Moram numa casa pequena…

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Sérgio Raimundo, Escritor
São quatro irmãozinhos e a mãe é sempre a última a dormir e a primeira a levantar-se; na verdade trata-se de uma técnica que adopta para ter a casa maior. Um corpo deitado é um objecto que ocupa mais espaço, talvez seja por isso que os cemitérios têm corredores estreitos. O pai dos meninos, que trabalha na Vila do Rei, liga todas as manhãs para saber como eles estão e a resposta é sempre a mesma: “querido, continuamos apertados aqui”. E ele sabe que saiu e deixou a família apertada, ele sabe que trabalha para desapertar a família, mas sempre quando liga espreme pelos lábios: “como estão?”.

E eles confinados e apertados continuam dentro da casinha. Pelas manhãs, ao acordar, é já hábito vê-los procurando pedaços dos seus corpos; isso porque pela falta de espaço na casinha, cada um deixa as partes do corpo onde parece existir um vazio. É comum nesta casinha encontrar os pés sobre a mesa, os braços no cabide do guarda-fato e o peito sobre as escadas. Ao acordar a primeira coisa que a mãe faz é vasculhar os pedaços dos filhos em todos cantos da casinha; completa-os um a um e surgem como esculturam nascendo do barro.

Quando chega a hora das aulas online, os três irmãozinhos são distribuídos pelos cantos da casa; o primeiro é encostado no frigorífico que serve de armazém de sapatos, o segundo estendido nas escadas como um passo esquecido e o terceiro sobre a tampa da pia imaginava uma carteira da escola. E todos acompanham as aulas. É verdade que as suas vozes, de quando em quando, chocam-se na casinha e os objectos que a mãe arruma baralham os seus cálculos e acrescentam sílabas nas palavras que aprendem a dividir. Mas mesmo assim estudam…

São três irmãozinhos que a mãe vê-os como pilares da grande casa do futuro que levantam nos livros. E eles têm muito espaço para aprender, mas não têm espaço onde aprender.

As escolas continuam fechadas e os três meninos vão dividindo o pouco espaço que ainda resta, o espaço que pertence ao pai que trabalha na Vila do Rei. É uma toca, um buraco onde vive gente, por isso é chamado de casa. (Deixemos de lado o aspecto de um cárcere de confinamento que esta toca tem). É uma casa feita de gente.

Os filhos estudam pelos computadores que inundam a casa toda, a mãe sobrepõe os objectos todos, cava com as mãos um espaço, dentro desse confinamento que não cabe na casinha, para os filhos divertirem-se. As aulas terminam, um dos filhos informa que não conseguiu participar das aulas porque o seu computador desligava-se constantemente, a mãe inventa uma solução para não encher a pequena casinha de preocupação: “amanhã vais usar o computador de um dos teus irmãos”. E o celular toca e quando atende-o ouve a voz do marido sempre apertada pela pressa: “como estão?”.

Moram numa casa pequena que se segura nas suas próprias paredes por não conseguir confinar tanta gente. Do nada, a casinha começa a aquecer, rastos de fumo empurraram-se no buraco que serve de janela, a mãe dos meninos pega no celular para chamar os bombeiros, mas descobre que é o fogão que se esqueceu de apagar quando preparava o almoço.

Ao entardecer os miúdos, um a um, são cuspidos pela pequena casa e surgem na rua como se saíssem de uma lâmpada de Aladim. Correm na rua porque o único parque que têm foi cadeado por fitas e ninguém pode lá entrar. Sobre a passadeira fitam os carros que vêm correndo e pouco se importam com o vermelho dos semáforos que lhes tira do campo. Estão confinados, mas anexam a rua à sua casa. Brincam na rua porque eles estão apertados e esquecem-se que moram numa casa pequena.(X)

 

 

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