Manuel Matola
A ex-deputada Joacine Katar Moreira é a vencedora deste ano do Prémio Mulher Referência Chá de Beleza Afro (CBA), a maior plataforma de promoção e empoderamento das mulheres africanas e afrodescendentes em várias esferas da sociedade portuguesa.
“A história de vida de Joacine é um caso de estudo”, resume a ativista Neusa Sousa ao justificar ao jornal É@GORA o galardão que será entregue esta sexta-feira no âmbito do projeto CBA, um espaço de networking que no ano passado atribuiu o prémio a ex-ministra da Justiça e da Administração Interna de Portugal, Francisca Van-Dunem.
A fundadora da iniciativa Chá de Beleza Afro, Neusa Sousa, explicou que Joacine Katar Moreira é uma referência não só pelo contributo para a democracia, ao desempenhar o cargo de deputada, como também “pela coragem” que teve de enfrentar num Parlamento português figuras políticas que literalmente a mandaram de volta para a sua terra de origem, a Guiné-Bissau.
Em 2020, o deputado André Ventura, líder do Chega, partido da externa-direita e anti imigração, propôs por duas vezes a deportação da deputada Joacine Katar Moreira para o país de origem, depois de a Justiça portuguesa o ter multado em 438,81 euros por discriminar ciganos, numa publicação feira na rede social Facebook.
Joacine Katar Moreira reagiu considerando que a multa aplicada a André Ventura correspondia ao preço “de um amendoim”.
Numa publicação partilhado na rede social Facebook, Joacine Katar Moreira referiu que a multa de “438,81 euros nem sequer é metade do custo de um ‘outdoor’ que o Chega tem aos montes espalhados pelo país”, aliás, “438,81 euros, o preço da multa, é o preço de um amendoim para André Ventura, que cospe sobre uma comunidade inteira há anos e sai impune”.
E durante toda a legislatura, Joacine Katar Moreira foi alvo de várias ameaças, vítima de insultos racistas nas redes sociais e alvo de discriminação racial, cuja pena máxima é de cinco anos de prisão. Até hoje não há registo de casos julgados relacionados com a ex-deputada.
“Joacine desafiou o destino que está traçado para as mulheres negras em Portugal e a sua existência, causou incómodos”, afirma Anizabel Amaral, amiga pessoal da ex-deputada para quem “Joacine Katar Moreira merece o prémio que hoje lhe é entregue pelo CBA”.
Exemplifica: “É uma mulher que foi eleita pelos portugueses para representação parlamentar, um lugar que muitos consideraram que não lhe estava destinado. Enganaram-se! Joacine desafiou o destino que está traçado para as mulheres negras em Portugal e a sua existência causou incómodos. Os mesmos incómodos que causam grandes líderes que põem em causa um sistema social estruturalmente racista e no qual as instituições cooperam para manter o silenciamento e invisibilidade das comunidades que são vítimas de discriminação”.
Reagindo a homenagem que será feita à historiadora Joacine Katar Moreira, Prémio Mulher Referência CBA 2023, Anizabel Amaral afirma que “a defesa intransigente da liberdade e da igualdade trouxe multidões em sua defesa” e aponta uma razão: é “porque somos muitas as pessoas na defesa dos direitos humanos”, diz.
“No Parlamento português haverá sempre um antes e um depois da Joacine Katar Moreira” – Franscisca Van Dunem
Comentando a homenagem, a ex-ministra da Justiça e da Administração Interna de Portugal, Francisca Van-Dunem, é perentória: “No Parlamento português haverá sempre um antes e um depois da Joacine Katar Moreira” a quem atribui virtudes políticas e não só.
“A Joacine Katar Moreira tem quatro qualidades que raramente se conjugam. Aquilo que costumo designar por FACC: Formação, autoconfiança, carácter e coragem. Por isso foi capaz de conceber a estratégia que esteve na base da sua eleição para deputada e, uma vez vitoriosa, no Parlamento, afirmou, orgulhosamente, a sua identidade de mulher e de mulher negra, erguendo a sua voz e trazendo para o debate político agendas essenciais ao fortalecimento da democracia política e social, como a nacionalidade de quem vê a luz do dia em território nacional ou as desigualdades que afetam os imigrantes (em particular as mulheres) e as minorias étnicas. No Parlamento português haverá sempre um antes e um depois da Joacine Katar Moreira”, refere Francisca Van-Dunem.
Num artigo exclusivo para o jornal É@GORA, a ativista brasileira Rita Cássia lembra o percurso e o contributo da ex-deputada na História da democracia de Portugal, onde “nenhuma outra Mulher na história da política portuguesa vivenciou o que Joacine Katar Moreira enfrentou através dos discursos de ódio que foram proliferados nas redes sociais e na comunicação social”.
