Presidente Marcelo tem que opinar sobre “caso Joacine” para que fique do lado certo da História

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Joacine Katar Moreira


Manuel Matola

Há quase um mês sugerimos ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e à Justiça portuguesa para que interviessem com urgência para pôr fim aos ataques pessoais de que está ser alvo a deputada Joacine Katar Moreira.

Hoje, voltamos à carga para reforçar a nossa proposta: achamos que é chegada a hora de o chefe de Estado de Portugal dizer o que pensa sobre o “caso Joacine”, pois, antes que se faça tarde e a situação se torne incontrolável e, eventualmente, fatal para a própria democracia portuguesa, é imperioso que a sociedade saiba que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa posicionou-se do lado certo da História ao sair em defesa da imigrante feminista e ativista antirracista, eleita deputada por sufrágio universal à Assembleia da República.

Neste sábado, pelos 240 personalidades da vida académica, cultural, política e social deram a cara, enquanto signatários de uma carta aberta em solidariedade com a Joacine Katar Moreira, para apelar à “responsabilidade cidadã dos portugueses e das instituições públicas, para que não deixem impor-se a linguagem do ódio e da desconfiança onde deve apenas haver lugar para a vigilância crítica, o debate aberto e a vontade de ir mais longe na construção de um futuro melhor para todos”.

O Presidente Marcelo deve ver a carta como sintomática do estágio em que chegamos. De resto, a missiva escrita pelas mais de duas centenas de individualidades portuguesa e de estrangeira que repudiam a forma como a deputada tem sido tratada no espaço público e vai de encontro com o que já havíamos dito há mais de 30 dias num texto em que intitulamos de “Os belos dias do relutante exercício democrático em Portugal”. É que quanto a nós, os ataques a uma deputada são sinal evidente de que uma parte da sociedade portuguesa está a dar provas de maior resistência aos preceitos democráticos e ninguém está a agir para parar esse exercício.

Dissemos e repetimos que é claramente notório o objetivo do(s) promotores desta iniciativa: condicionar a intervenção da ativista antirracista por saber(em) que os imigrantes, as minorias racializadas e as mulheres contam agora com alguém com legitimidade democrática para usar o hemiciclo e denunciar o que se passa em Portugal no campo do racismo.

Somos a única publicação no mundo que aborda integralmente a temática da imigração em língua portuguesa, pelo que temos uma posição firme sobre o que está atualmente a acontecer com a democracia em Portugal: pensamos que ao se posicionarem na vanguarda dessas iniciativas de ataques a uma deputada – por sinal a única entre os 230 parlamentares -, os promotores deste inqualificável exercício pretendem criar uma nova crispação na sociedade portuguesa, um fenómeno que, de resto, nos últimos quatro anos reduziu graças à intervenção do Presidente da República que assumia essa luta como uma das suas agendas pessoais.

Em última análise, querem vincular o mandato do Presidente Marcelo a um caso que em nada dignifica e nem sequer abona a favor de Portugal.
Mas vale lembrar de onde surgiu todo esse enredo.

Foi precisamente, ao quarto dia da realização das eleições legislativas de 06 de outubro que Joacine Katar Moreira, então cabeça de lista do partido LIVRE, começou a ser alvo dos mais vis e repugnantes ataques contra a sua integridade nas redes sociais. Foram tantos os ataques que ultrapassaram todos os níveis aceitáveis de debate que se impõe numa democracia, onde a liberdade de expressão representa um dos direitos de manifestações consagrados na Constituição.

Inicialmente surgiu um comentário de André Ventura, o líder do partido de extrema direita, Chega, a denunciar a deputada eleita Joacine Katar Moreira por, eventualmente, a não ter cumprimentado no final de um debate na RTP.

Na sua página do Facebook, André Ventura relatou um caso em que acusava diretamente Joacine Katar Moreira de supostamente ter demonstrado “bem o nível de democracia e tolerância que tem esta extrema-esquerda que foi eleita para o Parlamento”, por a agora deputada alegadamente se ter recusado a cumprimentá-lo.

