Manuel Matola
O pintor e escritor moçambicano Ruben Zacarias vai lançar brevemente um romance que convida à reflexão sobre a homossexualidade e o racismo numa perspetiva mais universal, mais pessoal, em que não só fala de amores intergeracionais como também levanta “muitas questões atuais” sobre as quais acha que as sociedades estão “infelizmente adormecidas”. Já em setembro inaugura a exposição “Os Herdeiros do Sol” que “refletem os muito desafios” que o artista plástico vê acontecer na Europa, desde o “contraste de filosofia” do continente, “os gestos” e “o carinho muito europeu”. O jornal É@GORA entrevistou-o e Ruben Zacarias revelou o essencial do livro e da obra artística “Os Herdeiros do Sol” que “remete muito à África”. Contudo, o artista esclarece: “Mas o Sol não é aquele africano. [É] o Sol como o mundo da alma, conhecimento, profundidade, magnetismo”. Acompanhe a conversa:
O que representa “Os Herdeiros do Sol” em termos de mensagem?
Os Herdeiros do Sol refletem os muito desafios que eu vejo na Europa: o contraste de filosofia, de um carinho, mas um carinho muito europeu, os gestos. [Aqui] as pessoas são muito submissas ao tempo, aos status social, à “Media”, sobretudo à televisão, rádios. Olhei e notei que aí falta um pouco desta luz, falta talvez essa capacidade de discernimento autêntico, verdadeiro. Então essa obra nasce disso, fruto do que eu vi em Moçambique [pois deste olhar entendi que] é muito mais fácil um moçambicano questionar. Até achei muito engraçado isso de as pessoas questionarem uma sociedade que é tida como mais filosófica e intelectual. Sem menosprezar nenhuma, mas [o meu propósito passa por] mostrar aquilo que é o meu contributo como artista e ser humano.
Essa obra traz alguma mensagem que vá para além de Portugal?
A obra traz muitas mensagens universais. Tem algumas pinturas, uma delas é intitulada o embalo, que é um ato internacional: o embalo de uma mãe, de uma namorada, ou de um namorado que por algum motivo da noite abraça. E o abraço, o choro, o amor, beijo é [tudo um ato] universal. Essa foi a maneira como produzi as obras para que tivesse essa particularidade universal. Foi muito desafiador produzir assim, mas foi isso. E são mensagens que não [ restringem] apenas para Portugal.
Em termos técnicos-artísticos como é que o Ruben explica essa obra?
Eu gosto muito de cor. Em termos de cor, penso que houve muita plasticidade moçambicana e africana porque a minha alma é moçambicana e faço essas cores às vezes de forma intencional, às vezes desintencional. Não consigo pintar obras cinzentas, ou a preto e branco. E acho difícil e duro, porque é matar as pessoas com muita cor. As dimensões são variadas: temos obras de 80×100, 80×80 e as menores são de 60×60.
O que houve em termos de evolução do Rúben artista e que se espelha neste trabalho?
Tive mais gozo ao produzir as obras porque tive mais material para fazer muito mais coisas que eu não fazia em Moçambique. Experimento muito por isso que quase todas as obras são feitas baseadas na técnica mista, sobretudo o carvão vegetal, acrílico, guaxe, óleo. Vou usando estas técnicas, vou experimentando. Acho que a maior diferença entre essa obra e as outras é essa tranquilidade de produzir, mais por causa do material que tenho muita facilidade de adquirir [cá]. Isso dá-me muito gozo.
Em relação ao livro, há novidades?!!!
Também ainda este ano vou lançar o meu primeiro livro que é um romance que está com uma amiga a fazer a revisão textual e outro amigo a fazer o prefácio.
Em que circunstância surge o livro, o que o motiva e como é que ele se desenvolveu?
