Manuel Matola
O economista são-tomense Armindo de Ceita do Espírito Santo, um dos mais respeitados analistas independentes e estudiosos da realidade socioeconómica são-tomense a residir na diáspora, acaba de lançar um livro para clarificar “os mitos” da História de São Tomé e Príncipe. “Foi um livro pensado para os estudantes são-tomenses para que percebam e conheçam a História de São Tomé e Príncipe, de maneira a não se perderem e ficarem nos mitos e saibam que há factos que foram abordados por outros e devidamente discutidos. Há factos inilidíveis que explicam a História de São Tomé e Príncipe”, título da obra. O jornal É@GORA entrevistou-o.
Sendo economista, o que o leva a discorrer sobre uma área diferente daquela que tem estado a escrever?
[Risos] É verdade que sou economista. Um economista que decidiu escrever e publicar um livro de História de São Tomé e Príncipe (STP). Escrevi este livro porque percebi que havia um vazio que precisava de ser preenchido. Por conseguinte, entendi que havia falta de um livro de História para os jovens estudantes das ilhas e para aqueles que quisessem estudar e conhecer de uma forma rápida a História de STP.
E este livro é meramente sobre aspetos económicos ou a sobre História no geral?
É um livro de História, mas com várias outras matérias conexas. Obviamente que a História envolve várias dimensões. Tem um pouco de Economia, fala um pouco da Cultura, dos idiomas que surgiram já no início do povoamento, etc.
Não é uma matéria de todo nova, mas há aqui seguramente uma abordagem diferente. Em que é que difere esta das outras obras sobre a História de STP?
Exato, há muitos trabalhos feitos, com muito boa qualidade sobre a História de STP. Este livro aproveitou em certa medida muito desses trabalhos, mas tem a vantagem de apresentar uma narrativa completa desde a descoberta das ilhas até meados do século XIX e uma abordagem completamente diferente do que é habitual. Na verdade, a História é isso mesmo: cada um escreve de acordo com a sua perspetiva e narrativa. Haverá, eventualmente, alguns pontos de diferença, mas, no essencial, essas diferenças confirmam a linha-mestra de investigação sobre a História de STP. Por conseguinte, não haverá propriamente uma divergência com os outros autores que escreveram sobre os mesmos factos. É uma abordagem diferente.
E estamos a falar de períodos que cobre que anos? E a começar pela presença dos portugueses em 1470 a esta parte?
Por ser um livro de História e por haver um vazio em STP em relação a um livro de História que não existia até aqui, este livro aborda desde a descoberta. Explica mesmo como é que os portugueses chegaram as ilhas e o que é que lá fizeram nas duas ilhas: a de São Tomé e a do Príncipe. Ou seja, vai desde a descoberta da Ilha de STP até meados do século XIX. É evidente que haverá um outro livro que vai abordar – ainda não saiu, que sairá no próximo ano – dos meados do século XIX até o fim da presença portuguesa em STP.
E a seguir a isso?
Haverá um outro que virá mais tarde e que abordará temas do período de transição até à atualidade.
Que experiências se podem tirar deste livro – já percebi que é uma trilogia – que possam ser usadas hoje ao ponto de olharmos para aquilo que foi o passado colonial e pode ser útil nesta nova realidade?
Permita-me, antes de mais, dizer que esta obra é um contributo que eu quis dar a São Tomé e Príncipe e aos são-tomenses porque entendi que estando eu em Portugal tenho mais facilidades de acesso à informação para escrever um tal livro que entendi que faz falta aos são-tomenses que vivem em STP, sobretudo os jovens estudantes. Daí a preocupação que tive em escrever este livro porque – como disse atrás – havia um vazio em relação a isto. Quanto à questão que me coloca, digamos que há algumas questões sobre as quais se podem refletir e procurar encontrar, em certa medida, uma ligação com o que hoje se passa. Foi justamente isso que procurei fazer ao estudar a História de STP. Procurei investigar para eventualmente encontrar pistas que explicassem o que acontece ainda hoje em STP, nomeadamente as dificuldades de relacionamento e de entendimento para definir uma linha de rumo para desenvolver STP. Desde logo, a questão dos conflitos que foram presentes e permanentes em STP desde o povoamento até meados do século XIX. Outra questão são as hierarquias. Como é que elas foram concebidas e como é que o seu funcionamento gerou conflitos. Estas são questões fundamentais e ocorrem nos dias de hoje com maior ou menor intensidade.
