Manuel Matola
A deputada Joacine Katar Moreira vai propor esta semana uma nova alteração ao Código de Processo Penal numa matéria que tem forte impacto sobre pesoas negras, racializadas e especialmente sobre a imigração irregular. A proposta irá incidir sobre o artigo 202 do Código do Processo Penal, pelo que a parlamentar explica ao Jornal É@GORA qual o seu objetivo e a sua visão futura sobre o conjunto de leis que regulam o processo penal português. “O que nós desejamos é eliminar a alínea f), que se refere à prisão preventiva de indivíduos que eventualmente se encontrem em situação irregular e que tenham provavelmente entrado ilegalmente no país”, diz Joacine Katar Moreira a propósito de um segundo projeto de lei que apresenta este mês à Assembleia da República.
O que pretende com a alteração do Código do Processo Penal?
Nós estamos numa época, devido a todos os acontecimentos, em que o racismo é uma temática que já está a ser melhor acolhida institucionalmente. E este Executivo tem estado a mostrar algum envolvimento e, digamos, algum investimento no que diz respeito ao combate ao racismo e a todas as formas de discriminação. É hora de alterarmos a Legislação, ou melhor, melhorarmos a Legislação. Torná-la uma Legislação antirracista, e é esse o meu objetivo desde a eleição. Durante a campanha eu anunciei isto e, neste último ano, consegui com iniciativas legislativas e nas negociações do Orçamento do Estado que o Executivo efetuasse uma campanha nacional a qual eu dei o nome de “Pacto Antirracista na Sociedade Portuguesa”. Foi uma iniciativa legislativa aprovada por uma enorme maioria. Portanto o único partido que achou que não era necessário uma renovação de um “Pacto Antirracista na Sociedade Portuguesa” foi o partido de André Ventura. Todos os outros partidos votaram favoravelmente. Era uma iniciativa que tinha como objetivo uma campanha nacional antirracista e especialmente nos órgãos de comunicação social no âmbito do financiamento dos 15 milhões de euros que o Estado iria investir nos órgãos de comunicação social. A seguir, ainda no âmbito do Orçamento do Estado, eu fiz uma proposta de criação de um Observatório do discurso de ódio, do racismo e da xenofobia. E também foi aprovada por maioria. Entre outras iniciativas relacionadas com a lei da nacionalidade relacionadas com o apoio social às famílias mais carenciadas, relacionadas também com um investimento maior em equipas de saúde mental comunitárias, mas nos bairros desfavorecidos e suburbanos. Estas medidas legislativas, nomeadamente esta alteração ao Código Penal e ao artigo 250, estão enquadradas numa ótica de maioria da legislação antirracista e de medidas antirracistas. Não será a única. Nós ainda iremos efetuar outras melhorias ao Código Penal. Iniciamos pelo artigo 250. Vamos incidir a nossa ação legislativa no artigo 202, mas igualmente no Código do Processo Penal.
Estas propostas de alterações legislativas não teriam um melhor enquadramento naquilo que também foi uma das lutas que na altura anunciou: a criação ou existência de uma lei contra o racismo?
Sim, mas não há uma maneira de nós termos uma única lei contra o racismo.
Porquê?
Porque os efeitos do racismo são interseccionais nas várias áreas da nossa existência. Desde o ensino, à justiça, à saúde e educação. As medidas que neste exato momento estou a efetuar são medidas antirracistas, é melhorar a legislação antirracista.
Comecemos pelo artigo 250. Há quem entenda que a proposta que a deputada está a fazer é limitante no sentido em que olha apenas para um grupo social – os racializados – e não para outro grupo social. Concorda?
Não, de maneira nenhuma. A ideia é desracializar o artigo 250 porque da maneira que está acaba por racializar alguns crimes, nomeadamente, quando se vai referir às pessoas que se encontrem em situação irregular no país ou que tenham entrado ilegalmente no país. Que é a alínea usada, geralmente, para revistar de uma maneira às vezes bastante coerciva os negros e negras em qualquer circunstância. Portanto, o que o artigo 250 diz é que as forças de segurança podem parar um indivíduo,interrogar-lhe e pedir a identificação se eventualmente recaírem sobre o indivíduo suspeitas de crimes, entrada ilegal no território nacional. Geralmente, o que as forças de segurança fazem é abordar os negros e as negras independentemente das circunstâncias e de terem nascido em Portugal, terem nacionalidade, estarem de forma irregular em Portugal. Mas como é um artigo que induz a uma caracterização física de um eventual imigrante, de um eventual indivíduo em situação irregular que é geralmente associado a um indivíduo de origem africana, portanto, é uma lei que tem estado a ser usada sucessivamente para parar e revistar pessoas racializadas. Mas não é só parar, revistar e interrogar pessoas racializadas, é, às vezes, usar violência, abordagens agressivas, revistas intimidatórias e humilhantes à frente de toda a gente em determinadas circunstâncias onde não se justifiquem a suspeita de um crime.
