princesa Isabel dos Santos está muito fragilizada, infelizmente. Digo infelizmente porque humanamente não é desejável que ela passasse por que está a passar, que é a morte do marido. O pai – cujas últimas notícias indicavam que lhe estava a dar um apoio, digamos, mais ao nível emocional do que, se calhar, a nível financeiro – está de regresso a Luanda e certamente ela está desamparada. Mas este isolamento é uma prisão que eles próprios construíram à volta de si. Apesar de ter uma filha, a Tchizé dos Santos, que está por aí – parece que está mesmo cá em Portugal – e tem dado mostra de que está bastante sociável, dinâmica, eu não sei se até isso não revela também uma estratégia de tentar esconder o seu próprio isolamento. Talvez seja isso, apesar de ela nunca ter sido uma pessoa propriamente discreta. Sempre foi uma pessoa dinâmica, uma pessoa que gosta de interagir. Acho que em rigor não é uma prisão política mas de isolamento resultado do próprio regime que o pai construiu.

Quais são os próximos passos para a promoção deste livro?

Eu pretendia fazer o lançamento do livro em Luanda, onde estive até há bem pouco tempo e quis tanto fazer o lançamento lá, mas não consegui. O livro foi às bancas em agosto e não queria terminar o ano sem fazer apresentação pública deste livro. Depois disso vamos fazer uma apresentação do livro em Luanda – ainda sem data, porque a maior dificuldade para não ter sido lá é que há muitos constrangimentos para colocar livros em Luanda. Sempre houve essa dificuldade em Luanda pois é [um exercício de logística] muito caro. Com a pandemia a situação agravou-se. Perspetivo que seja no máximo até fevereiro, mas antes disso já temos previsto mais duas apresentações aqui em Portugal. Por enquanto não adianta avançar quais serão esses locais mas depois faremos questão de anunciar.

Que ilações os movimentos da sociedade civil da lusofonia podem tirar deste livro e daquilo que foi a experiência dos chamados Revus (“Movimento Revolucionário de Angola”)?

Sedrick de Carvalho exibindo o livro da exposição fotográfica do editor João Rodrigues que decorreu no Museu da Arte Antiga, em Lisboa. Créditos: Elivulu
Respondo aproveitando para dar um dado sobre um dos pontos do local de apresentação do livro [que foi feita] numa comunidade de um país Palop porque pretendo discutir sobre os perigos destes processos políticos nos Países Africanos de Língua Portuguesa. Ao nível dos Palop, temos países com uma democracia estável: Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Só estes dois, porque os outros três – tirando a Guiné-Equatorial que entrou na CPLP mas que não sei se entrou nos Palop – Moçambique, Angola e Guiné-Bissau estão com dificuldades de chegarem pelo menos ao nível inicial da democracia. Todos eles estão numa fase formal da democracia. Estão com leis, constituições que consagram sistemas democráticos mas na prática ainda não começaram sequer viver democracia. Dois desses países – Moçambique e Angola – têm uma relação política muito semelhante. Aliás, Angola agora é que entrou no ritmo que Moçambique iniciou há mais tempo que é o de mudança de presidentes interpartidária. Os quatro presidentes que houve em Moçambique [a contar com Filipe Nyusi atualmente no poder], são todos do mesmo partido. Angola entrou nisso agora: teve José Eduardo dos Santos como Presidente, mas foi após a morte do primeiro Presidente, Agostinho Neto, e fez 38 anos no poder. Parece que Moçambique percebeu muito mais rápido que podia fingir democracia fazendo mudanças intrapartidária. Angola fez agora com João Lourenço, por isso que há pessoas que acreditam que este ciclo de mudanças intrapartidária não vai parar, [isto é, creem] que João Lourenço vai fazer mais cinco anos e depois virá outro mas que seja sempre do MPLA. Este é um jogo que à partida é positivo porque permite trocar presidentes, como aconteceu em Angola – por isso que houve uma grande festa aquando desta mudança de Presidente da República -, mas é também um jogo muito perigoso porque revela uma manipulação permanente do sistema. Como diz o meu amigo Manuel dos Santos, “mudar tudo para ficar na mesma”. Isto é perigoso. Então, o que eu pretendo é fazer esta discussão ao nível das comunidades africanas de língua portuguesa para que possamos compreender os perigos destes processos que não são positivos para a imagem do país, porque, qualquer país que tenha presos políticos, internacionalmente não é bem visto. Não interessa o país. [Exemplo], o Ruanda: neste momento, o Ruanda vive níveis de desenvolvimento interessante, [sobretudo] a nível da tecnologia, infraestrutura e tem sido bastante elogiado até ao nível internacional, mas há presos políticos no Ruanda. E enquanto existir presos políticos o regime ruandês vai ser sempre apontado como ditatorial. Isso pesa imenso inclusivamente na autoestima dos próprios povos. Eu tenho dito que é uma grande vergonha quando falo de presos políticos em Angola. Falo nisso com muita tristeza e uma vergonha para mim enquanto cidadão angolano. O meu país faz [alguns cidadãos] presos políticos. O Ruanda tem presos políticos. E isso também é lamentável em relação a outros países. A Guiné-Bissau vive permanentemente ciclos de instabilidade e certamente tem tido detenções com caráter político. Isso é muito mau. Então, há dois países que temos sempre que destacar que estão com índice de desenvolvimento humano de uma democracia bastante avançada. Mas até com estes dois temos que discutir uma coisa: o perigo de a sua democracia regredir em função dos países vizinhos e, neste caso, dos companheiros da comunidade lusófona.