É engraçado, mas este livro nasceu em Moçambique há um ano e meio. Comecei a escrever de forma repentina – pois eu sempre escrevi. Mas deu-me a vontade de escrever um conto. E escrevi. Não era para se transformar num livro. Era só para escrever numa coisa e depois ler, só que – por influência de alguém muito especial – fui escrevendo e quando descobri que poderia ser um livro as exigências também mudaram: passei a olhar de uma forma diferente: com um olhar mais perspicaz, mais rigoroso. Passei a investigar para que fosse o livro que vai ser. Escrevi uma parte em Moçambique, outra no avião. Quando estive cá em agosto [de 2021] escrevi e voltei a Moçambique e vim continua aqui.
O que é que o Ruben passa neste livro?
Em parte, as minhas crenças, as minhas formações, porque é um livro que também traz questões como a homossexualidade, racismo numa perspetiva mais universal. É [algo] mais pessoal, [em que me vejo] mais convidado à reflexão, pois falo de amores intergeracionais e muitas questões atuais sobre as quais acho que as nossas sociedades estão infelizmente adormecidas.
Não estão preparadas, é isso?
Não estão preparadas e isso é notável a partir das universidades e igrejas onde vejo várias pessoas dizerem que pregam muito o amor, mas [já dizem] que não podes beijar como manifestação de amor. Não podes abraçar. Tanto que tem um personagem que se suicida. Ele é homossexual que é perseguido pela multidão que o segue até a porta da igreja onde cai e aí [há quem diz que] sente um cheiro estranho de perfume de alguém, o que lhe cria enjoo. Para mim aquele enjoo é uma revolta porque o ser humano tem que buscar a sua essência. Mesmo que as pessoas não acreditem que haja uma existência divina, universal que nos tornem melhores, é preciso que procurem ser boas pessoas ou que deixem os outros em paz: que eu te dê a paz que precisas e tu me dês sem problema. As sociedades estão cada vez mais muito ignorantes; as pessoas acham que têm sempre razão, o direito de invadir o espaço dos outros.
“Para mim hoje a prioridade da arte é criar a beleza”
O problema que está a levantar é um problema que tem solução? Se sim, qual seria, na sua opinião?
Desde os meus 17 anos sempre disse que este é um problema com solução e a grande solução é filosofar. As pessoas devem aprender a gostar da filosofia como busca do saber para saírem da ignorância. Tudo o que as pessoas fazem é por não saberem e mesmo quando pensam que sabem, não sabem. Porque o saber em profundidade faz com que estejas longe de algumas coisas que são obviamente banais, mesquinhas. E é engraçado falar disso, mas só quem não sabe é que olha a cor da pele do outro e encontra na pele limitações para discutir questões levadas as respeitar o outro. Quem diz cor, diz tamanho do corpo, das sobrancelhas, dos lábios… A solução é buscar conhecimento para se livrar da ignorância que obviamente as pessoas vivem.
O que é a prioridade hoje para arte e os artistas?
Para mim a prioridade da arte é criar a beleza. E beleza no mais verdadeiro sentido. Não falo de pintar uma parede com arco-íris ou fazer uma paisagem bonita, mas a beleza no mais verdadeiro sentido. A arte tem que criar a beleza moral, ética e mais tarde essa beleza que é importante também: a beleza de tu passeares com um vestido lindo, que te alegram e causam sensações, mas é importantíssimo que a arte crie beleza nas pessoas, que mude as pessoas. Para mim quando as pessoas têm umas feias aliadas ao comportamento – claro que é uma questão subjetiva, mas tudo o que reflita a invasão dos direitos do outro é feio. E a arte tem que nos convidar a sermos belo no sentido em que vamos ver o outro respeitado, a emanciparmo-nos e tratarmos como gostaríamos que fôssemos ou ele gostaria que fosse tratado.
Como é ser artista na Europa nos dias de hoje?
É desafiador.
Em que medida?
