O secretário geral da Amnistia Internacional,Kumi Naidoo, considerou “muito chocante” a realidade que observou no Bairro 6 de maio, onde reside maioritariamente imigrantes afrodescendentes, lamentando “as decisões que se tomam em relação à vida das pessoas” que moram em zonas como Amadora, o concelho que alberga cerca de 100 nacionalidades existentes em Portugal. A Amnistia Internacional diz estar solidária com o direito dos imigrantes à habitação digna.
“Foi muito chocante observar a realidade no Bairro 6 de maio e as decisões que se tomam em relação à vida das pessoas”, afirmou Kumi Naidoo, que marcou presença na vigília que teve lugar, esta semana, frente à Câmara Municipal da Amadora, para exigir o direito à habitação digna.
O secretário geral da Amnistia Internacional, que veio a Lisboa participar no Fórum Coragem II no âmbito da celebrações do Dia Mundial dos Direitos Humanos, visitou Portugal, nos dias 4 e 5, tendo sido recebido pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa.
Durante a estadia em território português, Kumi Naidoo visitou dois bairros informais na periferia de Lisboa onde a Amnistia Internacional Portugal está a analisar o cumprimento do direito à habitação, particularmente as condições em que vivem os moradores do Bairro 6 de Maio, na Amadora, e do Bairro da Torre, em Loures.
Maioritariamente de ascendência africana e cigana, os residentes vivem com a preocupação de serem desalojados pelas autoridades, enfrentando condições de vida precárias, marcadas pela pobreza e exclusão social. Durante as visitas, o secretário-geral ouviu os moradores e ex-moradores destes bairros, assim como representantes de organizações que lhes prestam apoio.
Nesta última quarta-feira, foram dezenas famílias imigrantes afro-descendentes e cigana que participaram numa vigília promovida pela Amnistia internacional. A organização não-governamental pretende com a iniciativa chamar a atenção das autoridades portuguesas para a necessidade de ser respeitado o direito à habitação.

Paula Cristina, 37 anos, filha de pai cabo-verdiano e mãe são-tomense, foi uma das que se sentiu mobilizada para esta causa. Mãe de quatro filhos, ela nasceu e cresceu no Bairro 6 de maio. Vive o drama de não ter uma casa com condições dignas de habitabilidade. Aguarda há vários anos por uma casa, depois da demolição encetada pela Câmara Municipal da Amadora.
Depois de várias cartas que endereçou à edilidade, veio a saber que ficou afastada do Programa Especial de Realojamento (PER). Por isso, reclama pelos seus direitos e quer uma casa adequada a pensar no futuro dos seus filhos. “Não estou a lutar por mim, estou a lutar pelas minhas crianças”, afirmou.
“A minha filha chora todos os dias, a pedir que ela quer estudar num quarto como deve ser. A Câmara disse que eu rejeitei a casa e fiquei nesta situação até hoje”, desabafou.
Cátia Silva, jovem mãe cabo-verdiana, está habituada a estas lutas contra os despejos, nomeadamente no Bairro 6 de maio, com recurso à violência policial e sem opção de realojamento, tal aconteceu no vizinho Bairro de Santa Filomena. É uma luta que ela começou há cerca de três anos e que, felizmente, lhe valeu o direito a uma casa.
“Estamos aqui hoje a lutar por todos aqueles que ainda não têm um paradeiro certo e uma solução à vista”, assegura.
No entanto, apontou o dedo à Câmara Municipal da Amadora, com quem os moradores despejados não têm tido uma relação muito boa.
“Não sei como é que a presidente da Câmara da Amadora consegue dormir à noite”, questionou, “sabendo que despeja pessoas que neste momento devem estar sem sítio onde dormir ou dormem em condições inimagináveis”.