Estas questões vão contra aquilo que é a narrativa atual relativamente à História de STP que é conhecida, ou é apenas um complemento à forma como foi contada até aos dias de hoje?
No que respeita aos conflitos, o que é relevante para a atualidade é aquela vertente que envolveu as principais famílias nativas de são-tomenses numa luta constante pelo acesso ao poder para controlar as instituições políticas e de administração e as fontes de riqueza. Este tipo de conflito continua atual. Ainda hoje é frequente verem-se líderes políticos de forças políticas dominantes procuram chegar ao poder para controlarem os bens públicos, na maioria das vezes em seu benefício.
É uma relíquia colonial?
Eu não diria que é uma relíquia colonial, mas sim uma relíquia de marca africana porque, nessa altura, quando as famílias nativas começaram a disputar o poder nas ilhas de STP, as elites dominantes eram constituídas pelos nativos são-tomenses (mestiços e forros). Os europeus e seus filhos mestiços afortunados já tinham deixado as ilhas para se fixarem no Brasil desde os finais do século XVI. Por isso, eram já os próprios nativos que dominavam e controlavam as instituições de poder e a economia. Esta forma de ver e gerir a sociedade é mais tipicamente africana do que europeia e ressurgiu no período pós-independência.
O que fez com que mantivesse e levasse ao ressurgimento desta forma de estar e de ser destas famílias com algum poder económico em STP?
Penso que isso tem mais a ver com questões culturais. Como se sabe, as ilhas de STP são duas ilhas pequenas e isoladas onde a pobreza foi sempre grande. Num tal ambiente, as pessoas tendem a lutar pela sobrevivência o que caracteriza uma cultura precária e reativa tipicamente de sobrevivência que é geradora de comportamentos que levam a tais conflitos.
Relativamente ao facto de no regime colonial Portugal tem tentado, segundo reza a História, pôr de lado as formas de vivência dos povos por onde Portugal passou e colonizou, qual é a interpretação que tem quando olha para esta forma de resistência – se é que se pode chamar – ao ponto de hoje termos este tipo de experiências a ressurgir?
No que respeita a STP, de acordo com os dados históricos, foram os portugueses que povoaram as ilhas e, por conseguinte, introduziram o seu próprio modelo que já existia em Portugal. Foi este modelo que foi experimentado no processo de colonização de STP. O povoamento foi feito com africanos provenientes de vários pontos de África, para além daquela vinda europa. Nesse sentido, é natural que o colonizador implementasse o seu próprio modelo, o que vigorava no seu país de origem, e assim impusesse o mesmo aos escravizados africanos de maneira a perpetuar a dominação.
Mas quando disse há pouco que a preservação daquilo que eram os hábitos culturais africanos – para o caso de STP -, a minha pergunta é: neste processo de modernização do Estado sendo que o regime de Portugal esteve lá no espaço territorial são-tomense e tentou introduzir algumas mudanças, o que faz com que haja ainda esta forma de ser e de estar de STP que depois venha a revigorar nesse período de transição e nos dias de hoje, como estava a explicar?