Na medida em que sentes que as pessoas já têm caminhos desenhados em relação ao que é não arte. É como se as pessoas já pensassem que partindo dali para lá é arte. Mas daqui para aqui já não é arte. Acho que é desafiador nesse sentido. Mas também é bom porque a pessoa olha para o meu trabalho de forma fantástica. Isso alegra-me bastante. Não são só os artistas, mas as pessoas no seu todo. Acho que isso é muito importante. Sim as pessoas têm uma forma diferente de ver a arte. Nesse sentido acho que é difícil. Sendo um artista africano, às vezes, sentes e tens que mostrar muito mais do que os outros têm para que sejas aprovado ou reconhecido como artista.
Para quem esteja em África, nesta altura por causa da guerra, o que Ruben recomendaria olhando para esta nova ordem mundial, se quisermos chamar assim?
Recomendo às pessoas a leitura, mais uma vez. Não sou a favor de nenhuma guerra, mas também não sou indiferente. Gosto de forma opiniões fruto das leituras que eu faço. Acredito que, atualmente, temos muitas guerras no mundo. Esta não é a única guerra. Mesmo em Moçambique nós temos um conflito. É Claro que não tem o mesmo impacto que, mas o mundo reage como reage com (a guerra da Ucrânia). Quando tens uma ordem mundial que se posiciona desse jeito, pessoas (céticas) como eu afastam o pé um pouco para trás e questionam: espera lá, por que as coisas devem ser assim? O que eu convido às pessoas é que pensem e esse exercício lhes permita ter capacidade crítica suficiente de té comportamentos saudáveis. para mim não faz sentido que, por exemplo: a guerra começou ontem e hoje tens centenas de pessoas a encherem os supermercados. A informação da guerra deixa as pessoas em pânico. Eu acredito que mais do que a guerra o maior problema que vamos ter são o desencadeamento de doenças, de transtornos de fórum psicológico porque as pessoas estão ansiosas, com medo. E acredito que as pessoas que estão à frente destas guerras, claro, mais de um lado do que o outro, existe interesses de manipulação.
Como é que um atrista que está a começar a sua carreira pode conseguir voar como o Rubin está a voar?
Acho que é fruto de muito trabalho, muita visão. O que eu recomendo as pessoas é que façam parte de muitos concursos, muitas residências, procurem residências artísticas – a Gulbenkian e outras organizações quase sempre têm residências. Nós sabemos que o mercado (artístico) africano não está assim tão bem. Essencialmente é: trabalho de qualidade, uma visão extraordinária e uma ambição em estar sempre em lugares maiores, extraordinários, fora do país. Para tal existem pontes, sempre. É uma questão que leva tempo. E digo isso porque nós não temos entidade que façam essa ponte com clareza. Poyr isso eu digo: residências artísticas e concursos que muitas vezes nos permitem estar onde nós queremos.
Gostava de ter uma ideia deste cruzamento que o Ruben faz entre a pintura e a escrita. O que é o leva a fazer esse cruzamento entre a pintura e a escrita e como é que se chega lá?
A escrita é um exercício mais flexível e imediata, enquanto que a pintura tens que aguardar um pouco: desenhar e pintar. É um processo mais demorado. E mesmo isso, sinto que a escyita dá-me a oportunidade de chegar a muito mais pessoas e a pintura a muitas outras. Mas acho que elas se abraçam no sentido em que a minha mensagem, a minha essência é passada por diversos meios.
O livro está no prelo. O que está programado em termos de lançamento e distribuição?
O livro estará lançado no máximo até dezembro. Gostaria que se lançasse num período que permitisse também vender mais e só depois da reação dessa primeira edição é que prevejo uma divulgação mais internacional. Aqui em Portugal o lançamento vai acontecer no Porto e Vila Real, organizado pelas Edições Matrioskas. Será entre setembro e outubro. Em Moçambique será no próximo ano, sem sombra de dúvida, no Centro Cultural Camões, na Beira e Quelimane.
Em Maputo, não?
Acho que não.
Alguma razão?
Não há uma razão específica. É uma questão de aproximação: eu sou zambeziano e gostava de fazer o lançamento na minha cidade [Quelimane, capital da província] e obviamente na Beira porque tenho facilidades de fazer na Beira. (MM)