Andreza Monteiro também é do Bairro 6 de maio, vive há 14 anos. Aqui nasceram duas filhas que estão a estudar. Veio à vigília criticar a forma como foi feito o desalojamento no Bairro de Santa Filomena, na Amadora, acompanhado de polícia. Viu-se assim forçada a alugar uma casa, onde paga 350 euros. Está em discussão com o senhorio que quer aumentar a renda para 550 euros.
Ela sai de casa às 05:00 da manhã para ir trabalhar e só regressa às 11:00 da noite. Com menos de um salário mínimo, que tenta angariar com muito sacrifício, Andreza garantiu que não vai conseguir cumprir o novo contrato.
Há cinco anos que tem insistido junto às entidades camarárias para conseguir uma habitação social para a família. Quer uma casa que possa pagar consoante o seu rendimento. Mas, a cidadã cabo-verdiana contou que não tem encontrado recetividade por parte da Câmara.
Já solicitou várias audiências com o responsável camarário, mas em vão porque nunca é recebida. “Já marquei audiências, não me deixam falar”, adiantou revoltada, criticando os vários casos de pessoas colocadas na rua. Garantiu que vai continuar a lutar pelos seus direitos como cidadã e em nome das suas filhas.
“O Bairro da Torre está escuro. Parece um deserto”
No Bairro da Torre, em Camarate, concelho de Loures, os residentes vivem em casas em péssimas condições. Há três anos que não têm luz elétrica; falta água e saneamento básico. “Estamos num Caramate brilhante, lindo, cheio de luz e o Bairro da Torre está escuro. Perece um deserto”, desabafou a são-tomense Ricardina Cuthbert, presidente da Associação dos Moradores, há mais de 20 anos em Portugal.
As pessoas ali não conseguem aquecer a casa, lavam a roupa à mão, vivem às escuras porque as casas não têm janela. “Isto é tirar direito à vida”, lamentou, expondo a indignação dos moradores que dizem ser maltratados pelos presidentes de Câmara, pelos vereadores e por alguns funcionários camarários.
Já habituada a estas manifestações de protesto, ela aceitou falar para reclamar o respeito pelos direitos humanos, entre os quais o direito à uma habitação digna. “Nós estamos aqui para proteger a vida humana, porque é ela que está em jogo”, afirmou diante dos manifestantes de velas acesas na mão.
“Estamos aqui a defender o direito das nossas crianças terem vida, de nós termos vida”, reforçou. “Nós queremos casa porque ninguém vive na rua”. Ricardina evocou depois o contributo dos imigrantes que trabalham, dão a sua vida por um Portugal melhor e são consideradas “um nada, um lixo”.
Relatou que quando chegou a Portugal, não havia autoestradas em Camarate. Era um deserto. “É o esforço dos imigrantes africanos e de várias outras pessoas que ajudaram Portugal a crescer. São pessoas que não têm direito absolutamente a nada. Para mim isso é tirar direito à vida”. Ricardina falava emocionada, acabando por se referir ao salário mínimo de 600 euros que não chega para pagar a renda de uma casa e as demais despesas de uma família com filhos.
Também apelou ao Governo português a mudar este paradigma em pleno século XXI, respeitando “o direito das pessoas a um teto”, para que elas possam “dormir descansadas”. Certa de ser este o desejo de todos os moradores, Ricardina ainda quer ver em vida “um Portugal novo e melhor, mais solidário”.
“Quando se trata de imigrantes e negras, o acesso à habitação é mais difícil”

