Manuel Matola
Doze anos depois, o escritor angolano João Melo lança um novo título de poesia: “Diário do Medo”, onde num dos 72 poemas denuncia o “flagelo verdadeiramente mundial”: o racismo que matou tragicamente o ator luso-guineense Bruno Candé, no centro de Lisboa, e a brutalidade policial que vitimou em direto o afro-americano George Floyd, nos EUA. É o seu 15º livro e foi escrito sob impacto da pandemia da Covid-19, doença que lhe roubou não só o amigo Luís Sepúlveda, o escritor chileno com quem esteve sentado na Correntes D´Escrita da Póvoa de Varzim em fevereiro de 2020, como também despertou a sua consciência para a real finitude dos poetas, apesar da noção que tem da infinitude da poesia. “Agora estou reformado da vida pública e tomei a decisão de me dedicar realmente em tempo inteiro a escrita. Apenas”, diz João Melo, que até há dois anos foi ministro angolano da Comunicação Social. Na véspera do lançamento da obra, agendado para a próxima sexta-feira, dia 12, em Lisboa, o jornal É@GORA entrevistou-o.
O seu livro tem um título sugestivo: Diário do Medo. O que justifica o título?
Este título tem a ver, em primeiro lugar, com a situação da pandemia que surpreendeu a humanidade no início do ano passado. Acho que todos nós no mundo inteiro fomos confrontados com a nossa própria finitude enquanto seres humanos, enquanto indivíduos, porque uma doença desconhecida e surpreendente nos obrigou a mudar radicalmente de vida de dia para noite. De repente, nós descobrimos que não somos eternos. Este livro foi escrito quase na sua totalidade no ano passado, sob impacto desta pandemia. Mas não foi só a pandemia. No ano passado aconteceram em várias partes do mundo uma série de manifestações de violência policial, racismo, a começar pelos EUA. Portanto, foi sob impacto destas duas situações que o livro foi escrito. Mas apesar do seu título [o livro] não é uma confissão de medo, pelo contrário: é uma tentativa de defrontá-lo e superá-lo. Espero que os leitores cheguem a essa conclusão.
Esta é uma forma de fazer poesia. Significa que, enquanto cidadãos, além de termos ultrapassado a questão da Covid-19, os poetas e a poesia também conseguiram ultrapassar esta situação pandémica?
Bem, creio que a poesia é um fenómeno interessante. Li há dias num jornal americano que no mundo inteiro foi como que houve um boom de poesia, pois começaram a ser publicados livros de poesias [incluindo] de poetas que já não escreviam há algum tempo e que voltaram a escrever. Os que nunca tinham escrito poesia aventuraram-se no género. Multiplicaram-se não só os livros, como também recitais, leituras. Isso foi um fenómeno mais ou menos comum em vários países. Eu creio que isso confirma que a poesia é um género fundamental, primordial [até porque] a literatura universal começou com a poesia. Por causa da situação de anormalidade que vivemos, voltamos a descobrir que não somos eternos, somos finitos. Portanto, recorremos mais uma vez à poesia talvez como os primeiros seres humanos quando confrontados com a necessidade de enfrentar a morte e a natureza, as doenças, etc. Eu falo por mim: embora tenha começado a minha vida como poeta – comecei a publicar poesias, a partir dos anos 80/90 enveredei também pelo conto. Desde essa altura – por volta dos anos 2000 – praticamente não tinha escrito mais nada de original em termos de poesia, e, de repente, desde o ano passado comecei a escrever de novo poesia e a um ritmo muito grande, creio que [devido à] situação que a humanidade viveu e também à necessidade que cada um de nós viveu desde o ano passado, o de ter que se confrontar consigo próprio, o confinamento a que fomos e ainda estamos sujeitos, em parte, isso tudo fez-me, como a muita gente, retornar à poesia.
Há aqui uma expressão que usou: a finitude, que de qualquer forma acaba atingindo os poetas. Neste livro faz menção ao Luís Sepúlveda que teve um fim trágico nesse período da pandemia. Como é que interpreta essa finitude dos poetas e a infinitude da poesia?