Esta situação remete-nos também para uma discussão relativamente aos apátridas. Apesar de não serem um grupo social que se assume como tal – existem cidadãos que nasceram cá e não têm nacionalidade portuguesa por causa dos atrasos da administração pública, como não têm a nacionalidade do país de origem dos seus pais -, há aqui uma relação que se pode estabelecer entre o artigo que está a falar e este grupo social?
Há uma conceção de identidade nacional e de indivíduos que são nacionais que está relacionada com características de um indivíduo. Raramente a polícia para um indivíduo branco por suspeitas de imigração ilegal. E isto também significa algo. Continua a existir e persistir a ideia da pessoa negra como uma pessoa estrangeira, a pessoa negra como um corpo estranho à nação. Dai que a eliminação das suspeitas das práticas de crimes fundadas ou pendência de um processo de extradição ou expulsão. E a seguir o artigo 250 também diz sobre o cidadão “que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou haver contra si mandato de detenção”.
É muito subjetivo?
É. Mas basicamente orienta o indivíduo, orienta a polícia criminal para indivíduos com determinadas características. Aquilo que eu sugiro é que se elimine nesta legislação a parte que diz “de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional” porque isto é pintar o sujeito. Como diz o advogado José Semedo, “é pintar o sujeito de negro”. Portanto, quando se diz que é a identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, isto pode ser qualquer indivíduo, isto não racializa o indivíduo. Mas esta parte onde se fala de imigração ilegal racializa o indivíduo. Nós temos fronteiras nacionais, temos o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que hoje em dia já irá ter a parte administrativa separada da parte policial. Nós temos mecanismos para detenção e identificação de imigração irregular. Não se pode abrir alas para que uma legislação origine práticas como o racismo e a xenofobia.
Relativamente ao Artigo 202, o que pretende exatamente e quando é que vai avançar com a proposta?
Nós iremos avançar com ela ainda esta semana. É um artigo do Código do Processo Penal que é especificamente sobre a prisão preventiva. O que nós desejamos é eliminar a alínea f), que se refere à prisão preventiva de indivíduos que eventualmente se encontrem em situação irregular e que tenham provavelmente entrado ilegalmente no país. Está um bocado relacionada com esse (artigo 250 do Código do Processo Penal), mas isso é completamente ilegal.
Porquê?
Porque colide com diretivas da União Europeia e isso já não é necessariamente implementado por Portugal, daí a existência de Centros de Instalação Temporária, nomeadamente, nos aeroportos, que é uma forma de não se cumprir a tal alínea f) que é ilegal. Só que é uma alínea que continua (no dispositivo legal). Nós, basicamente, desejamos que haja uma atualização da legislação porque essa alínea f) já é ilegal. A União Europeia considera isso, mas ela continua no nosso Código de Processo Penal. Então, nós vamos eliminar isso, porque não se pode encarcerar indivíduos por suspeita de imigração ilegal.
Essas iniciativas e a sua divulgação irão enquadrar-se na Campanha Nacional Antirracista nos “Media”, que será extensiva às escolas, universidades, aos serviços públicos e junto das forças de segurança em Portugal?
Isto está tudo inter-relacionado porque nós estamos a viver na mesma sociedade. Uma alteração ao Código Penal e ao Código Processual Penal são alterações significativas e de uma importância enorme e isto incide na existência quotidiana de milhares de indivíduos. Portanto, na minha ótica, eu enquanto mulher negra, feminista; na ótica do feminismo interseccional, mas na ótica também de ativista antirracista e, portanto, negra é também uma ótica interseccional, (acho que) todas as coisas acabam por se relacionar umas com as outras. O facto de um indivíduo negro ter hipótese de caminhar livremente sem ter receio de ser interpelado de forma indiscricionária pelas autoridades é dar uma liberdade que os outros indivíduos já têm: que é o de que, se o indivíduo não fez nada de errado, não cometeu nenhum crime, não cometeu nenhum ato ilícito, possa circular livremente sem ver a sua imagem tentada, sem revistas humilhantes apenas pela sua cor da pele. Isto vai ter um impacto enorme na maneira como nós nos vamos movimentar, na maneira como nós vamos afirmando a igualdade de tratamento. (Exemplo, no domingo à noite) circulou um vídeo que está viral (e que mostra) um indivíduo branco sentado numa esplanada a observar há meia hora dois polícias a abordar um indivíduo afrodescendente dizendo que ele não tinha que estar aí, tinha que se ir embora, a pedir identificação, a ameaçar multa-lo à frente de uma série de pessoas que estavam no mesmo espaço a usufruir um belo dia de Sol numa esplanada. Então ele filmou aquilo e foi falar com os agentes e perguntou-os porque é que só estavam a abordar esse indivíduo (negro) e não estavam a abordar nenhum outro. É isso que nós desejamos evitar. E o que esse artigo 250 faz é abrir alas para atitudes discriminatórias e racistas. E a minha proposta quer exatamente reformular esse artigo, eliminar algumas partes, de modo que a polícia criminal possa efetuar o seu trabalho mas de uma forma a que ela dê tratamento igualitário a todos os indivíduos. (MM)