Quando o partido LIVRE retirou confiança política a Joacine Katar Moreira, a jurista Miriam Sabjaly foi, entre março de 2021 e março de 2022, assessora política da então deputada no Parlamento, fruto da sua experiência como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado.
Em declarações ao jornal É@GORA, Miriam Sabjaly assegura: “Joacine Katar Moreira foi – e é – uma figura de referência no movimento anti-racista em Portugal nos últimos anos”.
E lembra o quotidiano de uma deputada não inscrita que mesmo “envolta num clima constante de perseguição pública e política, hostilidade e desumanização, nunca deixou de trabalhar, nunca deixou de dar tudo o que tinha, pondo-se a si mesma em segundo plano em virtude de uma ambição: a de construir um Portugal mais Diverso, mais Justo, mais Igual”.
E acrescenta: “Como primeira mulher negra a liderar uma lista eleitoral nas Eleições Legislativas de 2019 e a ser eleita como Deputada na XIV Legislatura na Assembleia da República, adotou sempre um compromisso inabalável com o programa eleitoral pelo qual foi democraticamente eleita, sempre com um objetivo em mente: o de melhorar a qualidade de vida das comunidades marginalizadas em Portugal, em particular das pessoas negras e ciganas, cuja vivência é marcada por múltiplas e sobrepostas formas de discriminação, violência e precariedade. É pela Joacine que falamos de Feminismo Interseccional, é graças ao seu trabalho que nos abrimos para um movimento que reconhece que é indispensável centrar a experiência de mulheres negras, mulheres ciganas, mulheres muçulmanas, mulheres trans para alcançar a libertação de todas”.
Joacine Katar Moreira foi, entre os 230 deputados, a mais escrutinada parlamentar da última legislatura e, quiçá, da democracia portuguesa desde a revolução de abril de 1974.
A jurista Miriam Sabjaly aponta, no entanto, para um mandato “marcado por inúmeras conquistas”, desde “a homenagem a Aristides de Sousa Mendes, a proteção das vítimas de crimes de ódio, a elaboração da Lei de Bases do Clima” e, “sobretudo, por uma enorme alegria, generosidade, revolução, comunidade e progresso”.
Em declarações ao jornal É@GORA, Carla Fernandes, escritora e produtora cultural, diz que Joacine Katar Moreira “é uma mulher à frente do seu tempo e observante de tradições”, pelo que aponta um impacto desse exercício.
É “o que faz com que na sua presença tenhamos acesso a uma ideia do que é o exercício da nossa humanidade enquanto mulheres, enquanto mulheres negras, enquanto seres humanos”, considera Carla Fernandes que, num registo mais pessoal, sentencia: “Para mim, Joacine Katar Moreira é das mulheres negras mais icónicas da segunda década século XXI da sociedade portuguesa”.
Da convivência com Joacine Katar Moreira, descreve “o seu sentido de humor” que “é tão apurado quanto a sua capacidade de abraçar qualquer desafio intelectual. E é precisamente nessa versatilidade, nesse abraçar de múltiplas possibilidades de ser que o seu carisma se revela”.
Quando em 2019, os eleitores portugueses escolheram os 230 deputados ao Parlamento, Portugal registou um marco histórico no que diz à representatividade feminina e étnica ao eleger três mulheres afrodescendentes: Joacine Katar Moreira, foi a primeira cabeça de lista de um partido (o LIVRE) nas legislativas portuguesa que passou a contar com Romualda Fernandes (PS) e Beatriz Gomes Dias (BE).
Representando diferentes bancadas, o trio conseguiu influenciar a agenda política em Portugal, fazendo aprovar uma nova Lei da Nacionalidade, que mudou o regime jurídico português que corrigiu “uma injustiça histórica com quase 40 anos” no que concerne, sobretudo, à situação legal dos afrodescendentes em Portugal.
Com a saída de Joacine Katar Moreira e de Beatriz Gomes Dias do hemiciclo, a deputada socialista Romualda Fernandes é hoje, na Assembleia da República, o único rosto feminino da imigração.
Ao jornal É@GORA, a deputada socialista lembrou “a coragem, determinação, empenho com que [Joacine Katar Moreira] travou o combate na Assembleia da República como Deputada” e “interpretou com verdadeiro sentido de missão o seu mandato, enfrentando riscos e até ofensas pessoais, próprios daqueles que enfrentam as pessoas negras e racializadas nesta sociedade”.
Em parte, diz Romualda Fernandes, é daí que “a comunidade afrodescendentes, as mulheres negras constituem [para Joacine Katar Moreira] a sua bandeira muito particular de luta”.
Para a jurista e deputada socialista, “a comunidade ganhou e ganha muitos benefícios com a ação política e ativismo da Joacine Katar Moreira que, de uma forma exemplar, tem sabido representar as suas vozes publicamente”.
