
Manuel Matola
Aos 45 anos, Vítor Gonçalves ainda pretende obter resposta a uma das questões que mais o inquieta desde que teve consciência dos desafios que os afrodescendentes enfrentam para se integrarem em contextos de segregação racial: a partir de que momento é-se ensinado a exaltar a cor da pele para o bem e para o mal?
“Porque eu só sou preto quando saio à rua. Quando eu vou para cama, eu vou à humano. Quando acordo, acordo humano. A partir de um certo momento eu começo a ser preto”, diz Vítor num debate sobre a integração e a questão da atribuição da nacionalidade às minorias étnico-raciais, especialmente, de origem africana nascidas em Portugal.
Vítor, que é músico de profissão, teve um percurso diferente da de muitos afrodescendentes que nasceram em Portugal e que nunca pisaram o continente africano. O artista nasceu no território português no ano da Revolução dos Cravos, adquiriu a nacionalidade portuguesa e ainda na fase da puberdade decidiu partir de volta às suas origens, a terra dos pais, Cabo Verde. Mas quando retornou ao Ocidente rumou para os Estados Unidos da América e, nessas múltiplas viagens pelo mundo, acabou por se fixar novamente na capital portuguesa.
Hoje mora em Lisboa com a mulher de origem italiana e, há menos de dois anos, ambos tiveram um filho nascido na Itália, mas que poderá crescer em Portugal onde parte considerável de miúdos da sua idade e jovens-adultos afrodescendentes da geração do próprio Vítor ainda são apátridas.
Num debate organizado em Lisboa, sob lema “A lei da nacionalidade e o racismo: o que temos que fazer?”, Vítor levantou questões que, mais tarde, deverá ser ele mesmo a ter de responder ao próprio filho quando este for mais crescido.
Há quase meio século que o luso cabo-verdiano não encontra explicação para o facto de as minorias étnico-raciais, mesmo em contextos diferentes e gozando de estatuto social diferente, terem, “no íntimo, uma coisa em comum” quando tentam se integrar e pertencer a uma sociedade.
“Eu vivi nos Estados Unidos. Há uma coisa que há em comum entre eu e o Obama. Não sei o que é, mas ele é (ex)presidente da República, o homem mais poderoso do mundo. Mas no íntimo temos uma coisa em comum, que eu não sei o que é, porque ele é mestiço”, diz.
Mas, prossegue, “eu acho que o que temos em comum é o que as pessoas querem, porque eu só sou preto quando saio à rua, quando eu vou para cama eu vou à humano. Quando acordo, acordo humano. A partir de um certo momento eu começo a ser preto”.
Vítor acredita que essa opção de, a partir de certo momento, ser alguma coisa em função da sua cor da pele é-lhe atribuída pela sociedade qe normalmente impele, sobretudo, os afrodescendentes a terem de carregar um rótulo que deve obrigatoriamente ser assumido com orgulho.
“Então eu não sou preto porque quero. Há uma questão de orgulho em ser preto: se eu disser que não tenho orgulho em ser preto, então dizem-me: esse não gosta da sua própria raça”, afirma.
Por isso Vítor questiona por que razão a exaltação da cor da pele deve ser entendida como algo natural quando vem de uma parte e classificada de racismo quando provém da outra.
“Quando um branco diz que tem orgulho de ser branco já é tido como racista. Mas porquê se a expressão é a mesma? Parece que obrigatoriamente o preto tem que ter orgulho em ser preto. Eu não construí o preto, eu não construí, por exemplo, a minha pessoa”, afirmou numa discussão que se pretendeu descomplexada sobre a questão racial.
Reagindo às inquietações levantadas pelo artista, Estácio, um membro da Associação Consciência Negra, organizadora do debate sobre a lei da nacionalidade e o racismo, que decorreu na Quinta do Mocho, um dos bairros periféricos de Lisboa, onde reside grande parte de famílias provenientes dos Países Africanos de Língua Portuguesa, esclareceu.
“Muitas vezes, quando um branco dizia que tinha orgulho branco, por exemplo nos Estados Unidos, isso implicava morte a outro grupo completamente diferente, ou seja, o grupo negro”, mas “temos que ter consciência de que nos dias de hoje não há porquê uma pessoa branca não ser orgulhosa em ser branca”, sentencia Estácio.
Embora Vítor não tenha dúvidas nem sequer se incomode com o facto de certas pessoas não gostarem umas das outras por causa da cor da pele, o luso cabo-verdiano inquieta-se com a segregação baseada na tonalidade da pele, como a que, diz, ocorre, especialmente, em Portugal onde seus amigos de infância e familiares afrodescendentes ainda lutam por ter a nacionalidade, um direito que não tem sido adquirido integralmente de forma automática.
“Eu não tenho dúvidas de que não se goste de pretos. Na China, na Índia não se gosta de preto”, diz Vítor, que, entretanto, olha para essa diferença de opinião como sendo natural, até porque acredita que seja a tal consciência que faz com que haja uma “coisa em comum” entre as minorias étnico-raciais a nível mundial, independentemente do estatuto social da cada um.(MM)