Manuel Matola
O escritor e cineasta moçambicano Júlio Silva vai lançar em setembro um novo livro com 7 contos sobre os dramas que se vivem em Cabo Delgado, no norte de Moçambique, onde “hoje em dia há crianças a serem mortas como se fossem terroristas”. E, em 2022, a obra vai ser transformada em filme. O jornal É@GORA falou com o antropólogo cultural moçambicano sobre os novos projetos desenvolvidos durante o confinamento devido à Covid-19 e que recentemente valeram alguns galardões. Há dias, a Unión Hispanomundial de Escritores (UHE-Portugal), organização que reúne 130.000 escritores a nível global, fundada no Perú por Carlos Garrido Chalén, um dos mais importantes poetas naturalistas contemporâneos, outorgou o Diploma “Escudo de Prata” à Associação Cultural Mozbeat dirigida por Júlio Silva, por reconhecer o seu papel na divulgação e promoção do Cinema Rural e cultura moçambicana em Moçambique e no mundo. “Este reconhecimento veio dizer-me que, apesar das muitas dificuldades existentes devido à pandemia, a minha luta por aquilo que acredito deve continuar”, pois, “mesmo neste tempo de pandemia, não houve tempo de cruzar os braços. Dediquei-me à escrita de contos e à elaboração de guiões cinematográficos para se dar início a realização de novos filmes programados para 2021 e 2022 em Cabo Verde e Moçambique”, diz ao jornal É@GORA Júlio Silva, reagindo à distinção recebida há dias, no âmbito da celebração dos 29 anos da UHE, que se comemorou a 16 de junho.
Vai lançar um novo livro. O que é que temos de novidades para os próximos tempos?
É um livro com 7 contos, 2 deles dedicados à guerra que está a acontecer em Cabo Delgado. São contos baseados em factos reais de entrevistas que assisti na televisão e do que vi na população. De como é que foram as fugas, a sobrevivência e tudo isso inspirou-me para criar 2 contos que serão passados para cinema em 2022.
Do ponto de vista de história, são contos que se vão entrelaçando dentro do livro?
Não, são 2 realidades diferentes. Um ter a ver com a fuga da população, como é que as pessoas conseguiram escapar, sobreviver aos ataques e o que assistiram até chegarem a Pemba. É todo o percurso desde a aldeia até chegarem a Pemba. O outro conto tem a ver com o rapto de crianças em Cabo Delgado.
E é uma realidade que tem estado a ocorrer nos últimos tempos?
Sim, e hoje em dia há crianças a serem mortas como se fossem terroristas. Elas são obrigadas a estar com armas. Tornaram-se carne para canhão.
Carne para canhão ou crianças soldado…
Exatamente. É o episódio de uma criança que também foi raptada, mas que conseguiu fugir.
E isto vai-se transformar num filme?
Sim, em 2022 já está tudo organizado em Moçambique para passar isso para cinema. Como é baseado em factos verídicos há uma certa urgência para se expor esses dois filmes para as pessoas perceberem o que aconteceu. Porque não sei qual é o ponto de situação do próximo ano, em relação à guerra e à Covid-19.
Com relação à intenção de transformar isto em filme, a ideia vai continuar a ser na linha que o Júlio Silva tem seguido?
Sim, dentro do meu cinema rural que agora está além-fronteiras, a andar pelo mundo. O que me deu uma certa força para continuar e fazer mais. Todos os prémios que vão aparecendo, como os diplomas e o escudo de prata, todo esse reconhecimento levou o meu filme para mais de 140 países, onde fazem parte 130 mil escritores de todo o mundo. É fantástico ver que os meus filmes estão a funcionar.
Sobre o reconhecimento do galardão de prata, estamos a falar exatamente do quê?
É a União Hispano-Mundial de Escritores. Foi num festival deles, e acharam que era algo inédito. E a partir daí resolveram homenagear-me nesse sentido. Para mim é fantástico porque criou-me mais vontade de fazer.
Isto é sinónimo que durante a pandemia não só esteve a produzir, como esteve a receber alguns galardões.
Sim, foi interessante. Tive vários reconhecimentos, na semana passada recebi o certificado de honra de autor de uma editora portuguesa juntamente com a Vera Duarte. Isso incentivou-me a escrever mais contos.
Do ponto de vista da estrutura desses contos, quantas páginas tem e quanto tempo demorou a escrever?
São contos pequenos, de viagem, de 2/3 páginas. Este livro terá 7 contos: 2 abordam Cabo Delgado, outros 2 abordam o problema dos ciclones e das populações que enfrentaram o ciclone Idai (na Beira, centro). E outros contos ligados à realidade moçambicana. Um dos contos é ligado ao obscurantismo em Nampula, sobre casos que ouvi e que anos depois passei para um conto. E assim que tiver oportunidade vou passar para cinema porque também tem a ver com misticismos. É um livro pequeno com 7 contos de leitura fácil. Espero que possa chegar a todos e que as pessoas gostem. Foi também a partir deste livro que recebi o certificado da editora Templários.
No fundo, a ideia é mostrar o drama atual de Moçambique para além do problema que é mundial?
Exatamente. É um livro que as pessoas rapidamente se apercebem do que está a acontecer em Moçambique. Como estou sempre em contacto com a população e tenho jornalistas que me mandam matérias de Cabo Delgado vou bebendo disto tudo. Isto é sempre matéria-prima para ir criando os meus guiões, fazer os meus contos. E as coisas vão andando dentro dos sonhos que vou tendo.