Comentando ao jornal É@GORA, o investigador da Universidade norte-americana de Ohio, Pedro Schacht Pereira, considera que a homenagem que as mulheres do Chá de Beleza Afro prestam à historiadora e ex-deputada Joacine Katar Moreira “é mais do que oportuna e merecida”, mas alerta.
“Não sei se Portugal algum dia estará preparado para alguém como Joacine Katar Moreira”, diz explicando porquê.
“Não preciso alongar-me muito. Nunca achei que Joacine Katar Moreira caminhasse sobre as águas, mas isso não impede de destacar o serviço que prestou à democracia portuguesa, e que esta não soube acolher nem aceitar. Cometeu também um pecado capital, ela, eu, e tantos dos seus eleitores e/ou apoiantes, e é preciso assinalá-lo: considerou que a democracia portuguesa era suficientemente madura para encarar com discernimento e determinação a urgência da questão racial, e todas as que lhe giram à volta tendo ela sido quem, durante muito tempo, mais pugnou em Portugal pela consciência da dimensão necessariamente intersecional da luta social e politica”.
Para o académico, “aquilo que a sociedade portuguesa lhe fez em troca, começando pelo Parlamento, e indo por aí pela imprensa escrita, as rádios e televisões, e terminando nas redes sociais, foi de uma ignomínia sem nome e de uma crueldade sem medida. Enxovalhar o nome e a pessoa dela a cada oportunidade, procurar humilhar a sua humanidade, e elegê-la como figura tutelar do divisionismo quando o ódio da extrema-direita uivava livremente no hemiciclo do Parlamento, onde ninguém a defendeu”.
E lembra que “foi ela [Joacine Katar Moreira] quem pagou o preço mais elevado, e continua a pagá-lo, mas a sociedade portuguesa como um todo pagará por muito tempo o preço incalculável de não ter colocado no seu lugar, que era a rua, o então deputado único daquele partido xenófobo e racista [André Ventura, líder do Chega], quando a enviou de volta para a sua terra natal, aquela terra onde nasceu também um dos mais excelsos líderes das independências africanas, e a quem o Portugal moderno tanto, mas tanto deve. Falo de Amilcar Cabral, claro”.
Recuando no tempo, Pedro Schacht Pereira diz: “Lembro, para terminar, que o que suscitou então a tirada ignominiosa que permaneceu e permanece até hoje impune, foi a proposta de se começar a pensar sobre a questão das restituições patrimoniais, no âmbito mais amplo das reparações históricas que a sociedade portuguesa ainda deve a si própria. Essa proposta que o atual ministro da Cultura reciclou sem nunca dar à ex-deputada o devido crédito, por medo da ‘polarização’ a que o seu nome daria imediatamente azo. Agindo dessa forma, empossando um “petit comité” de diretores de museu (alguns dos quais preconizam um tipo de ação que é ela mesma uma peça dos meta-museus do colonialismo que são ainda tantos museus portugueses!), o ministro fez mais uma aliança tácita com todos aqueles que responderam com os instintos mais baixos à presença de Joacine Katar Moreira na política portuguesa, dando um futuro mais à polarização que pretendeu querer evitar”.
Daí que receia que “algum dia” a sociedade portuguesa esteja preparada para alguém como Joacine Katar Moreira.
“Não sei se há em Portugal um lugar para Joacine Katar Moreira, mas sei que tem de haver; há no mundo um lugar para Joacine Katar Moreira, e esse lugar é lindo”, diz o docente universitário.
A investigadora brasileira Sanie Reis, autora da tese sobre a “A (In) visibilização da mulher negra em Portugal – a dupla discriminação silenciada”, descreve Joacine Katar Moreira como uma “fonte de inspiração, exemplo de luta, resistência e resiliência”, pelo que lança um gesto de solidariedade para a historiadora: “Ubuntu mana Joacine!”, pois as “meninas, jovens e mulheres negras têm onde se espelhar e fortalecer as suas lutas no activismo negro em Portugal”, diz justificando a defesa.
É “porque existe um antes e um depois de Joacine” que é uma “cidadã empenhada na defesa dos direitos dos (das)negros(as) em Portugal e que merece todo o nosso reconhecimento e respeito”, frisa.
Para Anizabel Amaral, amiga pessoal da ex-deputada, só há uma via para o futuro pós Joacine Katar Moreira na democracia portuguesa.
“Faça-se assim justiça!”, até porque “Joacine já não é a nossa deputada e o seu legado é enorme e deve ser recuperado imediatamente. Não tendo sido a pessoa escolhida para dirigir o Observatório do Racismo que a mesma propôs, recuperem-se as propostas legislativas que apresentou, indispensáveis para a luta anti-racista em Portugal”, considera.
Segundo Silvia Jorge, ativista antirracista brasileira, “Joacine é uma Deusa”, porque foi “quem nos ensinou o que é lutar contra o ódio da direita, extrema-direita e esquerda racista. Resiliente. Sinto me representada por ela”. (MM)