Mariana é apátrida. Já pode sonhar com um título de viagem, mas…

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Manuel Matola

O governo português vai passar a conceder título de viagem em formato eletrónico a pessoas apátridas que vivem legalmente em Portugal, onde oficialmente existem 35 indivíduos nessa condição, embora 553 pessoas se tenham declarado como apátridas no Censo de 2011.

Na sexta-feira, entrou em vigor um diploma que altera pela nona vez a Lei de Estrangeiros em Portugal, com uma novidade relacionada ao Estatuto de Apátrida: a de as autoridades migratórias portuguesas passarem a conceder um título de viagem, um documento em formato eletrónico que permite que pessoas que estão nessa condição de apatridia, parte delas desde 1981, bem como os refugiados, que residem legalmente em Portugal, possam viajar a nível mundial, porque passam a ter direito ao estatuto de proteção subsidiária.

No âmbito dos novos fluxos migratórios para Europa, que ditou a chamada crise de refugiados de 2015, diversos Estados-membros da União Europeia têm vindo a adotar mecanismos de proteção internacional para ajudar pessoas que não estão seguras em seus próprios países, protegendo seus direitos humanos fundamentais.

Entre vários mecanismos está o da proteção subsidiária que, segundo a Diretiva 2004/83/CE, do Conselho da Europa, de 29 de abril, corresponde a um estatuto conferido a alguém de um país fora da União Europeia ou que não tem nacionalidade, que não pode ser considerado refugiado. No entanto, há razões para acreditar que essa pessoa estaria em perigo real se retornasse ao país onde nasceu ou costumava morar. Essa proteção é oferecida quando há um risco real de a pessoa sofrer sérios danos, mas não a quem tenha cometido crimes no país de onde provém.

Esta prerrogativa de proteção resulta da aprovação no Parlamento, em junho último, de um projeto de lei apresentado ano passado pelo partido Livre que visou rever o Estatuto de Apátrida.

O deputado único do Livre, Rui Tavares, lembra, na sua iniciativa legislativa, que “embora o Estado Português tenha aderido em 2012 à Convenção Relativa ao Estatuto dos Apátridas, adotada em Nova Iorque em 28 de setembro de 1954, a lei portuguesa não consagra expressamente esse estatuto, nem prevê o modo como pode ele ser reconhecido, ainda que lhe atribua direito”.

Até 9 de novembro, a Assembleia da República vai aprovar a regulação deste reconhecimento do estatuto de apátrida, com base na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 28 de setembro de 1954, anunciou há dias o LEXPOINT, uma empresa que exclusivamente se dedica ao desenvolvimento de produtos e soluções de informação jurídica.

Conforme o disposto no Artigo 27.º da Convenção de 1954, as pessoas apátridas que não possuam documento de viagem válido têm direito a documentos de identidade, assegura a consultora Ana Sofia Barros, autora do relatório para Mapeamento da Apatridia em Portugal, país onde a concessão de uma autorização de residência seria possível à luz do Artigo 84.º da Lei da Imigração, que “substitui, para todos os efeitos legais, o documento de identificação.”

Porém, assinala a pesquisadora, “o regime da imigração não contempla a emissão de autorizações de residência com fundamento na apatridia”.

Desmistificando a situação portuguesa dos Apátridas

Em Portugal, os apátridas são sobretudo cidadãos afrodescendentes cujos sonhos foram interrompidos após a mudança da Lei da Nacionalidade de 1981 – (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro) – os empurrar para a lista do grupo populacional impossibilitado de obter passaporte convencional por não ser nacional de nenhum país.

O percurso de vida da Mariana, que nasceu em Angola e se mudou para Portugal com a sua família aos 17 meses, sem uma certidão de nascimento ou outros documentos de identificação que a ajudassem a confirmar a sua nacionalidade angolana, difere apenas em detalhes históricos, mas a sua condição jurídica assemelha-se a de 553 pessoas que no Censo de 2011 se identificaram como apátridas.

O caso da angolana revela a verdadeira face da apatridia em Portugal, um país que “não está ausente da temática da apatridia como um problema social a ser resolvido no mundo”, segundo escreve Cintia Pereira Cardoso na sua tese de mestrado em que questiona se “A alteração à Lei da Nacionalidade [em 2020]” [é] “uma solução para a apatridia na comunidade de ascendência PALOP em Portugal?”.

Quando atingiu a maioridade, Mariana teve que abandonar a prática de desporto de competição por falta de documentos de identidade. Mas antes viu um dos sonhos ficar totalmente desfeito:

“Quando era criança, matriculou-se no ensino básico numa escola da Cruz Vermelha (ensino privado) em Portugal, e posteriormente foi transferida para uma escola pública. Nesta altura o seu histórico académico não foi reconhecido devido à falta de certificações e/ou comprovativos escolares e teve que reiniciar toda a sua trajetória escolar. Este processo tornou-se desmoralizante e nunca se matriculou no ensino secundário”, segundo o relatório de 2019 da agência da ONU para os Refugiados, ACNUR, citado na dissertação de mestrado de Cíntia Pereira Cardoso.

A autora aponta o impacto da condição de apatridia também na vida de Armando, um são-tomense que um dia viu recusado o atendimento hospitalar público em Portugal por ser juridicamente inexistente tornando-se num “caso do ideal conceito de ‘civicídio'” de Chidi Anselm Odinkalu, ou seja, quando “uma pessoa é ‘morta’ no sentido de impedi-la de existir como pessoa perante a lei”.

Segundo o documento de ACNUR, citado por Cíntia Pereira Cardoso na dissertação de mestrado pelo ISCTE, Armando veio de São Tomé e Príncipe em 1972 e era portador de um bilhete de identidade português com a indicação “nacionalidade: cabo-verdiano”.

