Manuel Matola
A cabo-verdiana Anyse Pereira nunca desistiu do objetivo que definiu para a vida académica: ser cientista. Hoje é embaixadora do ´Next Einstein Forum` (NEF) para Cabo Verde, de onde fala sobre o presente e futuro deste campo do saber no Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência.
A 11 de fevereiro, as Nações Unidas celebram a data para promover o acesso e participação plenos na Ciência para mulheres e raparigas, bem como alcançar a Igualdade de Género na Ciência, um propósito que converge com o do ´Next Einstein Forum`, cujos valores assentam na ideia de que “o próximo Einstein será africano”, quer seja um homem ou uma mulher residente em África ou na diáspora.
Ao jornal É@GORA, Anyse Pereira lembra um mandato de embaixadora cumprido quase todo sob as restrições impostas pela pandemia da Covid-19, sobretudo no biénio em que vigorava a sua missão: 2019-2021.
No ano que agora começou, a cientista ainda assegura o cargo mas até à indicação do próximo representante, pelo que continua a ser o rosto global da organização pan-africana no arquipélago cabo-verdiano, onde a nível do ensino superior “há muito mais mulheres do que homens a estudarem nas áreas STEM”, um acrónimo em língua inglesa para Science, Technology, Engineering e Mathematics.
E por haver “muito mais mulheres” a optarem pelas disciplinas educacionais em “Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática”, a embaixadora NEF naquele país lusófono acredita que o resultado será a consciencialização de que “não há motivo nenhum para o próximo Einstein não ser africano ou ser uma mulher” até porque, de resto, “não há impedimento nenhum”.
“E”, diz, “se calhar, até temos muitas mulheres mesmo para vermos como exemplo de que as mulheres podem fazer ciência. Não há limitações cognitivas, nem intelectuais. Se calhar haja limitações culturais que por vezes faz com que a mulher tenha uma jornada dupla. Mas, eu sou mulher, sou mãe, sou esposa e sou cientista”.
Instada a explicar como se contorna a jornada dupla da mulher com as tarefas académicas visando buscar a excelência na área da ciência, Anyse Pereira aponta uma estratégia pessoal que sempre usou.
“Vou falar por mim: é preciso ter força de vontade, ter foco, metas e saber o que se quer” na vida.
Criada pela mãe num contexto de família monoparental, Anyse Pereira encontra nessa condição de filha que cresce sob alçada de “uma mulher independente” um incentivo para ter tido a exata “noção de como evitar estar dependente de homens”. Portanto, assegura, “desde criança sempre soube que queria ser cientista”.
Três conselhos par ser cientista
Anyse Pereira deixa três conselhos de como se pode ser cientista:
Primeiro, procurar saber o porquê das coisas. É muito importante, pois vais acabar por fomentar a curiosidade. Usando uma metáfora: a curiosidade é um músculo que tem de ser treinado. Treina a tua curiosidade: se quiseres saber o porquê das coisas, por que as coisas são assim já é um grande passo.
Segundo: Ter uma meta e um plano. Não um sonho, pois estou a pressupor que já se tem. Um sonho parece uma coisa inalcançável, mas quando planificamos e quando temos metas já há um caminho a seguir. Podemos reconhecer se estamos a ir bem ou não.
Por último: Comemorar as pequenas vitórias. Isso é muito importante em todos os processos da vida, quer seja para ser cientista ou não. Mas se queremos ser cientistas também temos que comemorar as pequenas vitórias. Quando tiveres 16 valores num teste e no próximo tiveres 17, parabeniza-te a ti mesma. Por exemplo, quando eu trazia os testes da escola, mesmo que tirasse 20 valores, a minha mãe dava os parabéns, mas dizia: ´não fizeste nada mais do que a tua obrigação`. E a seguir dizia: ´vai comer!` Eu tive que aprender a congratular-me. Durante o mestrado e agora no doutoramento, eu comemoro as pequenas coisas que eu consigo alcançar: compro para mim um sumo, vou ao cinema (sozinha), fico feliz. Olho-me ao espelho e digo: muito bem, fizeste bem, para eu ter noção de que eu estou avançar e que estou a fazer uma coisa digna de ser reconhecida e louvada porque nós merecemos isso também.
Hoje Anyse Pereira desenvolve uma pesquisa virada para a vertente da conservação dos recursos genéticos de Cabo Verde, no âmbito do programa de doutoramento multidisciplinar em Saber Tropical e Gestão, fruto de um consórcio internacional informal que reúne a Nova School of Business and Economics (Nova SBE), o Instituto Superior da Agronomia, o Instituto de Higiene e Medicina Tropical e algumas universidades lusófonas africanas e a Universidade de Pretória.
O doutoramento “é voltado para a agricultura, clima e ambiente ligados às questões de gestão” e tem um objetivo: “criar cientistas com conhecimentos de gestão, business e economia para poder alcançar lugares de liderança nos próprios países ou em organizações internacionais”, resume Anyse Pereira sobre um curso “concebido para alunos muito motivados de diferentes contextos e áreas de formação e profissionais que seguem carreira relacionadas com questões de desenvolvimento global”, segundo refere a Nova SBE na sua página oficial.
