“Sou um músico migrante” – António Marcos

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Bernardo Domingos, Antonio Marcos (centro) e o agente Joni Schwalbach

Hoje vive apenas da música. É daí que viaja pelo mundo. Diz que já percorreu quase a metade da Europa, indicando algumas referências culturais e históricas de países como Portugal, França, Holanda, Itália, Inglaterra, Suíça ou Alemanha e Áustria. Na América, lembra-se do Brasil e afirma que o Norte de África é como se fosse sua casa. António Marcos é hoje uma marca artística de renome que galga muitos palcos fora de Moçambique, levando consigo a força genuína da marrabenta.

António Marcos Matusse é o seu nome de nascimento. Natural de Xai-Xai, província de Gaza, adotou António Marcos como nome artístico por uma questão de fidelidade ao seu pai Marcos. Quis assim criar uma marca.
Na sua família ninguém foi músico. É músico de nascença, tal confessa na entrevista concedida ao Jornal É@GORA em Sines, onde deu um concerto este sábado, 27, integrado na 21ª edição do Festival Músicas do Mundo (FMM).

O gosto pela música começou aos oito anos de idade. Conta que fizera uma guitarra com recurso a uma lata de azeite de oliveira de um litro que usava para espantar os macacos. Só não foi trovador por obediência à família. Porque os trovadores são músicos que saem e nunca mais regressam. “A minha mãe não queria isso”, lembra.

Mais tarde, quem viria a oferecer-lhe uma guitarra da marca “Galo”, comprada na África do Sul, é o tio. Foi então que partiu para Lourenço Marques, em 1963, onde foi juntar-se a alguns rapazes da sua geração. O então «cozinheiro dos portugueses na era colonial», como faz questão de dizer, ainda não pensava seguir a carreira de músico.

Sete anos mais tarde, no Jardim Dona Berta Carvalho Lopes na então Lourenço Marques, hoje Maputo, surge um empresário que o ouviu a tocar e acabou por solicitar os seus trabalhos. Viria a gravar nas Produções Golo Fonseca. No mesmo ano trabalha nas Produções 1001, de Fernando Ferreira. Sem se dar conta as suas músicas começaram a expandir-se.

Só depois de gravar o primeiro álbum, vendido na FACIM – Feira Internacional de Moçambique – é que viria a perceber que tinha uma veia artística virada para a música. Não tem ideia de quantos discos é que produziu, entre os Long e Single Play (em vinil), ainda na era colonial. Só no ano 2000 entra no mundo dos CD’s. Aí lembra-se que produziu oito discos.

Domina o ritmo e o solo. O tambor é o instrumento tradicional que mais gosta. As canções são todas de sua autoria, inspiradas nos seus sonhos, mas também no que vê e escuta no dia a dia dos moçambicanos. «São temas que têm a ver com a vida social, que se preocupam com os problemas das pessoas», conta. Tem vários temas que retratam isso.

«Podes ir viver para a cidade, mas não te esqueças do campo».

Dá o exemplo de “Ma Aldeia” (Na Aldeia, bairro). O tema retrata as migrações internas, nomeadamente o fenómeno do abandono do campo para a cidade ocorrido com a independência. Fala do camponês que planta, cria e trata de animais enquanto que aquele que vive na cidade “apenas engraxa sapatos, pisa o asfalto e sobe para o seu condomínio no primeiro ou segundo andar”.

Em changana – a língua do sul de Moçambique que usa nas suas músicas – cita uma das partes da canção: “O meu coração não está na cidade/ O meu coração está na terra a sul do Rio Limpopo/ Nós criamos e cultivamos/ Não podes criar um boi nem um cabrito na cidade/ Se criares um boi vais comprar botas para calçar o boi/ Se criares cabrito vais comprar soca para ele/ Até vais escovar os dentes desses animais na cidade…”.

Explica a essência da sua crítica social. Todo o mundo corre para a cidade esquecendo que tudo o que tem em redor são terrenos de onde se podem colher alimentos diversos, enquanto que lá na cidade só se regam as flores. «Podes ir viver para a cidade, mas não te esqueças do campo», exorta o músico, considerando que «o campo é a fonte da alimentação da cidade».

“Há muitos jovens que gostam da marrabenta. Os preguiçosos correm para o computador”

Quatro décadas depois da independência, “Moçambique progrediu muito”, diz, apesar dos obstáculos. Tal como no passado, “há coisas boas e coisas más”. Defende que é músico e não político. Como artista – insiste –, canta tudo que vê. Para o festival de Sines, onde já esteve antes, em 2002, integrado no grupo Mabulu, trouxe agora em nome próprio tudo o que tem na bagagem, embora tenha consciência que não iria ter espaço suficiente para apresentar o leque das suas criações.

Participar neste festival “Músicas do Mundo” é, para ele, “uma honra”. “Eu sinto que as minhas músicas também estão no mundo”, afirma.

Estar em Sines é, igualmente, um lugar que serve para contactos, troca de experiência e de conhecimento com outros músicos. “Gosto muito de ter essa aproximação, esse diálogo com os outros”, porque é uma via para mais aprendizagem e intercâmbio. Na sua opinião, “não há músicos pequenos e músicos grandes. Músico é músico”.

Nessa qualidade, é fiel à marrabenta. Não é música de computador. É um estilo produzido ao vivo com base original. “Eu sou da marrabenta, não largo a marrabenta”, diz firme e convicto. “Se largo a marrabenta vou para o alheio”. Então prefere manter-se fiel à tradição moçambicana rica em diversidade cultural. “Isso está no sangue”, sustenta com insistência.

Veio de Moçambique acompanhado do seu agente, Joni Schwalbach, também músico, e faz referência em forma de elogio aos seus filhos e a outro acompanhante, Bernardo Domingos (solo, ritmo e baixo), filho de Chidiminguana, outro grande e antigo artista da marrabenta.

À geração jovem tem transmitido o que sabe para perpetuar este ícone cultural. Tem trabalhado muito a favor da preservação da marrabenta, para que o ritmo e esta dança não desapareçam no xadrez da cultura moçambicana.

“Há muitos jovens que gostam da marrabenta. Os preguiçosos correm para o computador. Mas os bons vão à guitarrada”, afirma em tom de desafio o antigo campeão nacional de pugilismo.

Diz ser um “músico migrante, viajante”. Galgou o Norte de África, que conhece como a palma das suas mãos. Passou por quase metade da Europa, assim como não se esquece do Brasil. É vasta a lista de países onde tocou.

Basta conferir o seu passaporte como sugere, assumindo-se já como um músico de renome internacional, que vive só de música.

Tem novos projetos em mãos mas, no meio de risos, prefere não fazer qualquer tipo de divulgação prévia publicamente para não lhe roubarem as ideias. “Tenho um projeto na bagagem”, confirma ante a nossa insistência.

No entanto, faz questão de repetir que este “está semi selado” guardado a sete chaves. Tais novos projetos “só serão conhecidos na hora certa”, reafirma determinado. (X)

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