Joseph Silva, ativista guineense, também deu a cara durante a vigília. Lamentou o facto das pessoas despejadas dos bairros e que perderam as suas casas estarem a ser tratadas de forma desumana. “Quando se trata de pessoas, que são imigrantes e negras, o acesso à habitação é mais difícil e a prova evidente disso é o que está aqui a acontecer”. Considerou que o direito à habitação, tal como está plasmado na Constituição, não está a ser aplicado e respeitado e não pode ser descurado.
O jovem guineense não tem nas suas mãos uma solução para o problema. Mas, insistiu que “é sempre bom sair à rua e reivindicar, “porque as coisas têm que mudar”.
Para isso, reafirmou, é preciso continuar a sair à rua e usar todas as formas de luta para denunciar a situação até que seja encontrada uma solução. Isto porque, concordando com a Ricardina, se trata de vida das pessoas. “São vidas concretas, não são vidas abstratas”, reforçou.
Em Portugal desde 1978, Braima Baldé também é do Bairro 6 de maio. O cidadão guineense, que faz hemodiálise há cinco anos, conta que foi despejado por duas vezes pela Câmara Municipal da Amadora. Para este trabalhador, face a estes atos de injustiça, a luta tem que continuar “até ao fim”. Pede ao governo de António Costa para encontrar uma solução para os habitantes do bairro.
“Parece que o único interesse é libertar o terreno para outros planos”

Entretanto, sem desmentir quão verdade é a realidade dos habitantes dos referidos bairros, Maria João, da Associação Habita, abordou uma outra face da questão. Disse que, graças à ação persistente de várias associações e movimentos de defesa dos direitos humanos, a luta dos moradores de alguns dos bairros também tem produzido algum efeito.
No caso concreto do Bairro 6 de maio, os moradores conseguiram um acordo com o Estado central, em janeiro de 2018, que assumiu a responsabilidade de albergar vários desalojados pela Câmara Municipal da Amadora.
“Neste momento há pessoas já realojadas, que antes eram consideradas sem direito”, revelou. Mas, sublinhou, o problema ainda presente é a decisão de realojar pessoas que ainda estão no referido bairro. “Pessoas que já perderem as suas casas e que foram ignoradas neste processo”, explicou. “Parece que o único interesse é libertar o terreno para outros planos”, lamentou.
Lembrou que “há uma boa quantidade de famílias que já não tem casa”. Muitas delas com crianças, doentes, “pessoas que tinham acabado de sofrer uma cirurgia e que foram despejadas”. Acrescentou que, ao longo dos últimos quatro anos, houve agressões não só ao direito à habitação, muito violentas. Nomeadamente de “pessoas que foram agredidas durante o processo de demolição”.
Perante os factos, elucidou: “a nossa luta ainda não parou”. A propósito, deu a conhecer que, na semana passada, uma representação da associação esteve no Ministério da Habitação e encontrou “alguma sensibilidade” por parte das entidades, embora não haja ainda uma resposta definitiva aos problemas levantados.
Maria João assegurou que a associação vai continuar a interpelar o Estado, uma vez que a Constituição portuguesa diz que “toda a gente tem direito a uma casa digna”. Acrescentou que o Estado tem que definir políticas para que isso aconteça. “E nós temos que fazer a nossa parte para o Estado não se esquecer que tem essa obrigação”. Há várias ideias em vista, entre as quais voltar a manifestar frente à Assembleia da República e ao Ministério da Habitação.
Marcelo Rebelo de Sousa convidado a visitar os bairros

Kumi Naidoo marcou presença na vigília que aconteceu na noite da última quarta para afirmar que, nesta luta pela justiça social, a Amnistia Internacional está solidária com todos aqueles cujos direitos não são respeitados. Avisou, antes de deixar o local, que o direito à habitação “é um direito básico fundamental para todos os seres humanos”.
Na sequência da audiência com o Presidente da República Portuguesa, o secretário geral da Amnistia Internacional deixou um apelo a Marcelo Rebelo de Sousa para este se inteirar da realidade diária dos referidos bairros.
“Apelámos ao Presidente da República para que fosse ver com os próprios olhos a situação nestas comunidades e a reação dele foi bastante positiva”, assegurou.
“Apesar de o governo afirmar que Portugal virou a página da austeridade, ainda há muito a fazer para garantir que todos os direitos humanos são usufruídos por todos”, afirma Kumi Naidoo, que antes foi um dos oradores confirmados na segunda edição do Fórum da Coragem, dedicada aos direitos humanos em África e que conta com peritos, organizações da sociedade civil e ativistas. (X)