A embaixadora NEF tem uma formação de base em Farmácia e tirou mestrado em Genética Molecular e Bioquímica, áreas que hoje ao cruzar com a de conservação de recursos genéticos de Cabo Verde também a permitiram desenvolver, por exemplo, um trabalho colaborativo na ciência sobre a validação do conhecimento da medicina tradicional, segurança alimentar e valorização das plantas nativas (não comestíveis).
O doutoramento que se segue numa das escolas portuguesas mais prestigiadas a nível mundial “combina competências de gestão com ciências naturais e ambientais virado para empreendedores, inventores, inovadores e empresários demonstrarem as suas ideias inovadoras e apresentarem os seus projetos e processos a potenciais investidores, mentores, instituições governamentais e ao público em geral”, lê-se no sítio da Nova SBE.
E num breve exercício de comunicação de ciência – um dos propósito do ´Next Einstein Forum` -, Anyse Pereira explica em quase um minuto e meio o essencial do projeto académico que desenvolve no programa doutoral.
“A minha pesquisa tem três aspetos: o da valorização dos conhecimentos da medicina tradicional – que é basicamente ver as plantas que são utilizadas na medicina tradicional e testá-las contra modelos de doenças para ver se de facto têm algum efeito terapêutico”.
O propósito da investigação é o de perceber até que ponto as plantas endémicas de Cabo Verde podem ser utilizadas para tornar mais resilientes os seus parentes mais economicamente relevantes.
“Já testamos contra a malária, contra micróbios, fungos para ver se são antidiabéticos e vários outros insights. E também tem a valorização de recursos genéticos de plantas que são endémicas em Cabo Verde, que não são comestíveis mas que são parentes próximos de plantas economicamente importantes, por exemplo, das couves, brócolos, repolho, rúcula. São plantas que estão muito mais adaptadas às condições de stress de temperaturas, stress salino, solos secos do que essas que são economicamente importantes que são comestíveis mas que são menos resilientes às dificuldades do clima”, diz.
No âmbito da pesquisa científica liderada pela sua orientadora do doutoramento mas que é baseada no trabalho de mestrado de outros dois colegas, Anyse Pereira participou como autora na investigação em Cabo Verde, onde o grupo fez um estudo com feijões, nomeadamente, feijão pedra, extremamente nutritivos, mas que “são culturalmente associados à pobreza porque lembra, por exemplo, a fome de 1947”.
Essa conotação negativa acontece, sobretudo, na altura “quando as famílias não têm alimentos e vão buscar aos bidões onde se acumula e se conserva esses feijões. Então, as pessoas quando já têm um bocadinho mais de condições e [alcançam o estatuto socioeconómico de] classe média já querem se afastar desse tipo de alimentos e consumir por vezes alimentos que são processados porque relacionam o tal alimento com status. É uma questão cultural”, afirma.
Num exercício mais imersivo à sua tese de doutoramento, a investigadora explica por que se está a focar mais na validação da medicina tradicional africana, a que em Cabo Verde inclui os chamados remédios da terra.
“São unguentos, poções, chás, infusões, emplastros, banhos com ervas que foram muitas vezes utilizados porque a população não tinha acesso à medicina convencional, mas sobreviveu até agora. O que eu utilizo como introdução na minha tese é: sabendo que o ser humano evoluiu a partir de África, então a medicina tradicional africana é a medicina mais antiga que existe e por causa dela estamos vivos até agora. É que, utilizando essas plantas e esses métodos, foi possível garantir que o ser humano tivesse alguma arma para combater as diversas doenças crónicas, ou agudas existentes em África. Então é preciso que haja valorização deste conhecimento”, considera.
Até porque, segundo a cientista, há exemplos de sucesso a seguir, a começar pelo da “medicina tradicional chinesa que é uma indústria que move milhões de dólares todos os anos” e o da “medicina tradicional da Índia que está a ser muito rentabilizada”.
A hipótese remete para uma das perguntas de partida a serem respondidas durante a investigação: “Por que a medicina tradicional africana – que pelo que tudo indica é a mais antiga do que essas que dei como exemplo – não poderá ir por esse mesmo caminho?”, questiona.
A busca por uma resposta por parte de Anyse Pereira tem um propósito: “é que haja uma emancipação a todos os níveis e se diminua a dependência de África por outros países, incluindo na ciência. Nós temos os nossos problemas. Por exemplo, temos a ébola, doenças endémicas, mas [ainda assim] hoje esperamos que as respostas venham de fora. Então, alguma coisa não está bem nesse pensamento. [Talvez a tal coisa] comece pela igualdade de oportunidades no acesso ao conhecimento”, afirma.
A produção da ciência é um trabalho solitário, mas o consumo do que resulta da investigação obedece a uma regra grupal através de um exercício de validação da investigação no meio científico.
Apesar de reconhecer a importância dos vários benefícios que a medicina tradicional oferece, a pesquisadora considera que as inovações realizadas pelos saberes alternativos devem seguir um dos principais preceitos científicos: a validação pelos pares.
A ideia é evitar a repetição do que assistiu, em plena época pandémica, quando Madagáscar criou a Covid-Organics, o Presidente malgaxe, Andry Rajoelina, incentivou o consumo massivo da bebida feita à base da planta artemísia (Artemisia annua), mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) rejeitou exigindo que as plantas medicinais que estavam a ser consideradas como possíveis tratamentos para a COVID-19 devessem “ser testadas para determinar a sua eficácia e os seus efeitos adversos”, gorando as expetativas do líder da africano de comercializar o chá malgaxe a nível global.(MM)