O café bem quente do Jawad…

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Sérgio Raimundo, Escritor
Chegou na pequena casa onde vivemos com as costas carregadas por uma serra de pastas, a máscara suja e humedecida pelo silêncio caía aos poucos como sutiã de alças gastas; e ele erguia a máscara com a ponta da língua.

A senhoria defecava queixas em todos cantos da casa enquanto corria atrás do gato que arrastava um pequeno pano de mesa. Entrou, ergueu-se no meio das escadas e deixou transparecer em seus olhos possuídos de incertezas as pequenas luzes que piscavam na pequena árvore de Natal. A senhoria recebeu-lhe empurrada com toda a delicadeza da renda mensal e enfiou-lhe num dos quartos da casa. Um quarto minúsculo com latas de tinta velha colorindo o tempo, ferramentas de carpintaria raspando as arestas do escuro e uma enorme mesa onde ratos amontoavam o alho picado dos seus excrementos. Entrou no quarto, endireitou a coluna e testou com a mão o colchão que era do falecido primo da senhoria.

Assim se instalou Jawad em nossa pequena casa. Dia seguinte, com pouca delicadeza, a senhoria foi mostrando ao jovem o funcionamento improvisado do pescoço do autoclismo da pia, a maneira engenhosa de calar os pingos infinitos da torneira da cozinha e a técnica de deixar tudo limpo depois de usar, apesar de tudo possuir tatuagens de sujidade e velhice.
(Veja só o soalho da casa, meu Deus, parece ter sido o corredor por onde saíram os últimos fantasmas da idade média, no tecto pombos no meio de arrulhos reproduzem-se, as panelas viciadas em ficar sujas, as colheres com as colunas deformadas, tudo velho nesta casa, meu Deus).

Chegou na pequena casa onde vivemos com as costas carregadas por uma serra de pastas e aos poucos endireitava as costas quando se sentava para tomar o seu café bem quente na cozinha. Jawad conversava com a senhoria, contava a história dos seus pais assassinados na Síria, no meio da sua respiração tentava resgatar a irmã que decidiu esconder-se no poço para não ser morta. E a cada episódio, Jawad tomava o seu café bem quente. A senhoria diluída em “Nossa Senhora” ia espreitando Jawad debaixo dos seus óculos. Quando Jawad terminava o café, terminava as suas canções de horror a senhoria saía mais velha da cozinha: com poucas palavras, com o avental sujo de tremor das mãos, as placas tectónicas das suas bochechas deslocavam-se para o queixo, adivinhava os caminhos pelas bengalas das paredes e sentava-se contando as filas de cabeços brancos que lhe explodiam na cabeça.

Jawad foi relatando a sua peregrinação de terror pela Turquia, Grécia, Macedónia, Suécia e Hungria. E falava dos tiros que mataram os pais enquanto o coração disparava-lhe de dor. E tomava o café bem quente. A estátua insuportável da senhoria ainda ouvia o Jawad enquanto esperava para ser colocada e exibida no museu das “Nossa Senhora”. Jawad atira a cada dia todas as lembranças para o poço onde a irmã gulosa tomava a morte em quilolitros de água. Jawad tentava andar devagar, subia as escadas devagar, pois o seu coração palpitando rápido assustava-o, lembrava-o os tiros que fuzilaram os seus pais. De instantes a instantes escondia-se quando sentia o revólver do seu coração disparando.

E Jawad teve sorte, talvez a mesma que o fez atravessar fronteiras com a serra de pastas às costas, a mesma sorte que o trouxe a Portugal para se esconder sem se meter no poço com a irmã. Teve sorte e hoje trabalha numa lavandaria da cidade. E ele toma o seu café bem quente na cozinha com os coros da senhoria. A senhoria aplaude os cafés do Jawad com os “Nossa Senhora”. E Jawad vai empurrando com rajadas de café as suas amarguras.

Teve sorte e hoje trabalha numa lavandaria. Lava lençóis de hotéis e pensões onde pessoas normais dormem e sonham. De quando em quando encontra nos lençóis espinhos de sonhos, restos de sorrisos e leva-os para acompanhar o seu café enquanto a senhoria, de mãos enterradas nos bolsos do avental, canta as “Nossa Senhora”. Jawad engole em gomos enormes a sua amargura e a senhoria abana a cabeça como adepto festejando drible de um futebolista.

Na manhã de hoje disse a senhoria que gostava tanto de esquecer os caminhos que lhe trouxeram a Lisboa, esquecer os cadáveres dos pais que teve de enterra-los no quintal, o poço que teve de tapar com uma tábua para o corpo da irmã apodrecer com dignidade, esquecer tudo e tomar o seu café bem quente sem nenhuma amargura para engolir, sem nenhuma lágrima para afinar as cordas do “Nossa Senhora”. Jawad chegou na pequena casa onde vivo com as costas carregadas por uma serra de pastas, mas aquilo não era uma serra de pastas, era uma corcunda enorme com jazigos de gritos e amargura. (X)

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