Por Manuel Matola
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e a Justiça portuguesa devem intervir com urgência para pôr fim aos ataques pessoais de que está ser alvo a imigrante feminista e ativista antirracista Joacine Katar Moreira, eleita deputada por sufrágio universal à Assembleia da República, antes que se faça tarde e a situação se torne incontrolável e, eventualmente, fatal para a própria democracia.
Em menos de uma semana, Portugal testemunhou dois eventos ímpares centrados nas eleições legislativas do domingo último que mudou o espectro político ao nível da Assembleia da República.
Além da vitória do Partido Socialista (PS), que reforçou a sua posição naquele órgão de soberania onde continua sem maioria, o Parlamento português passou a contar com uma dezena de forças políticas representados no órgão legislativo, após a eleição de novos partidos ideologicamente à esquerda, um dos quais da extrema direita, e, pela primeira vez, três mulheres de origem guineense, então colónia portuguesa, tornarem-se deputadas por partidos diferentes: PS, Bloco de Esquerda e LIVRE.
E, precisamente, ao quarto dia da realização do escrutínio, uma das eleitas, por sinal cabeça de lista do partido LIVRE, começou a ser alvo dos mais vis e repugnantes ataques contra a sua integridade nas redes sociais, ultrapassando-se assim todos os níveis aceitáveis de debate que se impõe numa democracia, onde a liberdade de expressão representa um dos direitos de manifestações consagrados na Constituição.
Inicialmente surgiu um comentário de André Ventura, o líder do partido de extrema direita, Chega, a denunciar a deputada eleita Joacine Katar Moreira por, eventualmente, a não ter cumprimentado no final de um debate na RTP.
Na sua página do Facebook, André Ventura relatou um caso em que acusava diretamente Joacine Katar Moreira de supostamente ter demonstrado “bem o nível de democracia e tolerância que tem esta extrema – esquerda que foi eleita para o Parlamento”. De forma sucinta, escreveu sobre o que terá acontecido na última segunda-feira:
“Ontem, depois do debate na RTP, fui cumprimentar todos os deputados eleitos. Deve ser assim em democracia. A Dra. Joacine deixou-me com a mão estendida e disse “Ah, André, desaparece!”. E virou – me as costas”, escreveu André Ventura.
Mas Joacine Katar Moreira prontamente desmentiu-o, contando a sua versão dos factos ocorridos nas instalações da televisão pública.
“Lamento desiludir a toda a gente mas não é verdade aquilo que o deputado do chega disse. Antes do programa cumprimentámo-nos com um aperto de mão estava eu a sair da maquilhagem, à frente de várias pessoas. No final do programa, a dirigir-nos para o elevador quis apertar-me novamente a mão e eu fiz um gesto de stop com a mão direita e disse-lhe “Adeus, André”. Pois, não devia tê-lo tratado por tu (sem o Dr.) Digo-vos já que este cenário de mentira-justificação é tudo o que eu não vou permitir daqui em diante, mas tinha de deixar esta nota hoje para justificar o meu silêncio futuro em tudo o que à pessoa diga respeito”, ripostou Joacine Katar Moreira.
Mas entre a acusação e o esclarecimento do que realmente se terá passado à saída dos estúdios da empresa estatal de televisão portuguesa, as redes sociais foram inundadas por mais inerraráveis discursos de ódio e desprezo proferidos por internautas contra uma deputada democraticamente eleita desde que o modelo eletivo foi instituído em Portugal enquanto Estado de Direito.
De resto, consideramos que o que se assistiu especialmente nas últimas 24 horas em Portugal é apenas o prenúncio da verdadeira intenção de quem ousou acender o rastilho desse barril de pólvora para futuramente arregimentar os incautos a proferirem ataques pessoais não só à deputada Joacine Katar Moreira, mas a criar-se uma nova crispação na sociedade portuguesa, fenómeno que nos últimos quatro anos reduziu graças a intervenção do Presidente da República que assumia essa luta como uma das suas agendas pessoais.