Isso passa pela fortificação do papel político da CPLP?

Também. Infelizmente, a CPLP tem pouco impacto na vida dos cidadãos desta comunidade. Agora mesmo viu-se com o anúncio da entrada em vigor a 01 de janeiro de 2022 de um instrumento de livre circulação que o Acordo de Mobilidade não é o principal elemento [nessa discussão]. Claro que a Mobilidade é um grande ganho das comunidades que vivem disso – o principal ganho são as trocas comercias que pressupõe que haja mobilidade -, mas o principal elemento nestes países em que se pretende que haja mobilidade, trocas comercias mais intensas e mais facilitadas, é que haja democracia. Podemos dar exemplo de Angola: se muito mais facilmente nós os cidadãos angolanos temos a pretensão de vir a Portugal e eventualmente um regime de mobilidade mais aberto permitir isso, por parte de Portugal poderá existir alguns receios quando [um cidadão português] perceber que, por exemplo, se houver algum problema ao nível dos negócios em Angola não há grandes garantias de que os tribunais estão isentos para decidir favoravelmente para si, caso [o português] tenha razão. Isso coloca em causa a própria Mobilidade para a comunidade. É isto que temos que debater e tem se debatido. Há muitas pessoas que falam com mais propriedade sobre as limitações da própria CPLP e, obviamente, de forma mais restrita dos Palop.

Estamos na época festiva e de pedidos ao Pai Natal, qual seria o grande pedido do Sedrick para o ano 2022, olhando para aquilo que é a realidade dos países lusófonos?

Eu não posso fazer isso enquanto crente nas festividades e no Papai Noel [Risos]. Mas é sempre um novo ano, ano de renovações do que se pretende sempre e sendo assim o que posso pedir é que haja mais democracia, desenvolvimento e mais cidadania neste caso para o exercício das próprias liberdades nestes países, e que haja mais intercâmbio. Pessoalmente, tenho feito este esforço no sentido de ter mais intercâmbio com isso que se pode chamar de lusofonia. No entanto, temos de interagir mais, fazer mais coisas juntos, sobretudo aqueles países que estão melhor como Cabo Verde e São Tomé passando experiência, pressionando os outros para que também possam chegar a esses níveis, claro, sem colocar em causa o seu desenvolvimento, o seu regime democrático. Mas temos que trabalhar todos, porque alguns ao ficarem para trás colocam em perigo também aqueles que estão lá à frente.

Isso passa por uma maior articulação das diásporas destes países?

Também. A diáspora tem um papel muito importante nessa questão. (MM)

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