Mas Joacine Katar Moreira prontamente desmentiu-o, contando a sua versão dos factos ocorridos nas instalações da televisão pública.
“Lamento desiludir a toda a gente mas não é verdade aquilo que o deputado do chega disse. Antes do programa cumprimentámo-nos com um aperto de mão estava eu a sair da maquilhagem, à frente de várias pessoas. No final do programa, a dirigir-nos para o elevador quis apertar-me novamente a mão e eu fiz um gesto de stop com a mão direita e disse-lhe “Adeus, André”. Pois, não devia tê-lo tratado por tu (sem o Dr.) Digo-vos já que este cenário de mentira-justificação é tudo o que eu não vou permitir daqui em diante, mas tinha de deixar esta nota hoje para justificar o meu silêncio futuro em tudo o que à pessoa diga respeito”, ripostou Joacine Katar Moreira.

Mas entre a acusação e o esclarecimento do que realmente se terá passado à saída dos estúdios da empresa estatal de televisão portuguesa, as redes sociais foram inundadas por mais inerraráveis discursos de ódio e desprezo proferidos por internautas contra uma deputada democraticamente eleita desde que o modelo eletivo foi instituído em Portugal enquanto Estado de Direito.

De resto, consideramos que o que era apenas o prenúncio da verdadeira intenção de quem ousou acender o rastilho desse barril de pólvora para futuramente arregimentar os incautos a proferirem ataques pessoais não só à deputada Joacine Katar Moreira, agora “é também uma estratégia de deslegitimação da participação política de pessoas racializadas e das políticas de promoção da igualdade étnico-racial que estas reivindicam”, tal como referem as 240 personalidades que subscrevem a carta publicada no sábado.

Mas vale lembrar que, para instigar ainda mais a sociedade portuguesa, o(s) promotore(s) desta “epopeia” aparece(ram) com uma nova abordagem de luta, centrando o seu foco na violação do direito à individualidade de Joacine Katar Moreira, ao referir-se sistematicamente, nos comentários, o facto de a deputada sofrer de gaguez, embora a própria tenha conseguido “contornar” este problema de forma sarcástica durante a campanha eleitoral.

Entendemos que o impacto desse caso aparentemente isolado não pode ser medido apenas pela dimensão e efeito do ataque à cor da pele negra de uma das vítimas e à gaguez de que sofre Joacine Katar Moreira. É preciso que se olhe para o contexto atual do país onde esses ataques estão a ocorrer.

O Portugal dos últimos anos tem se destacado pela negativa no campo da violência social contra as mulheres. Há quase um mês, o país registou o 30º caso de morte de uma mulher vítima de violência, só este ano, o que demonstra bem o nível de intolerância contra esse grupo social.

A sociedade portuguesa está a perder esta luta e isso acontece numa altura em que a extrema direita já está a crescer e já tem representante no Parlamento.

Por isso, o Presidente como representante da República e garante da independência nacional devia fazer o uso político dos poderes informais que detém e atributos simbólicos que o cargo lhe confere para dissuadir os que instigam atos de violência contra quem foi escolhida num processo de total transparência para ocupar um dos 230 lugares no Parlamento.

Apesar de eventuais limitações do chefe de Estado nesta matéria, há uma entidade que pode assumir totalmente essa responsabilidade: o Ministério Público, cujas competências passam por defender a legalidade democrática, pois é a instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos.

Recentemente, os “Media” relataram o caso do ativista do SOS Racismo Mamadou Ba que foi alvo de ameaças em plena praça pública, ao que consta, por membros da extrema direita, a caminho do seu local de trabalho, a Assembleia da República, onde trabalha(va) como assessor do Bloco de Esquerda.

Este é o local onde agora estão três mulheres negra como deputadas e todas com um percurso de luta em defesa das minorias e nas questões étnico-raciais.

Como Beatriz Dias (BE), está a deputada eleita pelo PS, Romualda Fernandes, outros dois rostos de luta antirracista em Portugal. Embora, para já, ambas não sejam vítimas de ataques semelhantes aos que se assiste contra Joacine Katar Moreira, nada garante que as suas intervenções futuras no Parlamento não as coloque em risco.

Defendemos que a luta das e pelas mulheres não pode esmorecer por conta de quem deseja ser relutante no exercício democrático, porque uma derrota neste campo representará, claramente, um verdadeiro desaire eleitoral do passado dia 06 de outubro e da própria luta pela democracia portuguesa.(MM)

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