E para instigar ainda mais a sociedade portuguesa, o(s) promotores desta “epopeia” aparece(m) agora com uma nova abordagem de luta, centrando o seu foco na violação do direito à individualidade de Joacine Katar Moreira, ao referir-se sistematicamente, nos comentários, o facto de a deputada sofrer de gaguez, embora a própria tenha conseguido “contornar” este problema de forma sarcástica durante a campanha eleitoral.
Mas os belos dias do relutante exercício democrático em Portugal dão provas de maior resistência, pois é claramente notório o objetivo do(s) promotores desta iniciativa: condicionar a intervenção da ativista antirracista por saber(em) que os imigrantes, as minorias racializadas e as mulheres contam agora com alguém com legitimidade democrática para usar o hemiciclo e denunciar o que se passa em Portugal no campo do racismo.
E já na quinta-feira notou-se esse esforço quando começou a correr uma petição contra a deputada portuguesa afrodescendente para impedir a sua tomada de posse. É que em dois dias, os autores do documento conseguiram reunir quase 15 mil assinaturas e multiplicaram os seus argumentos contra a deputada eleita pelo LIVRE a quem acusam de na noite eleitoral ter deixado “de forma direta” que nos festejos do seu partido fosse exibida a bandeira da Guiné-Bissau ao lado do símbolo da soberania da República portuguesa.
Joacine Katar Moreira, que há 37 anos nasceu na capital guineense, Bissau, está desde os oito anos a residir em Portugal, onde agora é deputada eleita democraticamente, mas, como muitos, nunca se desligou do país que a viu nascer.
Entendemos que o impacto desse caso aparentemente isolado não pode ser medido apenas pela dimensão e efeito do ataque à cor da pele negra de uma das vítimas e à gaguez de que sofre Joacine Katar Moreira. É preciso que se olhe para o contexto atual do país onde esses ataques estão a ocorrer.
O Portugal dos últimos anos tem se destacado pela negativa no campo da violência social contra as mulheres. Nessa sexta-feira, o país registou o 30º caso de morte de uma mulher vítima de violência, só este ano, o que demonstra bem o nível de intolerância contra esse grupo social.
A sociedade portuguesa está a perder esta luta e isso acontece numa altura em que a extrema direita já está a crescer e já tem representante no Parlamento.
Por isso, o Presidente como representante da República e garante da independência nacional devia fazer o uso político dos poderes informais que detém e atributos simbólicos que o cargo lhe confere para dissuadir os que instigam atos de violência contra quem foi escolhida num processo de total transparência para ocupar um dos 230 lugares no Parlamento.
Apesar de eventuais limitações do chefe de Estado nesta matéria, há uma entidade que pode assumir totalmente essa responsabilidade: o Ministério Público, cujas competências passam por defender a legalidade democrática, pois é a instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos.
Recentemente, os “Media” relataram o caso do ativista do SOS Racismo Mamadou Ba que foi alvo de ameaças em plena praça pública, ao que consta, por membros da extrema direita, a caminho do seu local de trabalho, a Assembleia da República, onde trabalha(va) como assessor do Bloco de Esquerda.
Este é o local que passará agora a ter três mulheres negra como deputadas e todas com um percurso de luta em defesa das minorias e nas questões étnico-raciais.
Como Beatriz Dias (BE), está a deputada eleita pelo PS, Romualda Fernandes, os rostos de luta antirracista em Portugal. Embora, para já, ambas não sejam vítimas de ataques semelhantes aos que se assiste contra Joacine Katar Moreira, nada garante que as suas intervenções futuras no Parlamento não as coloque em risco.
A luta das e pelas mulheres não pode esmorecer a favor de quem deseja ser relutante no exercício democrático, porque uma derrota neste campo representará, claramente, um verdadeiro desaire eleitoral do domingo último e da própria luta pela democracia portuguesa.(MM)