Urgência feminista – Parte 2

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Ulika Paixão Franco
Estávamos em setembro de 1791 quando, sob os ímpetos da Revolução Francesa, Marie Gouze, escritora, dramaturga, feminista e abolicionista que ficou conhecida por Olympe de Gouges, redige, em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Antes ainda, em 1774, Olympe havia escrito o seu manifesto de condenação à escravatura, L’ Esclavage des Nègres, uma obra pela qual sempre se debateu, ainda que sem sucesso, para ver encenada.

Uma mulher ocidental erguia duas batalhas imémores, a da igualdade de género e a da luta contra a escravatura humana, a qual tinha implícita a luta contra a discriminação baseada na etnia e origem territorial. Relembro que estávamos no século XVIII.

Na última década deste segundo milénio sinos ruimentes lançaram-se das ruas de Nova Iorque atingindo um Ocidente árido em movimentos ativistas com motivações étnicas desde o fim do Apartheid. Afinal não ficou tudo resolvido e mais de duzentos anos depois da Queda da Bastilha, Olympe de Gouges permanecia tão emudecida como aquando guilhotinada.

E se o silêncio acomodou uma mulher alva, ocidental, burguesa, viúva, mãe, intelectual, como não continuar a acomodar a voz das mulheres negras?

A questão é de simples soma ainda que de muda resposta: num modelo político democrático, a partir de que momento da história tiveram as mulheres negras demonstrada representatividade? Pois… falham-se as contas. Podemos defender que outrora a História terá reservado às civilizações africanas modelos de organização política matriarcais, mas facto é que o modelo político mundial e dominante, o modelo democrático de sufrágio universal postulado como garante dos direitos humanos, erigiu-se estruturalmente de uma construção social reflexo do patriarcado falocêntrico.

De França para Portugal, se compararmos as revoluções sociais e de mentalidade decorridas desde o fim do Estado Novo até aos dias de hoje, podemos inferir com alguma segurança que, num horizonte temporal de quatro a cinco décadas, ou seja, meio século, as vidas negras continuarão a não ser cruciais e as vidas das mulheres negras continuaram a não ser mesuráveis.

Aqui e ali, como uma espécie de moda que colocou 3 + 1 uma mulheres negras em lugares de visibilidade política durante meia legislatura para, finda a mesma, só deixar uma mulher negra, a deputada eleita pelo Partido Socialista, e introduzir onze homens brancos politicamente contra o Estado Democrático plasmado na atual Constituição da República Portuguesa, poderemos ver representada a mulher negra no espectro social luso, mas sempre como uma espécie de Madame de Condorcet deambulando sozinha nos passos perdidos das suas inquietações. Por ora, ninguém levará a sério uma mulher negra, salvo se esta estiver em fila às cinco da manhã para garantir a limpeza da mesa em que Portugal toma o café das nove da manhã.

E se esta verdade tanto me toca quanto incomoda, não terei eu o direito a furar a bolha? A lançar faísca, a rebelar o chão?
Por que argumento falacioso do Portugal onde nunca houve escravidão – leia-se Oliveira Martins no segundo tomo da sua História de Portugal: «A terceira grande mercadoria, os escravos, encontravam-se por toda a costa de África, onde quer que os Portugueses tivessem feitorias e fortalezas.» – temos de manter as vendas?
Pelo tanto que há de documentação oficial, cito Isabel Castro Henriques numa das suas obras – «O primeiro grande carregamento desembarcado e seguido da partilha de cativos africanos – cerca de duzentos homens, mulheres e crianças –, que se haviam de transformar em escravos, verificou-se na cidade de Lagos, no Algarve, a 08 de Agosto de 1444, cerimónia que (…) foi presidida pela figura tutelar do Infante D. Henrique (…).» – não nos é devido a nós, mulheres negras, a afirmação de que as nossas vidas importam? Bem, muitos dirão que não. Apontarão a bandeira da extrema-esquerda, do racismo ao contrário, o ódio do “vocês é que são”.

Se o modelo permanece o mesmo, a resposta tem que ser como dantes. A urgência é feminista, a agonia antirracista. Cada um escolherá em que balcão se quer sentar. O relógio bate as horas. Depois de vinte e quatro somam-se dias que depois de sete são semanas tornadas meses. Contamos doze, calculamos anos até às décadas e eis um previsível meio século. Mais cinquenta anos…

Foi você que ordenou mais cinco décadas à minha improvável longevidade sem que alguém se importe de facto? (X)

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