Manuel Matola
Uma petição exigindo o fim da “abordagem arbitrária de pessoas racializadas pelas forças policiais” foi lançada este domingo e já conta com mais de duas centenas de subscritores que pretendem ver alterado o artigo 250º do Código do Processo Penal, reforçando assim uma proposta recentemente submetida ao Parlamento pela deputada Joacine Katar Moreira.
Em entrevista recente ao jornal É@GORA, a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira explicou o propósito do Projeto de Lei n.º 795/XIV/2 cuja “ideia é desracializar o artigo 250” do Código do Processo Penal.
É que “da maneira que está acaba por racializar alguns crimes, nomeadamente, quando se vai referir às pessoas que se encontrem em situação irregular no país ou que tenham entrado ilegalmente no país”, disse.
O Coletivo XIS, promotor da petição agora lançada, explica por isso a necessidade de alterar o referido artigo, cuja atual redação cria “condições para a reprodução de estereótipos étnico-raciais por parte das forças policiais” sobretudo contra um grupo social específico: os imigrantes e os afrodescendentes.
“Para quem não tem pele clara e aparência ´europeia`, a situação é conhecida: sem razão aparente, é abordado pelas forças policiais para se identificar, nem sempre de forma mais cordial. Em qualquer contexto social, no meio de grandes grupos ou individualmente, as pessoas racializadas são objeto de tratamento específico por parte das autoridades. Muitos já se terão perguntado qual poderia ser o fundamento legal dessa situação francamente discriminatória, referida no contexto anglo-americano como racial profiling, e cujas principais vítimas são os afrodescendentes”, refere o Coletivo XIS.
Segundo os peticionários, “inúmeros exemplos pessoais demonstram o tratamento abusivo e arbitrário por parte de agentes das forças policiais”, alguns deles já partilhados pela imprensa, outros nas redes sociais, tal como um vídeo viralizado mês passado que “documenta o pedido da identificação levada a cabo por agentes da PSP, exigindo, de uma forma desrespeitosa e inusitada, a identificação de um indivíduo (racializado) com fundamento no seu dever de demonstrar que não se encontrava em situação irregular em território português”.
Na opinão dos promotores da petição, “estas situações representam uma intimidação sistemática da população racializada, validada pelo atual versão do artigo 250º do Código do Processo Penal que acaba por ser utilizado como ´legitimador` da atuação das forças de segurança”.
“Por um lado, esperamos que a mensagem chegue ao destinatário, ou seja, à Assembleia da República e, por outro, que mostre que há centenas, talvez milhares, de pessoas que reconhecem esta parcialidade na atuação das forças policiais e que a mudança urge”, disse Juliana Couras.
Segundo se pode ler na petição, “o n.º 1 do artigo 250º determina que as autoridades policiais podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, ou de haver contra si mandado de detenção”.
Mas o documento esclarece: “o problema é que também lhes atribui a competência de proceder à identificação de qualquer pessoa, sempre que existam indícios que ´tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional`, misturando critérios de natureza criminal com situações de enquadramento contraordenacional. Para além da permanência no território nacional em situação irregular não constituir crime mas uma infração menor (contraordenação), a redação deste artigo acaba por criar um espaço arbitrário de atuação: Dado que a Lei é omissa quanto aos critérios a adotar para discernir se determinado indivíduo entrou ou permanece irregularmente em território nacional, criam-se assim as condições para a reprodução de estereótipos étnico-raciais por parte das forças policiais”.
Na recente conversa com o jornal É@GORA, a deputada Joacine Katar Moreira falou das implicações desse tipo de ação.
“Como é um artigo que induz a uma caracterização física de um eventual imigrante, de um eventual indivíduo em situação irregular que é geralmente associado a um indivíduo de origem africana, portanto, é uma lei que tem estado a ser usada sucessivamente para parar e revistar pessoas racializadas. Mas não é só parar, revistar e interrogar pessoas racializadas, é, às vezes, usar violência, abordagens agressivas, revistas intimidatórias e humilhantes à frente de toda a gente em determinadas circunstâncias onde não se justifiquem a suspeita de um crime”, disse.
Tendo sido recorrentes os relatos da abordagem policial à população racializada baseada no presente artigo que remete qualquer pessoa negra ou de minorias étnicas como a população cigana à condição de potencial suspeito, a deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira submeteu o Projeto de Lei 795/XIV/2ª à Assembleia da República que visa retirar o sustento legal a essas abordagens discriminatórias, eliminando a referência a situações que não constituem crime e que, na redação atual, acabam por originar uma atuação discricionária das forças de segurança.
Por isso os peticionários consideram “urgente promover uma atuação imparcial, adequada e objetiva das forças policiais” o que torna “imperioso eliminar a margem arbitrária e estereotipada da legislação penal”, pelo que o Coletivo XIS apela ao Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, “que proceda com a maior brevidade possível ao agendamento deste Projeto de Lei, instando as Deputadas e os Deputados que o aprovem sem mais demoras”.
No entendimento dos requerentes, a alteração do artigo 250º do Código do Processo Penal “será um primeiro passo necessário para acabar com um policiamento repressivo, não raramente acompanhado por revistas humilhantes, que é o resultado de uma construção histórica de dominação colonial que configura, à partida, a pessoa negra, cigana, ou de outra minoria étnica como desordeira ou criminosa, reproduzindo o estereótipo do português branco e de aparência ´europeia`, em franca negação da pluralidade da sociedade portuguesa atual”.
Em nota, o Coletivo XIS, que surge com o propósito de dinamizar iniciativas que reforcem a participação cidadã no espaço político, diz entender que a transformação social se faz com o envolvimento da população no discurso público, daí que justifica o lançamento da petição “Acabar com a abordagem arbitrária de pessoas racializadas pelas forças policiais” que pretende “apelar à necessidade de uma legislação que não dê margem para uma atuação parcial e estereotipada das forças policiais”.(MM)