Realmente, eu dedico este livro a esse grande escritor chileno que foi o Luís Sepúlveda porque por coincidência estive com ele no último festival em que ele participou, nas Correntes D´Escrita da Póvoa de Varzim em fevereiro de 2020. E como aconteceu com todos os que estivemos no festival ficamos chocados com a notícia do desaparecimento poucos dias depois que ele tinha adoecido e que mais tarde teria falecido. Isso chocou-me muito e depois também eu li um poema que a mulher escreveu para ele. Poema esse que, aliás, foi traduzido do espanhol e tomei a liberdade de incluir no livro. Mas, de repente, não foi só Sepúlveda. Vários outros artistas faleceram e continuam a morrer por causa da Covid-19. Lembro grandes nomes da cultura e música africana, como o Manu Dibango, vários autores brasileiros que conhecia. Enfim, um drama. A arte, poesia, talvez sirva para isso: ajuda-nos a enfrentar estes dramas e realmente talvez seja a única maneira que o homem talvez tenha de enfrentar a sua própria finitude. Nós morremos todos. Nascemos, vivemos e morremos, e a arte fica. Espero.
No livro fala de alguns episódios de violência policial e racismo no mundo, como é o caso de George Floyd, e para o caso de Portugal a questão racial com a morte de Bruno Candé. Este problema tem de ser resolvido pela poesia?
No fundo pretende saber se a poesia é capaz de mudar o mundo. Eu já acreditei mais do que acredito [hoje]. Mas [fazendo uma adaptação à frase de Mário Quintana, podemos dizer que] se a literatura não pode mudar o mundo ela pode mudar o mundo e os homens, sim, podem mudar o mundo. Portanto, eu estou a dizer que a arte não deixa de ter um papel cada vez mais nos dias que correm. As sociedades voltam a exigir que os artistas, escritores, no geral, tomem posição. Depois de uma fase, no final do século passado, em que aqueles que faziam literatura política, social engajada eram criticados, porque se dizia que a literatura não tem nada a ver com a política, no início deste século XXI e com várias lutas sociais que acontecem no mundo inteiro – [como as] lutas antirraciais, de género – penso que as sociedades voltam a exigir dos artistas, dos poetas, etc, que tomem posição. E isso começa a acontecer. Eu realmente, como aconteceu certamente com muita gente, fui tocado com essa série de acontecimentos, alguns dos quais correram o mundo; outros ficaram confinados aos locais e aos contextos onde se realizaram, mas que nos tocaram a todos. Referiu ao assassinato do ator português de origem guineense por ato de racismo como ficou provado. Neste livro tenho um poema em que falo dessa morte trágica.
O facto de termos aqui Bruno Candé e a forma como o caso foi fechado leva-nos a uma maior reflexão. Como é que interpreta isso para se ter um fim às situações do racismo?
O seu livro tem 72 poemas e como disse a quase totalidade foi escrita durante a pandemia. Pelo menos sete foram escritos antes e se perderam por causa de problemas informáticos. Isso não é contrassenso com a fase em que nos encontramos, em que toda a gente entrou para o digital?
[Risos] Não. Acontece que realmente eu estava já antes da pandemia a preparar lentamente o novo livro de poesia. O meu último original [de poesia] tinha saído em 2009 e eu estava a organizar um outro. E a mais ou menos meio tive um problema e perdi-os todos, porque o computador não tinha back-up, então perdi esse livro. Salvaram-se realmente uns poucos – sete – porque eu já os tinha publicado em algumas revistas quer em Angola, quer no Brasil. Então pude recuperar esses poemas. O que fiz foi recuperá-los e incluí-los nesse novo original que escrevi no ano passado. Agora já faço back-up [risos].
Pelo menos aprendeu como gerir a situação. É aprendizagem que também trazemos da pandemia?
Claro. Todos temos a necessidade de aprender. Há coisas boas que talvez fiquem, outras nem tanto, mas creio que a pandemia nos deu várias lições e sejamos nós capazes de aprender.
Angola está neste momento a fazer um plano para início do recenseamento da sua diáspora. Olhando para os números que se pretende inscrever neste projeto – quase 450 mil cidadãos angolanos no mundo e aquilo que é produção literária – qual é a sua visão sobre a necessidade de chamar Angola para a diáspora e a diáspora ser chamada pela poesia angolana?