Em minha opinião, as razões que levaram ao ressurgimento desses valores culturais africanos derivaram da saída dos portugueses para o Brasil, na sequência da decadência económica, e terem deixado as ilhas nas mãos das famílias africanas. Estas famílias nunca esqueceram os seus valores de origem e assim que os dominadores colonialistas saíram reintroduziram esses mesmos valores tipicamente africanos. Por outro lado, as dificuldades económicas por que passaram a viver, desde o século XVII, podem ter alimentado um comportamento de luta pela sobrevivência, num contexto de grande pobreza, pequenez e de isolamento, características que ainda hoje existem na sociedade são-tomense.
“Nós não podemos inventar coisas quando nós temos dados factuais”
Neste seu livro aborda também as crises, como revoltas nesse período de transição. Quais são os dados novos que pode avançar cá que têm a ver com as crises e revoltas; como foram elas encaradas e fazendo aqui a ponte, novamente, com a necessidade de ilações que se possa tirar destas todas crises e revoltas?
[Risos] As revoltas aconteceram num contexto histórico específico em que havia, por um lado, os que dominavam o poder e impunham as suas regras e vontades, e os dominados que eram obrigados a cumpri-las. É natural que num tal contexto, os dominados tentassem reagir face à enorme opressão a que estavam submetidos. Foi neste ambiente que surgiram as revoltas. Portanto, as revoltas surgem porque o modelo escravocrata colonial era repressivo, um modelo que exigia muito dos escravizados.
Disse que este livro foi feito com base em informações que estão disponíveis também em Portugal e que provavelmente os outros historiadores não terão tido acesso. Há muito por falar e dizer sobre a História de STP?
Eu não disse que os outros historiadores não tivessem acesso.
Ou seja, não abordaram
Sim, refiro-me aos são-tomenses. Não me refiro a outros estudiosos, portugueses, da Europa ou de outros continentes. Refiro-me concretamente aos de STP. Eu acho que estou numa situação privilegiada porque tenho acesso a muitas informações comparativamente aos que vivem em STP. Olhando também para este facto, senti-me um pouco pressionado pela necessidade lá existente da falta de um livro de História e isso levou a que me preocupasse em escrever este livro.
E a pergunta mantém-se olhando para aquilo que é a informação que teve. Questiono: há muito por dizer daquilo que encontrou em termos de informação?
Eu penso que não.
Esgotou nesse livro [Risos]
Vamos lá a ver: os assuntos tratados neste livro nós encontramo-los em outras obras, em outros trabalhos de outros investigadores. Eu não sou historiador. Sou um economista que se aventurou em escrever um livro de História para preencher uma lacuna que havia em STP. Um livro que contém muita informação útil para os jovens, estudantes e todas as pessoas que queiram estudar e ter conhecimento da História de STP. Foi esta a minha preocupação. Não havia um livro de História de STP onde se podia rapidamente estudar e ter o conhecimento da História do país, nomeadamente saber como é que os portugueses chegaram às ilhas, o que é que lá fizeram, o que aconteceu durante a sua permanência, como é que surgiram os grupos socio-raciais, os conflitos, quando e por que razão abandonaram as ilhas, o que aconteceu a seguir, etc. Na verdade, senti-me na obrigação de escrever este livro de maneira a contribuir para o bem dos são-tomenses e das pessoas que quisessem conhecer melhor a História de STP. Há uma questão muito importante que este livro resolve: é a questão dos mitos que ainda subsiste em STP em determinados aspetos da História do país. Como sabe, os mitos não ajudam a compreender os dados factuais da História. Eles atrapalham o conhecimento da História e liquidam os valores identitários de um país, de um povo. Este livro tem o mérito de desconstruir os mitos e proporcionar aos jovens e outros um instrumento para a reconstrução dos seus valores identitários. A verdade da História de STP.
Quão tentado terá sido o economista a abordar esta História de STP do ponto de vista económico e não do ponto de vista histórico enquanto esteve a produzir a obra?
