Manuel Matola
O filósofo brasileiro Paulo Arantes ironizou o comportamento dos assassinos do imigrante Moïse Kabagambe morto à paulada por reivindicar ordenado, considerando que se um sobrevivente nazi que atuou nos campos de concentração visse o que fizeram com o congolês no Brasil “ficaria chocado”.
“Se eu fosse cínico, eu diria o seguinte: imagina um sobrevivente nazista que atuou nos campos de concentração vendo o que fizeram [há dias no Brasil] com o imigrante congolês. Ele ficaria chocado. Diria: não, nunca fizemos isso! Nós matávamos com um gás produzido pela melhor indústria química do período [mas] sem dar paulada em ninguém”, brincou o pensador marxista brasileiro.
O imigrante congolês, que vivia na cidade brasileira de Rio de Janeiro desde 2011, foi espancado até a morte em plena luz do dia após ir ao quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, um bairro nobre da Orla carioca, para cobrar duas diárias que estavam atrasadas.
Comentando com sarcasmo o comportamento violenta dos assassinos, Paulo Arantes remeteu a uma hipotética leitura de um sobrevivente nazi que eventualmente diria o seguinte.
“O máximo que nós poderíamos fazer era eliminar no caso judeu, ou comunista, ou retardados mentais ou o que fosse, qualquer um que tivesse ficado para trás no progresso um tiro na nuca, mas que tinha que ser bem dado. Então nós recrutávamos bons atiradores que soubessem liquidar alguém à beira da cova com um tiro na nuca. Mas nunca matamos ninguém à paulada deste jeito. O que confirma a nossa posição de raça superior diante dessas coisas que só ao africano ou aos afro-brasileiros fazem” hoje no Brasil, gracejou.
A repercussão internacional da morte do imigrante congolês levantou reflexões importantes à sociedade brasileira, como a xenofobia e, principalmente, o racismo estrutural persistente num país onde 56% da população é negra, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Paulo Arantes conversou há dias com o também filósofo, ator e escritor brasileiro Fábio Alexandrelli, autor do programa “Além Fronteiras”, um espaço da Rádio Movimento Portugal Online que divulga pensamentos de figuras de Portugal e do Brasil para o mundo.
Um dos temas abordados foi o fluxo migratório que se precipitou sobre a Europa desde 2014/5 com a crise migratória deflagrada, sobretudo, a partir da guerra civil na Síria, país do Oriente Médio.
Socorrendo-se da análise feita pelo cientista político búlgaro Ivan Krastev que expressou o seu pensamento sobre o potencial risco de fracasso do futuro da União Europeia no livro “After Europe”, que também aborda as novas dinâmicas migratórias, o filósofo e pensador brasileiro afirmou que, apesar de haver “muito amotinamento” de cidadãos migrantes no espaço europeu, neste continente “não há revolução em curso” decorrente da imigração que se precipitou sobre a Europa desde 2014/5.
Paulo Arantes lembrou que a grande crise migratória resultou na entrada de mais de um milhão de pessoas na Europa que tinham sido inviabilizados pela globalização.
Mas parte considerável destas pessoas são imigrantes climáticos, cidadãos que fogem à perseguição política, à fome e que vêm à procura de melhorar a vida no continente europeu, lembrou.
Citando o pensamento do estudioso búlgaro, Paulo Arantes assinalou que não há revolução em curso” na Europa “sem que haja nenhuma turbulência revolucionária percorrendo o mundo [mesmo notando-se que] há muito amotinamento, há muito protesto que terminam em tiros e balas”.
Esclarecendo o pensamento do autor do “After Europe”, considerado um dos mais conceituados analistas políticos da atualidade, Paulo Arantes disse: “Esse tipo de sociedades, a europeia e a americana, nas quais não rola nenhum tipo de processo revolucionário deflagrou um processo antirrevolucionário contra a imigração. O inimigo, ou subversivo, a ameaça do momento chama-se o imigrante, qualquer que seja a sua reivindicação – seja refugiado, ou imigrante económico comum, seja um trabalhador imigrante contratado por uma empresa – ele passou a ser inimigo porque estas sociedades temem àquilo que elas chamam de a grande substituição da sua população por uma outra”.
“Só que cinicamente” – prossegue Paulo Arantes lembrando a leitura sociológica de Ivan Krastev- “a revolução do nosso tempo não é que as pessoas queiram mudar a sociedade, mas querem mudar de sociedade”.
E exemplifica: “Imagina a energia de uma família ou de uma pessoa sozinha que sai lá das montanhas do Afeganistão, atravessa à pé o Oriente Médio, a Turquia, a Grécia, entra na Europa, cruza Alemanha para atravessar o Canal da Mancha e chega na Inglaterra um ou dois anos depois e mesmo assim seja deportado. Essa energia está movendo o mundo e contra ela existe uma contrarrevolução em movimento. Só que, diz [Ivan Krastev], esta energia que para nós seria uma energia social explosiva é de quem quer mudar de sociedade e não mudar a sociedade”.