Eu tenho uma dificuldade em responder a isto porque eu não sou propriamente um autor da diáspora. Eu vivo em Angola. Estou neste momento em Portugal onde vim fundamentalmente para lançar o livro. E agora também como estou reformado e gosto de viajar, na medida do possível, penso passar umas temporadas aqui ou ali, apenas por essa razão. Torço para que a pandemia acabe logo e eu tenha condições de fazer isso. Mas não sou um autor da diáspora. Mas o que posso dizer é que se comparamos as nossas diáspora – sobretudo Angola, Moçambique e mesmo Cabo Verde, apesar de ser um país da diáspora – não temos muitos países que se podem inscrever nessa categoria da diáspora assim como está a ver. Haverá um ou outro, mas penso que até agora pelo menos a nossa situação é diferente por exemplo de outras diásporas africanas como a nigeriana, senegalesa, etc, que têm muita gente boa a escrever nos países de diáspora como França, Inglaterra, EUA, onde há grandes comunidades de cidadãos originários da Nigéria, Senegal, Gana, Quénia e outros países africanos. Não quer dizer que os cidadãos da diáspora Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe não estejam a escrever. Haverá gente que eu não conheço. Há dias conheci uma autora angola, a Yara Monteiro, que se pode enquadrar neste grupo. Haverá outros: moçambicanos, guineenses, etc. Mas não há muitas publicações, também porque em termos de mercado editorial Portugal não se compara ao mercado editorial francês, inglês e muito menos o norte americano. Portugal é um mercado pequeno. Mas eu diria que não é só uma questão de mercado. É também uma questão cultural e de ideologia. A sociedade portuguesa ainda não sabe bem como lidar com as várias diásporas que aqui existem. Então, os africanos da diáspora que vivem em Portugal ainda têm pouca visibilidade. Creio que há um longo caminho a percorrer para que realmente as diásporas africanas em Portugal tenham a visibilidade que já conquistaram em países como França, Inglaterra.
“Falta uma visão e estratégia comuns por parte dos países da CPLP”
Angola está neste momento a presidir a CPLP. Qual é o papel da organização, olhando até para aquilo que é a sua essência a nível da cultura?
Eu não sei bem. Eu sou ao mesmo tempo defensor desta ideia da CPLP e ao mesmo tempo um crítico como os diferentes governos gerem [a organização lusófona]. Acho que não há uma estratégia e visão comuns sobre o que pode ser a CPLP. Por vezes fala-se na língua, outras vezes na cultura. Outros dizem que isso não interessa, o que importa é a economia. Ora, eu acho que tudo interessa: a economia, tecnologia, língua, cultura. Mas não existe, ao meu ver, uma visão e uma estratégia comuns por parte dos países que integram a CPLP, por isso que ela está muito aquém daquilo que ela poderia ser. No entanto, continuo optimistamente a pensar que pode vir a ser.
De que forma pode vir a ser e o que falta na verdade?
Falta uma visão comum. Há países para os quais o que importa é a língua, para outros o que importa é a economia, e depois não importa nada porque nada é feito. Creio que falta uma visão comum e essa deve ser a ponte para uma comunidade multiforme. Quer dizer, a CPLP pode ser tudo: uma comunidade linguística, cultural, tecnológica, mas se os países e os governos, em primeiro lugar, mas também os cidadãos destes países quiserem.
Essa mobilidade, que é um dos pilares da presidência de Angola na CPLP, é a saída para se ter algum resultado positivo daquilo que estamos a conversar?
Há um caminho longo e complexo. E tudo começa como bem apontou: a questão da circulação das pessoas. No meu entender, é inconcebível que haja uma comunidade em que os seus membros não possam circular livremente entre todos os países que a constituem. Isso é contraditório com a própria noção de comunidade. E sem este intercâmbio, essa livre circulação, fica difícil depois haver iniciativas comunitárias em todas as outras áreas, desde a cultura até à economia, tecnologia, ciência…
Qual é a leitura que faz da própria produção literária e do género poesia que se faz a nível de Angola que, como disse, é onde reside?
Neste momento, Angola passa uma fase complicada em termos editoriais. Aliás, a capacidade de edição em termos editoriais é muito diminuta. O mercado livreiro também praticamente não existe. Desde o início dos anos 90, com a introdução da economia de mercado, o livro passou a ser tratado como mercadoria e as editoras deixaram de ter apoios do Estado e, portanto, a produção livreira tornou-se mais difícil. A situação económica e social também se agravou. Há muita pobreza. Entre comprar um litro de leite para o filho e um livro, um pai não hesita.
Mas a produção de livros é diferente. Se quisermos comparar com América Latina, que teve em tempos uma convulsão que provavelmente se compara com a da Angola, houve um boom na produção literária. Como é que olha para as duas realidades?