Bom, para melhor compreender a Economia e o desenvolvimento de um contexto é importante que nós conheçamos a História, que é uma das dimensões do desenvolvimento. Em geral, o economista sente a necessidade de conhecer a História para melhor explicar o desenvolvimento. O conhecimento da História faz com que estejamos em melhores condições para explicar porque o país não se desenvolve; o que terá acontecido no passado que tem reflexos no presente? … É importante que se conheça o passado histórico para se perceber porque é que hoje não se avança? Ou porque é que subsistem certas dificuldades em determinadas matérias?
A abordagem que está a fazer neste livro tem algum equilíbrio de fontes primárias de STP e fontes primárias de Portugal. Qual é o peso e o contrapeso que pode apontar do ponto de vista de informação de base?
O período que eu abordei vai da descoberta até meados do século XIX. Nesse período, as ilhas de STP eram territórios portugueses. Portanto, os dados e as fontes são os que se encontram em Portugal: no Arquivo Histórico Ultramarino, na Torre de Tombo, Biblioteca Nacional. É nestas instituições que se encontra o essencial da informação. E evidentemente nos trabalhos dos especialistas que estuam São Tomé e Príncipe.
Em que período foi escrita essa obra: foi nesta fase pandémica, ou já estava a escrever?
Acredito que, por não ser historiador de formação, precisei de mais tempo para recolher e tratar dados, do que outros que são historiadores.
E quanto tempo?
Levei muitos anos a estudar STP desde a descoberta até ao fim do regime colonial.
Quantos anos?
Cerca de sete anos.
E estamos a falar de uma obra com quantas páginas?
Este livro tem cerca de 280 páginas.
Dentro desta trilogia pensa andar à volta destas páginas ou não sabe ainda qual o futuro?
Sim, sim, os outros livros terão mais ou menos o mesmo número de páginas. Bom, queria clarificar mais uma vez que a minha preocupação central nesta obra foi tentar preencher um vazio. Levá-lo ao conhecimento de jovens são-tomenses. Foi um livro pensado para estudantes, os são-tomenses para que percebem e conheçam a História de STP. Para que não se percam e fiquem nos mitos [e saibam] que há factos que foram abordados por outros, há factos que foram discutidos, há factos, enfim, inelidíveis que explicam a História de STP. Factos que correram e que há documentos que sustentam estes factos e que não se pode explicar a História fora destes factos que existem. Nós não podemos inventar coisas quando nós temos dados factuais, temos documentos que explicam aquilo que aconteceu. Esse livro vem, portanto, clarificar isso junto dos são-tomenses. É este o meu papel, foi isso que eu quis fazer. Digo: é um contributo que dou. Espero que outros que estejam numa situação mais bem colocados do que eu façam melhor.
Além destas fontes documentais que usou terá contado com a contribuição de outras pessoas para a produção da obra?
Para já contei com trabalhos de alguns historiadores e especialistas portugueses e estrangeiros. Além disso, durante a elaboração do livro, pedi a outros especialistas que lessem e opinassem durante a feitura do livro. Discuti algumas matérias com alguns outros especialistas. Melhores especialistas. Não digo todos, mas alguns. Aliás, eu faço referência disso logo na entrada do livro.
O livro lançado na segunda-feira, dia 29. Quando estiver a falar para ser o seu auditório qual vai ser a principal mensagem que irá passar?
Eu não vou sair muito deste registo. Vou explicar que foi um contributo que eu quis dar à ilha de STP, aos ilhéus são-tomenses e sobretudo mostrar que é sempre possível fazer qualquer coisa para ajudar os são-tomenses, desde que nós queiramos e tenhamos disponibilidade para o fazer. É sempre bom que contribuamos, cada um à sua maneira, no seu posto de trabalho, naquilo que melhor sabe fazer, para o bem de STP e dos são-tomenses. (MM)
[…] e do Príncipe” que terá como orador o economista Armindo de Ceita do Espírito Santo, autor do livro “História de São Tomé e Príncipe”, recentemente lançado em […]