Na verdade, “ele [o imigrante] quer se integrar na(s) sociedade(s) inglesa, alemã, francesa [no entanto] ele quer mudar de sociedade. Segundo [o politólogo Ivan Krastev], isso é o que está movendo o mundo. Não é a transformação da sociedade”, como apregoam as correntes da extrema-direita.
Para o pensador marxista brasileiro Paulo Arantes a inversão dessa situação visando “canalizar essa energia de mobilidade” passa por uma busca de resposta por parte dos partidos de Esquerda ideológica.
“Então a pergunta que fica para quem é de Esquerda é: como é que eu posso canalizar essa energia jamais vista [se não apenas] nos grandes momentos revolucionários na França, no século XVIII; na Rússia, na segunda década do século XX?; como é que nós poderemos (re)calibrar e transformar, encontrar – não é capturar, não é manipular, dirigir – a forma de canalizar essa energia de mobilidade em energia transformadora, porque eles [os imigrantes] chegando nesses países de destino muitos realizam o sonho e se encaixam nessas sociedade de produção e consumo. A maioria, 90%, não se encaixa. Torna-se pária quando consegue ficar e não é deportado. E são esses párias que são os novos pobres do mundo concentrados nas metrópoles, portanto, toda a periferia do mundo está concentrada nas chamadas cidades globais [como] Londres, Nova Iorque, Paris, Berlim”.
“A periferia está dentro da Europa” – Paulo Arantes
O estudioso brasileiro lembra que nas grandes cidades ocidentais não só se nota a concentração de imigrantes como também de descendentes destes imigrantes.
“Os islâmicos radicalizados estão na Bélgica, França, Espanha. Não estão nos seus países de origem. Só que, digamos, explodir outras pessoas não é propriamente uma ação revolucionária. É outra. Mas a energia que leva a (se) explodir, porque eles são kamikazes, em última instância, é a mesma energia que os fez atravessar o mundo. Só que esses novos radicais não atravessaram o mundo nasceram lá [na Europa, onde] eles são periféricos dentro dos seus próprios países: eles são espanhóis, franceses e belgas, só que são cidadãos de segunda categoria”.
E por serem colocados nessa posição social, “aí eles são comandados por estratégicas políticas que têm como base a busca de canhão. Por exemplo, para o caso francês, eles querem provocar uma guerra civil na França matando árabes contra árabes, fazendo com que aqueles que sintam indesejados massacrando e oprimidos e provoquem uma reviravolta na França”, prossegue Paulo Arantes.
“Submissão”
A compreensão do fenómeno migratório numa Europa onde cresce o radicalismo de direita é também interpretada pelo filósofo brasileiro através da interpretação do livro do escritor francês Michel Houellebecq, autor do romance “Submissão” no qual “ele ironiza à respeito disso”.
“O romance ´Submissão` mostra como um muçulmano moderado na França – existe e acontece, a maior deles são moderados – ganha as eleições à extrema-direita”, diz Paulo Arantes, discorrendo o seu pensamento sobre o essencial de uma obra repleta de criatividade em torno da sujeição da sociedade francesa a um presidente islâmico “que abdica de exercer o poder diretamente, mas só exige uma coisa: o controlo do Ministério da Educação” com o impacto direto sobre os vários quadrantes da sociedade.
Primeiro, “as mulheres não trabalham mais, voltam para casa. Então, quando as mulheres saem do mundo do trabalho, aumenta o emprego. A Educação é subsidiada pelos xeques árabes que nadam em petrodólares. O PIB da França cresce. Ele [o Presidente] institui a poligamia. As mulheres voltam para casa, são submissas, mas sobram vagas nas universidades”, descreve Paulo Arantes o livro “Submissão” que qualifica de “uma caricatura” com uma mensagem.
A seguinte: “É para dizer que talvez nós chegamos a um ponto tal que pior que isso só ocupação durante o Nazismo. Uma ocupação que não é propriamente ocupação, é outro tipo de coisa árabe que pode ser para nós uma espécie de alívio, porque vai sobrar dinheiro, emprego, as mulheres serão cordatas – para não dizer fiéis e submissas -, os homens mandarão, a educação moderada está nas mãos dos homens [que garantem que] não vão aplicar a sharia, não vão decapitar ninguém e a França volta a ser uma potência. Uma nação rica desde que ela reconheça democraticamente que a maioria elegeu um presidente muçulmano moderado. É divertido, mas é resultado de mudar de sociedade e não mudar a sociedade” pelos imigrantes, refere o Professor Sénior do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (MM)