Manuel Matola
O escritor e cineasta moçambicano Júlio Silva vai lançar este sábado, em Lisboa, o livro “A Dor do Meu Povo”, uma coletânea com 7 contos sobre “as várias situações” dos dramas que se vivem no norte de Moçambique, sobretudo em Cabo Delgado, onde “hoje em dia há crianças a serem mortas como se fossem terroristas”.
“É um livro direcionado para os viajantes: pessoas que viajam daqui (Portugal) para Moçambique, ou que viajam para outras partes têm tempo de ler uma, duas, ou três estórias dependendo da velocidade de leitura. Neste livro, eu conto vários episódios relacionados com a dor do meu povo. Uma das dores é o problema de Cabo Delgado. São dois contos baseados em telefonemas que eu fiz, aquilo que eu ouvi e depois criei uma estória à volta tudo aquilo que eu fui reportando”, diz.
Mas há outras temáticas na obra que o antropólogo cultural moçambicano irá transformar em filme em 2022.
“Outros dois contos estão ligados ao ciclone quando o fenómeno natural resolveu atacar a zona centro e mais tarde a zona norte. Portanto, é uma estória que vai ser passada para filme também futuramente que abrange aqueles que foram esquecidos, porque houve muitas ajudas para as pessoas que eles conseguiam chegar mas também houve muitos esquecidos. E o conto que eu escrevi é relacionado a uma mulher que foi esquecida e que teve que sobreviver no meio daquele esquecimento juntamente com os seus filhos”, refere.
Um conto que, de resto, “é baseado em factos reais”, mas que o escritor vai “colorindo de forma a prender os próprios leitores”, refere Júlio Silva sobre um livro que tem um cunho antropológico sobre a realidade da população de um país maioritariamente rural: Moçambique.
“Depois há outros contos sobre a dor relacionados com o obscurantismo. Isto é mais ligado ao norte (onde também há relatos de) pessoas que sofrem por causa da maldade dos outros. É uma temática que eu também toquei”, afirma, descortinando mais sobre o livro em entrevista ao jornal É@GORA.
Os mistérios da natureza fazem parte do livro do autor que integra nesta coletânea relatos ficcionados sobre “a dor de pessoas cujas casas foram queimadas devido à queda de raios quando surgem grandes trovoadas e tempestades em Moçambique”, um dos países mais afetados pelas mudanças climáticas.
Mas a questão antropológica que o escritor Júlio Silva traz à reflexão é: “como é que fica esse relacionamento entre duas pessoas, em que uma delas é queimada por ser atingida por raios. Como é que ela sobrevive no meio da relação entre ela e o marido e não só?”, questiona.
“Eu quis tocar nisso”, diz Júlio Silva remetendo o leitor a encontrar resposta à questão no livro que retrata os vários dilemas que se vivem em Moçambique, um país que desde o início da guerra colonial em 1964 tem vivido momentos de pausas para a paz: em 1976, um ano depois da independência, os moçambicanos viveram uma guerra civil de 16 anos protagonizada pela Renamo, então movimento de guerrilha, hoje principal partido da oposição, contra as forças de defesa nacional.
Volvidos 23 anos ininterruptos da paz alcançada em 1992, o país voltou a mergulhar em 2013 a novos ataques desta vez promovidos pelas forças residuais do partido Renamo; mas foi em 2017 que o norte de Moçambique começo a assistir a uma situação permanente de instabilidade protagonizada pelo grupo terrorista denominado al-shabab que tem forçado a fuga de milhares de pessoas das suas aldeias para os grandes centros urbanos, por receio de serem decapitadas.
Nisto, segundo o autor, “hoje em dia há crianças a serem mortas como se fossem terroristas”.
No livro, Júlio Silva aborda igualmente um conto sobre os jovens que “muitas vezes são atingidos na guerra – onde acontece tanta coisa – e que depois são esquecidos, são dados como mortos” por não se saber o seu paradeiro durante a dispersão nas zonas rurais, onde reside mais de metade da população moçambicana estimada em 28 milhões de habitantes.
“Eu foco uma temática de alguém que foi dado como morto e mais tarde aparece na sua aldeia. Estava extremamente queimado e que tinha vergonha de se apresentar à população e à sua própria esposa devido ao seu estado crítico. É também uma estória relacionada com essa situação dolorosa. Portanto, este livro é mesmo ´As dores do meu Povo` em várias situações, relatando a dor mais profunda” dos moçambicanos. (MM)