A razão de receber essas informações e não estar lá é pelo impedimento das viagens?
Eu passo a vida a viajar dentro de Moçambique. A pandemia não me deixou viajar para Moçambique. Primeiro cortaram as entradas, não se podia viajar, aconteceram várias coisas. Depois estava à espera da vacina porque queria ir vacinado. No fundo estava a tentar salvar- me. Vou para lá, os hospitais não estão a funcionar convenientemente e depois se me acontece alguma coisa? Fiquei à espera de ser vacinado, já tenho as duas doses e depois surgiu a oportunidade de ser operado às cataratas. Mas vivo diariamente Moçambique. E como o Manuel de Araújo [presidente do Município de Quelimane, no centro de Moçambique] fez questão de renovar o meu trabalho de embaixador cultural de Quelimane para fazermos mais coisas.
Relativamente ao filme, fala de 2022. Para começar talvez pegasse no trabalho que inspira o próprio livro. Qual é a data de lançamento?
O livro será lançado no mês de setembro. Estou a contar lançar o livro na segunda semana de setembro, antes da viagem para Cabo Verde.
Em Cabo Verde o que é que está programado?
Vou ficar 2 meses a fazer o filme, depois volto e passo cá as festas. No final de janeiro sigo para Moçambique para dar início a um filme em Inhambane. Havia uma história de um tubarão em Inhambane que andava a comer as pessoas, e o filme vai ser à volta disso. Mas fui mais para o lado do obscurantismo porque diziam que aquele tubarão era possuído por um espírito. E vou trabalhar com dois grupos de teatro de lá.
Esta variedade de trabalhos que está a desenvolver é sinónimo de que o Júlio conseguiu fazer algo que muitos não conseguiram fazer, contornar a pandemia. Para quem estiver a ler, como é que é possível e que explicações dá para contornar esses problemas?
Eu tenho como princípio o seguinte: a vida é curta, mas não pode ser pequena. Isso significa que devemos viver intensamente cada momento. Se for obrigado a ficar em casa, tenho de criar muita coisa de forma a que na primeira abertura eu já tenha material. E vou preparando o pessoal do cinema, quando há pequena aberturas. [Exemplo], Eu levo sempre um kit de proteção para mim e para todas as pessoas que estão a trabalhar comigo: álcool gel, máscaras e luvas. Tenho um kit que anda sempre comigo e que vou distribuindo a quem está ao meu redor.
Mas do ponto de vista de produção há muitas pessoas das artes que têm estado a reclamar por falta de apoios. O Júlio continua a trabalhar. Como é que se justifica isso?
Eu tenho um processo diferente de toda a malta. Os realizadores só trabalham quando alguém os financia. No meu cinema crio financiamentos próprios.
O que é que isso quer dizer?
Nós temos de rentabilizar o trabalho. Por exemplo, nós fazemos um filme e mandamos produzir os dvd’s. A venda dos dvd’s é sempre um fundo para a produção do próximo filme. Há sempre um fundo de maneio que vai circulando de filme para filme. Um filme para o outro. Há um trabalho coletivo de todos. Tanto da parte de produção como da parte dos atores. Os próprios atores são veículos de divulgação e comercialização desses dvd’s.
Em termos percentuais o que é que isso representa para os filmes que o Júlio tem estado a produzir? É mais de metade daquilo que é o orçamento?
Sim. As pessoas têm gostado muito desse trabalho. É um tipo de cinema de baixo custo, dirigido, falado e trabalhado para o povo. Os orçamentos são dentro da realidade moçambicana e dentro daquilo que é possível. Nós não temos sonhos de Hollywood, nem capacidade para chegar a Hollywood. Somos muito realistas em relação ao que temos.
Esta é uma forma de contornar o streaming?
Exatamente. Eu nunca pensei no mundo americano, penso sempre na minha realidade. É assim que nós trabalhamos ao nível de tudo. Se não formos dentro da nossa realidade vamos ficar frustrados para o resto da vida.
Isto também é extensivo à música?
Sim, na música também é a mesma coisa. Eu via os Splash [banda cabo-verdiana de zouk] e eles ganhavam dinheiro com a venda dos próprios discos. Gravavam, mandavam fazer e punham lá.
Mas hoje com o Spotify e outras plataformas, como é que funciona?
As coisas começam a complicar. Mas em Moçambique ainda temos a utilidade dos dvd’s porque as pessoas não têm megas para baixar filmes. Todo o mundo quer ter o seu dvd para ver com a família e amigos. E vamos tendo essa vantagem. Talvez, daqui por uns anos a Internet pode ficar acessível para toda a população e aí vamos ter de estudar outras formas de sobreviver.
Em relação a Cabo Verde, o filme que vai avançar tem alguma ligação com este livro?
O filme que vou fazer lá tem ligação a um outro livro. Eu vivi em Cabo Verde durante 6 anos. Bebi muito da cultura deles, fui professor lá, ajudei a criar o Festival Baia das Gatas e era uma pessoa muito ativa. É nessa base que criei a história de um poeta que é preso uma semana antes do 25 de abril.
Como é que se chama?
O filme chama-se “O Poeta da Ilha”. O filme vai ser rodado em Portugal e em duas ilhas de Cabo Verde: São Vicente e Santo Antão. (MM)