Mas, “devido a esta ambiguidade não conseguiu obter um passaporte [e] ficou sem qualquer prova da sua nacionalidade nos anos seguintes. [Um dia adoeceu e ao] Armando foi recusado o atendimento hospitalar público em Portugal e só pôde receber assistência médica graças à boa vontade e apoio do seu senhorio, que provavelmente se prontificou a acompanhá-lo e a pagar a assistência”, lê-se no relatório para o Mapeamento da Apatridia em Portugal elaborado, em 2018, pela Representação Regional para a Europa do Sul do ACNUR.

“De acordo com o mais recente Censo em Portugal, de 2011, declararam ser apátridas 553 indivíduos. Um olhar para a distribuição desta população por grupos etários revela que o número mais elevado de pessoas apátridas se verificou no seio daqueles que nasceram entre 1972-1976 (100 pessoas), e entre 1977-1981 (76 pessoas)”, refere o documento da Agência das Nações Unidas para os Refugiados, que teve consultoria da investigadora Ana Sofia Barros.

No capítulo do relatório de 2018 em que conta uma “Breve ‘História’ da Apatridia em Portugal”, o ACNUR diz que o número de indivíduos residentes em Portugal que declararam ser apátridas “fora superior em censos anteriores”, ainda que “os dados possam não ser totalmente exatos, visto serem baseados na perceção dos indivíduos em relação ao seu próprio estatuto de nacionalidade”.

Por exemplo, no Censo de 2001 pelo menos 1.075 pessoas declararam estar na condição de apatridia em Portugal. No entanto, em 1991, o número foi maior: 19.698.

Em 1981, ano em que o Censo indicou a existência de 1.175 apátridas, segundo o ACNUR, foi também o ano em que se considera o do início da ocorrência de “uma injustiça histórica” contra os cidadãos afrodescendentes, pois, com a entrada em vigor da Lei da Nacionalidade, o Estado português “passou a valorizar” o princípio do jus sanguinis restringindo o acesso à nacionalidade pelo princípio do jus soli, “gerando impactos negativos, sobretudo em relação aos filhos de imigrantes irregulares de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) cuja a nacionalidade não tenha sido reconhecida por nenhum Estado nessa altura”, lembra Cíntia Pereira Cardoso.

Citando diversas fontes, no seu estudo, a pesquisadora brasileira coloca em causa os dados estatísticos sobre os apátridas existentes no território português.

“De acordo com as estatísticas nacionais do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), no ano de 2019, Portugal contava apenas com 35 apátridas”, diz a autora que contou, ano a ano, quantos apátridas foram reconhecidos oficialmente de 2000 a 2019.

Cintia Pereira Cardoso notou que “a recolha de informação oficial fiável acerca da apatridia em Portugal é comprometida devido à inexistência de um procedimento específico para a determinação da apatridia, o que implica ser necessário analisar as estatísticas oficiais do SEF com cautela e crítica”.

E exemplifica: “No ano de 2011, segundo os dados do SEF, existiam apenas 13 pessoas apátridas o que não condiz com as respostas dadas aos Censos 2011, onde 553 pessoas identificaram-se como apátridas quando perguntadas acerca da sua nacionalidade. Para além destes dados, não existem mais dados oficiais portugueses que nos forneçam uma visão mais abrangente da população apátrida”.

Cíntia Pereira Cardoso acautela: “Também não podemos supor que os números vão diminuindo porque as pessoas apátridas conseguiram adquirir a nacionalidade portuguesa, tendo em conta que apenas uma pessoa apátrida conseguiu se naturalizar portuguesa no ano de 2012”.

Apátridas no Mundo

De acordo com dados Institute on Statelessness and Inclusion (ISI), no final de 2021, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados contabilizou 4,3 milhões de apátridas no mundo, mas a agência da ONU estima que o número real possa ser superior a 10 milhões.

Comparativamente ao número de outros quadrantes do mundo, os 553 indivíduos que se declararam apátridas em Portugal são “um número diminuto”, considera Cíntia Pereira Cardoso que para identificar “as oscilações” dos dados sobre a apatridia em Portugal procurou, sem sucesso, “entrar em contato por e-mail com o Gabinete de Estudos do SEF no dia 23 de Maio de 2021”.

A autora assegura: “Contudo não obtive resposta. Ainda assim, foi possível encontrar uma reflexão sobre este dado no relatório de Mapeamento da Apatridia em Portugal elaborado pela ACNUR com consultoria da investigadora Ana Sofia Barros em 2018”, que admite a existência de números “consideravelmente maior” caso as estatísticas fossem corretas.

“Pode, portanto, defender-se que, caso existisse um PDA [Procedimento para a Determinação da Apatridia] em Portugal, e caso estes 553 indivíduos tivessem a oportunidade de recorrer ao mesmo, a dimensão da população apátrida em Portugal seria consideravelmente maior`”, diz Ana Sofia Barros no estudo feito em 2018 para a agência da ONU para os Refugiados.

De acordo com o Mapeamento de Apatridia em Portugal, em 2016 havia pelo menos 184 indivíduos na condição de apatridia detidos nas cadeias portuguesas, um número que subiu para 196, em 2017.

Do universo dos detidos em 2016, pelo menos 50 era consideradas pessoas “irretornáveis”. Um ano depois, havia mais de uma dezena nessa condição, ou seja, 66 detidos “irretornáveis” porque, a nível mundial, não existe, de facto, um vínculo jurídico entre estes indivíduos e um Estado que os tenha como cidadãos da nação. (MM)

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