Temos que ser realistas e modestos. Não dá para comparar a situação da maioria dos nossos países em África com a situação da Argentina, Uruguai. Chile, de onde vem o Sepúlveda. Apesar de todos os problemas que estes países têm são outro nível cultural, educacional, com outra História. Não dá para comparar. Concordo quando diz que uma coisa é a distribuição dos livros e outra é a escrita. Claro que há gente a escrever em Angola. Hoje em dia com as redes as pessoas encontram maneiras de divulgar a sua produção, mas não me parece francamente que isso seja suficiente. É preciso fazer mais. A literatura não é uma ilha que viva isolada de tudo o resto. Portanto, temos que ter noção de que os países precisam de crescer economicamente, mas também precisam de distribuir melhor os frutos desse crescimento, precisam educar as suas populações, porque só isso permite o florescimento das artes.
Por isso que há pouco falava da diáspora angolana que está em melhores condições, pois tem melhor acesso à própria tecnologia, e questionava: se daquilo que sabe, a produção ou não produção literária da diáspora não é ínfima para os recursos de que detém?
Não sei, porque francamente não tenho conhecimento profundo da diáspora angolana. Imagino que haja gente a produzir, a escrever. Como disse, Portugal não é talvez o melhor país para dar espaço e voz a essas produções diaspóricas. Não se confunde com Inglaterra, França. Tenho notícias de que algumas pessoas que estão envolvidas com certo tipo de iniciativas – como disse há pouco conheci uma autora que ela própria se considera filha da diáspora. Portanto, acredito que venham a surgir mais nomes. É uma questão de tempo e poderemos vir a conhecer autores na diáspora interessantes.
“Decidi cumprir um período de nojo e não emitir nenhuma opinião pública sobre os acontecimentos em Angola”
João Melo foi até há relativamente pouco tempo ministro da Comunicação Social. Olhando para aquilo que Angola está a passar hoje e já estando fora deste cargo político, o que tem a dizer sobre a forma como os jornalistas têm estado a promover Angola e a forma como Angola é vista a partir de fora?
Agradeço a sua pergunta. Entendo perfeitamente a curiosidade que tem, mas peço-lhe desculpas para não lhe responder. Quando saí do cargo, há dois anos, eu próprio decidi cumprir um período de nojo e não emitir nenhuma opinião pública sobre os acontecimentos em Angola. Vou fazê-lo no momento em que eu entender, mas por enquanto peço que compreenda as reservas que tenho.
Ainda falta muito para esgotamento esse período de nojo?
[Risos] Mais ou menos.
Voltando novamente ao livro e para terminar. Esse é um livro que lança com um hiato de12 anos. De hoje em diante vamos ter um João Melo mais produtor ou teremos que esperar que haja aqui algum interregno até a próxima produção?
Bom, foram 12 anos para [lançar] um original de poesia, porque fui publicando contos. Ainda no ano passado saiu aqui em Portugal o meu último livro de contos – “O Dia em Que Charles Bossangwa Chegou à América” – que foi editado pela Caminho. Vai sair também em breve quer no Brasil, quer em Angola. A pandemia também complicou-nos a vida. De poesia, sim. Há 12 anos que eu não publicava nenhum livro original. Mas daqui para frente espero produzir mais. Agora estou reformado da vida pública e tomei a decisão de me dedicar realmente em tempo inteiro a escrita. Apenas à literatura. Inclusive também dava aulas na Universidade, mas não penso retomar. Quero ocupar o meu tempo com a literatura. Veem aí outros livros: no próximo ano sairão pelo menos mais três de poesia; o meu primeiro livro de infantojuvenis, que já está escrito; e o meu primeiro romance que deverá sair no primeiro trimestre do próximo ano. É com isso que estou agora envolvido. Quero cuidar da minha carreira como escritor.
E já há títulos para estas obras?
O romance ainda não posso revelar o título, mas o livro de infantojuvenis vai chamar-se “O livro de Sonhos”. O livro de poesia que vai sair no próximo ano é na verdade a quinta e última antologia poética-temática que vem sendo publicada aqui em Portugal pela Editora Caminho, com toda a minha poesia até ao ano 2000. Foram organizadas cinco antologias temáticas dessa poesia e quatro títulos já saíram. E o quinto, e último, vai sair então no próximo ano.
Essa sua fase de reforma passa por fazer trabalhos de mentoria por quem queira apostar na escrita?
Tenho pensando nisso, afinal também preciso pagar as contas [risos]. Tenho pensado muito em trabalhos de edições. Talvez reserve um espaço de tempo para isso. (MM)